Por quatro dias, entre 10 e 13 de setembro, a sede da FUNARTE, em Brasília, se transforma em um espaço de celebração, resistência e mobilização. O XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado reúne centenas de representantes indígenas, quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos, extrativistas e outros povos e comunidades tradicionais do bioma.
Promovido pela Rede Cerrado e parceiros, o evento é marcado por debates intensos, manifestações culturais e articulações políticas em defesa dos territórios e modos de vida ameaçados pelo avanço do agronegócio, da mineração e das políticas de exclusão.
Entre os destaques da programação esteve a mesa “A questão fundiária e a Regularização Territorial de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais (PIQPCTs) nos Cerrados”, que contou com a presença de Raíssa Felippe, mobilizadora do Instituto Internacional ARAYARA, além de lideranças e pesquisadores.
Cerrado: bioma invisibilizado e zona de sacrifício
O professor Sérgio Sauer, do Observatório dos Conflitos Socioambientais do MATOPIBA (UnB), apresentou um resgate histórico da ocupação predatória do Cerrado, que remonta aos bandeirantes e à expansão da fronteira agrícola impulsionada durante a ditadura militar. “O Cerrado foi tratado como zona de sacrifício, invisibilizado por não ser floresta, e isso facilitou seu avanço como fronteira agrícola”, destacou, apontando a ausência de políticas públicas que respeitem as diferentes fitofisionomias do bioma.
O pesquisador criticou a lógica imposta pela Revolução Verde, que promoveu crédito facilitado, obras de infraestrutura e desapropriações sem considerar a presença de povos e comunidades tradicionais nos territórios.
Desumanização e negação de direitos
Durante a mesa, as falas convergiram em torno da ideia de que os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) são historicamente desumanizados, o que os afasta do acesso a direitos básicos. “A terra precisa ser pauta comum entre a agricultura familiar e as comunidades tradicionais, não podemos cair na armadilha da divisão”, afirmou o professor.
Samuel Caetano, presidente do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e liderança geraizeira, enfatizou que as semelhanças entre os povos, muitas vezes, não estão em suas práticas, mas nas fronteiras criadas pelo Estado. “O marco regulatório do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos PCTs é uma resposta a essa violência histórica. No entanto, o processo de construção do Plano foi marcado por resistência do próprio Estado, que nos boicota quando precisamos disputar espaço com o empresariado”, afirmou.
Ele também alertou para a incoerência do governo federal ao tentar cumprir compromissos internacionais de redução de emissões (NDCs) sem promover uma verdadeira reforma agrária. “As soluções climáticas passam pelos nossos territórios. Mas isso implica em tirar terras do mercado, algo que os governos não querem fazer”, criticou.
Estado omisso e INCRA fragilizado
Durante a atividade, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi apontado como peça-chave para a implementação do Plano Nacional, mas alertou para a precarização do órgão. “É o único com capilaridade para alcançar os territórios, mas sofre com falta de estrutura. Investir no INCRA é uma estratégia essencial”, argumentou.
Ele também criticou o viés exclusivamente amazônico do governo federal na formulação do plano. “Os conflitos fundiários no Cerrado têm particularidades, como a sobreposição de territórios a terras griladas e desapropriação de áreas privadas”.
Ameaças concretas: o caso do Quilombo Peixe Bravo
A situação dos quilombolas do Peixe Bravo, no norte de Minas Gerais, foi citada como exemplo emblemático da violência enfrentada pelos PCTs. A comunidade sofre ameaças constantes por parte de projetos de mineração e da monocultura do eucalipto. “Há acampamentos de pistoleiros perto do quilombo, extração mineral ilegal e a circulação dos quilombolas é restringida por pressões dos plantadores de eucalipto”, denunciou Raimundo, uma das lideranças presentes.
Em meio a tantos desafios, os participantes reafirmaram a importância da organização coletiva e das alianças institucionais. “O CNPCT tem buscado articulações com o MPF, INCRA e outras instituições por meio da Plataforma de Territórios Tradicionais e do uso do Artigo 14 da Convenção 169 da OIT. Mas, acima de tudo, é preciso forjar vontade política nos governos. E isso só se faz ocupando as ruas com autenticidade”, concluiu Samuel.
Fronteira fóssil no Cerrado
A mobilizadora socioambiental do Instituto Internacional ARAYARA, Raíssa Felippe, alertou para os impactos dos projetos fósseis que ameaçam o Cerrado e seus povos. “Atualmente, estão em curso quatro projetos de usinas termelétricas a gás natural e a proposta de construção de um gasoduto de 900 km, que atravessaria o bioma desde São Paulo até o Distrito Federal”, afirmou. Ela criticou o fato de que esses empreendimentos vêm sendo autorizados com base em interesses estratégicos de desenvolvimento nacional, que frequentemente se sobrepõem à autonomia dos povos em seus territórios e à garantia de direitos fundamentais. Como exemplo, citou a ameaça de remoção de uma escola rural em Samambaia (DF) para a implementação da Usina Termelétrica Brasília.
O XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado segue com o compromisso renovado das comunidades de seguir em luta pela defesa dos seus modos de vida, territórios e direitos. O Cerrado, como berço das águas e da sociobiodiversidade, continua resistindo. E com ele, seus povos.
Foto: Raíssa Felippe/ ARAYARA