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Violência contra indígenas persistiu em 2023, ano marcado por ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras

Violência contra indígenas persistiu em 2023, ano marcado por ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras

Relatório anual do Cimi sobre violência contra povos indígenas apresenta dados do primeiro ano do governo Lula 3, marcado por impasses e contradições na política indigenista

Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - dados de 2023

As disputas em torno dos direitos indígenas nos três Poderes da República refletiram-se num cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios em 2023. O primeiro ano do novo governo federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes. O ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas repercutiu, nas diversas regiões do país, na continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e pela manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância entre estes povos. Estas foram as constatações do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2023, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O ano de 2023 iniciou com grandes expectativas em relação à política indigenista do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não apenas porque a nova gestão sucedeu um governo abertamente anti-indígena, mas também porque o tema assumiu centralidade nos discursos e anúncios feitos pelo novo mandatário desde a campanha eleitoral.

Essa mudança foi simbolizada pela presença do cacique Raoni, histórica liderança Kayapó, na posse do presidente recém-eleito. A criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a nomeação de lideranças indígenas para a chefia da nova pasta, da Funai – renomeada como Fundação Nacional dos Povos Indígenas – e da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) complementaram o ambiente de esperanças renovadas.

Logo no início do ano, a situação do povo Yanomami – denunciada há muito tempo de forma recorrente – causou enorme comoção. Após anos de abandono e omissão ativa de governos anteriores frente à presença ilegal de garimpeiros na Terra Indígena (TI), o povo foi levado ao extremo da vulnerabilidade. A declaração de Emergência Nacional de Saúde e o início de uma grande operação de desintrusão naquele território apontaram na direção de uma mudança efetiva em relação à política indigenista.

Este contexto se refletiu na constatação de poucos avanços na demarcação de terras indígenas e na continuidade de casos de invasão, danos ao patrimônio indígena e conflitos relativos a direitos territoriais

Sem demora, contudo, a realidade política se impôs. O Congresso Nacional atuou para esvaziar o MPI e atacar os direitos indígenas, especialmente por meio da aprovação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, transformado, no final do ano, na Lei 14.701/2023. O Poder Legislativo agiu em clara contraposição ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, depois de anos de tramitação, concluiu o julgamento do caso de repercussão geral que discutia a demarcação de terras indígenas com uma decisão favorável aos povos originários.

A Suprema Corte reconheceu os direitos territoriais indígenas como “cláusulas pétreas” da Constituição Federal – ou seja, que não podem ser alteradas ou restringidas – e declarou a tese do marco temporal inconstitucional. Esta tese, que há anos assombra os povos originários, pretende estabelecer que só poderiam ser demarcadas as terras que estivessem sob a posse dos povos indígenas ou em disputa comprovada na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.

À revelia do julgamento, o Congresso Nacional incluiu na lei 14.701 o marco temporal como critério para a demarcação de terras indígenas, além de um conjunto de dispositivos legais que, na prática, buscam inviabilizar novas demarcações e abrir as terras já demarcadas para a exploração econômica predatória. O veto parcial de Lula foi derrubado pelo Congresso, com grande número de votos de partidos que detêm cargos no governo, e a lei entrou em vigência no final do ano.

Este contexto se refletiu na constatação de poucos avanços na demarcação de terras indígenas e na continuidade de casos de invasão, danos ao patrimônio indígena e conflitos relativos a direitos territoriais.

Algumas ações de desintrusão foram realizadas, mas nenhuma com o fôlego inicial da Força Tarefa Yanomami, que também caiu em inércia sem que o garimpo tenha sido desarticulado por completo. Em 2023, foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas em 22 estados do Brasil.

Oito terras indígenas foram homologadas no primeiro ano do novo governo, um número aquém das expectativas, mesmo sendo maior que o dos últimos anos. Os parcos avanços nas demarcações refletiram-se na intensificação de conflitos, com diversos casos de intimidações, ameaças e ataques violentos contra indígenas, especialmente em estados como Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraná.

A disposição do governo federal em explorar petróleo na foz do Amazonas, a priorização orçamentária ao agronegócio e o apoio a grandes projetos de infraestrutura e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia “Ferrogrão” e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas, também compuseram este cenário.

A morosidade e a ausência de uma sinalização clara do governo federal em defesa dos territórios indígenas tiveram influência direta no alto número de conflitos registrados, muitos deles com intimidações, ameaças e ataques violentos contra comunidades indígenas

Barraco ao sol em retomada Guarani Kaiowá no Tekoha Laranjeira Nhanderu, Rio Brilhante (MS). Março de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra

Barraco ao sol em retomada Guarani Kaiowá no Tekoha Laranjeira Nhanderu, Rio Brilhante (MS). Março de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra

 

Violência contra o Patrimônio

O primeiro capítulo do relatório reúne as “Violências contra o Patrimônio” dos povos indígenas, que totalizaram 1.276 casos. Os registros desta seção dividem-se em três categorias: omissão e morosidade na regularização de terras, na qual foram registrados 850 casos; conflitos relativos a direitos territoriais, que teve 150 registros; e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, com 276 casos.

As categorias de conflitos territoriais e de invasões a terras indígenas mantiveram-se em patamares elevados, apesar de registrarem ligeira redução em relação a anos anteriores. Se por um lado os dados refletem a retomada das operações de fiscalização ambiental, por outro, a maior parte dos relatos indica a continuidade das ações de invasores, a desestruturação dos órgãos responsáveis por estas tarefas e a falta de uma política permanente de proteção aos territórios indígenas.

Entre os principais tipos de danos ao patrimônio indígena registrados destacam-se, como em anos anteriores, os casos de desmatamento, extração de recursos naturais como madeira, caça e pesca ilegais, garimpo e invasões possessórias ligadas à grilagem e à apropriação privada de terras indígenas.

Houve priorização de operações de retirada de invasores num pequeno conjunto de territórios, em especial das sete TIs contempladas pelas decisões do STF no âmbito da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. Mesmo nestes casos, contudo, os dados e relatos indicam que as ações não deram conta de garantir a retirada completa dos invasores, e a grande maioria das terras indígenas contou apenas com ações fiscalizatórias pontuais.

Do total de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil, a maioria (62%) segue com pendências administrativas para sua regularização, aponta a atualização da base de dados do Cimi. São 850 terras indígenas com pendências, atualmente. Destas, 563 ainda não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação.

Em 2023, os maiores avanços ocorreram na constituição ou reestruturação de Grupos Técnicos (GTs) para a identificação e delimitação de terras indígenas, sob responsabilidade da Funai. É um indicativo da disposição do órgão em dar andamento à primeira etapa na regularização de demandas territoriais represadas há anos. Contudo, os trabalhos avançam a passos lentos: apenas três relatórios de identificação e delimitação foram concluídos e publicados pela Funai em 2023.

A indefinição sobre o marco temporal torna impossível uma previsão acerca do cumprimento dos prazos estabelecidos nas portarias, na medida em que o governo hesita e utiliza a Lei 14.701/2023 como justificativa para não avançar nos procedimentos demarcatórios. Tal postura reflete-se, também, no fato de que nenhuma portaria declaratória foi publicada pelo Ministério da Justiça.

A morosidade e a ausência de uma sinalização clara do governo federal em defesa dos territórios indígenas tiveram influência direta no alto número de conflitos registrados, muitos deles com intimidações, ameaças e ataques violentos contra comunidades indígenas, a exemplo de casos registrados na Bahia, no Mato Grosso do Sul e no Paraná, entre outros.

Assim como nos anos anteriores, mantiveram-se com os maiores números de assassinatos de indígenas os estados de Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36)

Cápsulas coletadas por indígenas após ataque contra retomada Pataxó na TI Barra Velha, em janeiro de 2023. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Cápsulas coletadas por indígenas após ataque contra retomada Pataxó na TI Barra Velha, em janeiro de 2023. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Violência contra a Pessoa

Os casos de “Violência contra a Pessoa”, reunidos no segundo capítulo do relatório, totalizaram 411 registros em 2023. Esta seção é dividida em nove categorias, nas quais foram registrados os seguintes dados: abuso de poder (15 casos); ameaça de morte (17); ameaças várias (40); assassinatos (208); homicídio culposo (17); lesões corporais (18); racismo e discriminação étnico-cultural (38); tentativa de assassinato (35); e violência sexual (23).

Assim como nos anos anteriores, mantiveram-se com os maiores números de assassinatos de indígenas os estados de Roraima (47), Mato Grosso do Sul (43) e Amazonas (36). Os dados, que totalizaram 208 assassinatos, foram compilados a partir da base do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e de informações obtidas junto à Sesai via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Destacam-se os assassinatos a tiros, logo no início do ano, dos jovens Pataxó Samuel Cristiano do Amor Divino, de 23 anos, e Nauí Pataxó, de 16, no extremo sul da Bahia. Eles viviam numa retomada da TI Barra Velha do Monte Pascoal e foram executados quando saíram para comprar alimentos nas proximidades, em janeiro.

O povo Pataxó luta há anos pela demarcação de suas terras nesta região. Os conflitos seguiram sem resolução ao longo de 2023 devido à falta de avanço nos procedimentos demarcatórios e motivaram medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O envolvimento de policiais militares em milícias privadas investigadas pelas mortes dos indígenas guarda semelhanças com as violências registradas contra indígenas no Mato Grosso do Sul, onde forças policiais são acusadas de atuarem como escoltas privadas de fazendeiros, compartilhando informações e dando suporte a ataques de seguranças privados contra comunidades Guarani e Kaiowá. Além de despejos ilegais e ataques violentos contra acampamentos indígenas, também foram registradas prisões arbitrárias de indígenas na região.

Ataques de garimpeiros contra indígenas Yanomami, em Roraima e no Amazonas, seguiram sendo registrados ao longo de 2023, apesar das operações realizadas no primeiro semestre do ano na TI Yanomami. Assassinatos, ataques armados, violências sexuais e aliciamento de indígenas para o garimpo, com fomento a conflitos internos, integraram o trágico quadro da continuidade das violências neste território.

Os assassinatos de indígenas do povo Guajajara no Maranhão mantiveram-se em alta, em especial na TI Arariboia, que há anos é dilapidada por invasores. Também continuaram os casos de violência armada contra indígenas dos povos Tembé e Turiwara, no nordeste do Pará, em conflito com grandes empresas ligadas à monocultura e à produção de óleo de dendê.

A falta de saneamento básico e de água potável foram agravadas pela crise climática, que provocou enchentes pelo país e severa estiagem na região amazônica, aprofundando a vulnerabilidade de diversas comunidades

Retomada Guapoy, Amambai (MS), fevereiro de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra

Retomada Guapoy, Amambai (MS), fevereiro de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra

 

Violência por Omissão do Poder Público

O terceiro capítulo do relatório reúne os casos de “Violência por Omissão do Poder Público”, organizado em sete categorias. Segundo os dados consultados junto ao SIM e obtidos junto à Sesai, foram registradas 1040 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos de idade em 2023. Também neste caso, os mesmos estados dos anos anteriores registraram o maior número de ocorrências: Amazonas, onde ocorreram 295 mortes nessa faixa etária, Roraima, com 179 casos, e Mato Grosso, com 124.

A maior parte dos óbitos infantis teve causas consideradas evitáveis por meio de ações de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento adequados. Entre estas causas, destaca-se a grande quantidade de mortes ocasionadas por gripe e pneumonia (141), por diarreia, gastroenterite e doenças infecciosas intestinais (88) e por desnutrição (57).

Informações obtidas junto a estas mesmas bases públicas indicaram a ocorrência de 180 suicídios de indígenas em 2023. Os índices mais altos, assim como nos anos anteriores, foram registrados no Amazonas (66), Mato Grosso do Sul (37) e Roraima (19).

Ainda neste capítulo, estão registrados os seguintes dados referentes ao ano de 2023: desassistência geral (66 casos); desassistência na área de educação (61); desassistência na área de saúde (100); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (6); e morte por desassistência à saúde (111), totalizando 344 casos.

Destacam-se, neste contexto, a falta generalizada de infraestrutura escolar em aldeias de todo o país e de infraestrutura, pessoal e transporte para o atendimento à saúde nas comunidades indígenas. A falta de saneamento básico e de água potável foram agravadas pela crise climática, que provocou enchentes pelo país e severa estiagem na região amazônica, aprofundando a vulnerabilidade de diversas comunidades.

Cabe ressaltar que, a partir deste ano, o Cimi passou a contabilizar os casos de morte por desassistência à saúde com base nos dados do SIM e da Sesai, o que explica o aumento de casos registrados em relação aos anos anteriores.

A nova gestão renovou portarias de restrição de uso de territórios que o governo anterior havia deixado vencer. Apesar disso, a situação manteve-se preocupante, pois a maior parte das terras indígenas com presença de isolados que foram invadidas nos anos anteriores seguiu registrando invasões em 2023

Placa de invasor na Terra Indígena Karipuna, onde há presença de indígenas isolados. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Placa de invasor na Terra Indígena Karipuna, onde há presença de indígenas isolados. Foto: Maiara Dourado/Cimi

 

Povos isolados

O quarto capítulo do relatório é dedicado a analisar a situação dos povos indígenas em isolamento voluntário. Estes povos, que estiveram entre os mais afetados pelo desmonte da política de proteção às terras indígenas nos anos passados, seguiram sob grave ameaça em 2023.

A nova gestão renovou portarias de restrição de uso de territórios que o governo anterior havia deixado vencer. Mas, apesar disso, a situação manteve-se preocupante, pois a maior parte das terras indígenas com presença de isolados que foram invadidas nos anos anteriores seguiu registrando invasões em 2023. Pelo menos 56 do total de 119 registros de isolados contabilizados pela Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil) do Cimi encontram-se em terras indígenas que registraram invasões ou danos ao patrimônio em 2023.

Apesar da renovação de portarias de restrição de uso, não houve providências do governo federal para garantir a proteção de isolados cuja localização foi registrada fora de terras indígenas atualmente reconhecidas, que correspondem a 37 dos 119 registros contabilizados pela Eapil. Parte destes registros sem providências é reconhecido pela própria Funai, como é o caso dos isolados do Mamoriá Grande, em Lábrea (AM).

Também nestes territórios, apesar de algumas ações mais robustas de enfrentamento aos invasores, como no caso da TI Ituna/Itatá, no Pará, a maioria das operações de fiscalização foi pontual ou insuficiente para garantir a proteção das áreas. Lideranças de TIs como Vale do Javari, no Amazonas, e Karipuna, em Rondônia, seguiram denunciando a presença contínua de invasores.

III Marcha das Mulheres Indígenas, setembro de 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi

III Marcha das Mulheres Indígenas, setembro de 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi

 

Memória

O quinto capítulo do relatório é dedicado à reflexão sobre o tema da Memória e Justiça e traz dois textos nesta edição. O primeiro é um estudo inédito do pesquisador Marcelo Zelic (1963-2023) sobre o histórico do esbulho da TI Ananás, em Roraima. O artigo apresenta propostas para a reparação dos danos causados aos povos Macuxi e Wapichana devido à prática dos chamados “crimes da tutela” – violações cometidas durante a Ditadura Militar, quando o Estado se utilizava do instrumento legal da tutela para inviabilizar a luta dos povos indígenas e mutilar seus territórios. Este texto foi editado por pesquisadores e familiares que buscam manter viva a dedicação de Zelic ao tema da preservação da memória e à luta pela criação de mecanismos de não repetição das violações de direitos humanos contra os povos indígenas.

No segundo texto do capítulo, um dos fundadores do Cimi, Egydio Schwade, faz uma retrospectiva sobre o primeiro instrumento produzido pela entidade para denunciar as violações dos direitos indígenas, que completa 50 anos em 2024. Publicado em 1974, o dossiê Y-Juca Pirama – o índio: aquele que deve morrer foi o antecessor histórico do presente relatório, produzido anualmente pelo Cimi.

Artigos

Além dos capítulos destinados à sistematização dos dados, o relatório de 2023 também reúne textos que buscam aprofundar a reflexão sobre os temas abordados pela publicação. A situação dos indígenas encarcerados no país e o significado da violência física e simbólica que representa a queima de Casas de Reza Guarani e Kaiowá são os tópicos abordados em dois destes artigos. A análise detalhada dos casos de racismo e discriminação étnico-racial contra indígenas e a avaliação dos gargalos e desafios da política indigenista sob a ótica do orçamento e da execução financeira em 2023 são os temas de outros dois textos.

plataforma Caci, mapa digital que reúne as informações sobre os assassinatos de indígenas no Brasil, foi atualizada com as informações do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023. Caci, sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas, também significa “dor” em Guarani. Com a inclusão dos dados de 2023, a plataforma agora passa a abranger informações georreferenciadas sobre 1.470 assassinatos de indígenas, reunindo dados compilados desde 1985.

Acesse em caci.cimi.org.br.

Mais informações:

Assessoria de Comunicação: (61) 99641-6256

Foto da capa

Retomada Guapo’y Mirin Tujury, Amambai (MS), fevereiro de 2023. A menina Guarani Kaiowá Laisquene, de 3 anos, numa das barracas de lona da retomada, onde vive com os pais. No ano anterior, lideranças do tekoha foram assassinadas. A comunidade segue em luta pela demarcação da terra.  A foto é de Renaud Philippe e integra o projeto Retomada da Terra, de Renaud Philippe e Carol Mira, assim como as outras desta série que ilustram a publicação. Mais informações: renaudphilippe.com

Fonte: CIMI

Protocolo de Adaptação, Resposta e Recuperação em Situações de Risco e Desastres Ambientais, Climáticos e Sanitários é apresentado no MPI

Protocolo de Adaptação, Resposta e Recuperação em Situações de Risco e Desastres Ambientais, Climáticos e Sanitários é apresentado no MPI

Em reunião com a ministra Sônia Guajajara, lideranças indígenas do Levante Pela Terra buscam apoio para levar documento ao Congresso 

Na última sexta-feira (5/7), representantes do movimento Levante Pela Terra estiveram no Ministério dos Povos Indígenas (MPI) para apresentar um importante documento: o Protocolo de Adaptação, Resposta e Recuperação em Situações de Risco e Desastres Ambientais, Climáticos e Sanitários.

Em uma audiência com a Ministra Sônia Guajajara, um dos coordenadores do Levante Pela Terra, acompanhado por líderes indígenas de diversas regiões, destacou as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas para acessar políticas públicas em situações emergenciais. Estiveram presentes também os indígenas Diego Lima Karaiju e Eloy Nhandewa; o assessor da Ministra, Jacinaldo Saterê, a consultora jurídica do MPI, Alessandra Vanessa Alves, e representantes do Instituto Internacional Arayara.

Durante a reunião, Kretã Kaingang compartilhou experiências cruciais vividas pelos povos durante a catástrofe no Rio Grande do Sul, onde comunidades inteiras perderam seus lares e encontraram obstáculos significativos para participar dos programas governamentais, devido a barreiras como a linguagem, a falta de conectividade digital e o preconceito cultural.

“A mídia repercutiu amplamente o resgate do cavalo caramelo, enquanto nossas comunidades indígenas foram negligenciadas e invisibilizadas diante da mesma tragédia”, lamentou o Coordenador do Levante pela Terra.

Este protocolo foi uma das principais demandas levantadas pelos 20 povos indígenas participantes da segunda edição do Levante Pela Terra, representando um esforço conjunto para garantir a inclusão e a proteção dos direitos indígenas em face dos desafios climáticos e sanitários. O documento foi elaborado com a colaboração não apenas de líderes indígenas de todo o país, mas também do Instituto Internacional Arayara.

O protocolo representa um legado significativo do Levante Pela Terra, e nossa meta agora é transformá-lo em um Projeto de Lei, visando estabelecer uma política nacional inclusiva para enfrentar as mudanças climáticas, com enfoque nos povos indígenas”, afirmou Kretã.

Após análise detalhada do documento, a Ministra Sônia Guajajara informou que o MPI foi convidado a contribuir na elaboração do Plano de Prevenção ao Desastre do Ministério do Meio Ambiente, reconhecendo que o protocolo poderá subsidiar estratégias específicas para assegurar a proteção e a adaptação dos povos indígenas diante dos desastres ambientais.

Guajajara ressaltou a importância de termos um governo democrático com representação indígena no executivo – um marco histórico – capaz de sensibilizar e evidenciar as causas dos povos indígenas no Congresso.

“Estamos apenas começando a escrever a história dos povos indígenas na institucionalidade brasileira, e isso é um processo que demanda tempo. No entanto, comprometemo-nos a articular para que este protocolo alcance outras esferas e sirva como base para políticas públicas que garantam os direitos dos povos indígenas”, frisou a Ministra.

 

 

 

 

Artigo de Opinião | Identidade em alerta: nossa história à deriva nas inundações do RS

Artigo de Opinião | Identidade em alerta: nossa história à deriva nas inundações do RS

As enchentes no Rio Grande do Sul afetam mais de 94% dos municípios, com severa extensão dos impactos sobre seus habitantes, povos tradicionais, áreas sensíveis de preservação ambiental e o patrimônio histórico e cultural de importância estadual e federal.

 

Por: Paôla Manfredini Romão Bonfim, Heloísa Sandiego e George Mendes

Aldeias indígenas e famílias quilombolas enfrentam a disrupção da comunicação (parcial ou inexistente), a escassez de alimentos, água potável e acesso a energia e outros serviços básicos. Ainda que consideremos que esses impactos não se restringem aos povos tradicionais, mas pesam sobre toda a sociedade gaúcha, é preciso também refletir sobre a ausência de medidas preventivas e ações imediatas na proteção desses povos historicamente mais vulneráveis e cuja manifestações culturais são base para a formação da identidade nacional.

Assim, o Ministério dos Povos Indígenas estima o impacto, direta ou indiretamente, sobre 9.000 indígenas e centenas de aldeias com famílias desabrigadas, além de comunidades urbanas ou periurbanas. Destaca-se a situação dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, cujas casas foram destruídas, forçando-os a abandonar suas aldeias e buscar abrigo em locais temporários.

No que diz respeito aos territórios quilombolas, a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) reporta que todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram impactadas pelas chuvas e enchentes que assolam o estado e em torno de 15 quilombos estão totalmente isolados.

É o que acontece no Território Quilombola Areal Luiz Guaranha, Quilombo dos Alpes, Família Silva e Família Fidelix – todos em Porto Alegre; e no Território Chácara das Rosas, em Canoas; e Rincão dos Negros, em Rio Pardo; e o Quilombo Vila do Salgueiro, no município General Câmara.

Com tantas vidas perdidas ou irremediavelmente impactadas, ainda cabe a pergunta sobre as consequências que virão sobre a identidade e as memórias afetivas desses povos, já que também suas formas de expressão, seus saberes e fazeres, seus lugares e celebrações, todos foram devastados junto com os edifícios, centros históricos e sítios arqueológicos pela força das águas.

 

O IMPACTO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

A situação é realmente dramática. E não apenas para as pessoas, de comunidades tradicionais ou não. Aqui também é preciso falar do impacto das cheias aos signos de identidade do nosso povo. O patrimônio cultural, seja em sua dimensão material ou imaterial, também está sendo diretamente afetado pela crise climática no Rio Grande do Sul.

Ou seja, para além das vidas tragicamente perdidas ou terrivelmente afetadas, temos a própria história sob risco. 

No âmbito dos bens imateriais gaúchos protegidos pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) temos: rodas e ofícios de mestre de capoeira; Tava, um lugar de referência para o povo Guarani; e as Tradições Doceiras na Região de Pelotas e Antiga Pelotas – Morro Redondo, Turuçu, Capão do Leão e Arroio do Padre. 

Com praticamente todo o estado inundado, quando e como os detentores dessas tradições retomarão essas manifestações? Quais os planos do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para a retomada dessas atividades? Como minimizar o impacto que as perdas desses referenciais da memória poderão causar?

No que se refere aos bens materiais tombados, sabemos que o centro histórico de Porto Alegre esteve debaixo d’água, assim como o núcleo urbano tombado de Santa Tereza, e tantos outros bens sob risco ou já em evidente situação de perda total ou parcial. 

São em torno de 41 bens materiais tombados em nível federal, acrescidos de mais 29 bens do patrimônio ferroviário valorados pelo IPHAN. Mas essa conta também precisa incluir os bens tombados em nível estadual, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul.

Até muito recentemente, apenas fora emitida uma nota oficial pelo IPHAN em solidariedade e que colocava alguns técnicos de prontidão para quando o tempo permitir agir. A nota também mencionava que o Instituto priorizaria os projetos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) previstos para a região.

Na mesma toada, o IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus), também emitiu sua nota de solidariedade. Tampouco, à época, sem comunicar nenhum tipo de ação concreta que se pretendia para com o acervo museológico atingido do estado. Somente o ICOM (International Council of Museums) Brasil havia publicado um documento ​com orientações para museus, espaços culturais e gestores quanto ao resgate de acervos diante da catástrofe climática.

Em ação semelhante, o Arquivo Nacional, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e o Departamento de Arquivo Geral da Universidade Federal de Santa Maria publicaram o documento Ações Iniciais para salvaguarda de Arquivos após ocorrência de desastre natural por inundação. Foi criado também um formulário para o levantamento e identificação de instituições públicas que possuem acervos documentais, sejam arquivos, bibliotecas, museus, centros de documentação e memória, unidades de informação, que foram atingidas pelos alagamentos

A tangibilidade das ações começaram a ser realmente sentidas apenas a partir da segunda quinzena de maio, quando o Ministério da Cultura (MinC) deu início à criação de uma Rede para Mapeamento e Recuperação do Patrimônio Material, Acervos Museais e Arqueológicos e Arquivos no Rio Grande do Sul.

Dentre os encaminhamentos propostos, temos que: pelo Sistema MinC,  o Ibram e o Iphan irão coordenar o processo de constituição das redes; já o Arquivo Nacional, do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), coordenará a rede na parte de arquivos.  

Definiu-se também pela iniciativa de levantamento dos danos junto aos pontos de memória, previsão de atividades de formação, participação e orientação e pelo estabelecimento de um protocolo futuro para situações similares.

No entanto, em um cenário tão precário e de alto risco contra a preservação da história regional e nacional, tudo parece pouco e parece lento. 

Aqui é preciso considerar os dados levantados por Marchezini, et al. (2023), que informa:

“O cruzamento entre as áreas com risco de deslizamentos e inundações com a localização dos bens tombados demonstra que, em princípio, 44% dos bens imóveis tombados estão a até 1 km de uma área de risco de deslizamento, sendo que para risco de inundação o percentual é de 46%. A referida estimativa é suficiente para pensar na necessidade de implementação de políticas públicas de gestão de risco específico para o patrimônio cultural”.

Assim, dado que impacto aos bens culturais em caso de inundação é evidente e previamente conhecido, quais as medidas tomadas para minimizar a perda desses bens em situação de catástrofe?

O manual de Gestão de riscos de desastres para o Patrimônio Mundial da UNESCO (2015) sugere que sistemas de vedação devem ser instalados para selar janelas e portas em caso de alagamentos. E ainda, que “no caso dos edifícios históricos de propriedade privada, onde a integração do muro de proteção ao edifício não for possível por razões legais, a proteção contra enchentes deverá ser colocada diretamente em frente e de forma adaptada, como se fosse um revestimento”.

De acordo com um Relatório de Gestão Anual, de 2022, o Iphan organizou, em conjunto com o Governo do Chile, o Workshop Internacional Online de Gestão de Riscos de Desastres em Sítios do Patrimônio Mundial. O evento teve como objetivo:

“oferecer uma capacitação sobre questões de Gestão de Riscos de Desastres de acordo com padrões internacionais, para instituições e/ ou profissionais responsáveis pela gestão e conservação de Sítios do Patrimônio Mundial no Chile, na América Latina e na África lusófona, contribuindo para a preservação do Valor Universal Excepcional dos bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial”. 

Então, se o assunto estava em pauta e sendo discutido internamente, como é possível não termos identificado ações preventivas do principal órgão nacional de proteção ao bem cultural?

A diretora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto avalia:

“A mudança climática, é o assunto do nosso tempo e ela está entre as maiores ameaças ao patrimônio natural e cultural mundial. Um em cada três sítios do patrimônio natural e um em cada seis do patrimônio mundial histórico estão ameaçados pelas mudanças climáticas”. 

Nesse contexto alarmante, o que dizer dos sítios arqueológicos? Em uma catástrofe dessas proporções, quantos resistirão? Registrados no Centro Nacional de Arqueologia, temos 1.838 sítios identificados no Rio Grande do Sul e nas áreas das inundações estão 1.657 sob risco.

Mapa 2: Cidades afetadas pelas inundações com indicação dos sítios arqueológicos e bens materiais tombados pelo IPHAN.

Fonte: Elaborado pelos autores (2024), com dados da Defesa Civil de 24/05/2024.

Signos e registros de valor inestimável da nossa história talvez irrecuperáveis. Dados, anos de pesquisas, vestígios únicos apagados para sempre. São informações, culturas, modos de vida de sociedades pretéritas que nunca mais teremos a chance de desvendar. 

Em meio ao caos do hoje, sofremos também por tudo aquilo que nunca conheceremos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual crise climática, também mostra sua face trágica diante dos bens culturais. 

Frente a um cenário tão catastrófico, fica evidente que os órgãos de proteção precisam ser mais previdentes, no sentido de apresentar mais ações de conservação para que os mesmos possam resistir com maior eficácia diante dos desastres naturais ou infligidos pelo homem.

Bem como é imprescindível que as respostas diante da urgência sejam mais imediatas, com planos bem estruturados de remoção para os bens móveis e acervos documentais das áreas em crise e prontidão de técnicos qualificados em situação de desastre para coordenar as ações de contingência em campo, de modo conjunto com outras equipes de proteção e defesa civil.

Para os bens materiais móveis entre as ações emergenciais alguns pontos precisam estar bem estabelecidos, tais como:

  • Registro as informações da coleta: data, local do resgate, conteúdo resgatado e, se possível, o acompanhamento fotográfico;
  • Separação dos itens conforme o grau de danos apresentados: itens secos, pouco molhados ou muito molhados; itens com barro ou evidência de fungos etc. e quantificação daqueles que irão necessitar dos tratamentos de conservação e/ou restauro e de um novo acondicionamento.
  • Controle de transporte do acervo: com identificação das caixas e demais embalagens, preferencialmente, antes da retirada do local;
  • A disposição do acervo nas salas de guarda pós-resgate deve permitir a secagem do maior número de itens recuperados possível, e muitas outras orientações que devem partir dos órgãos competentes especializados.

Já no que concerne às comunidades tradicionais afetadas, o suporte deverá ir muito além do básico, precisará incluir apoio psicológico, logístico, de recuperação dos seus signos e lugares identitários e os meios de retomada das suas expressões culturais – todos precisam ser garantidos em ações de longa duração, encampados por políticas públicas efetivas e ininterruptas.

Para tanto é preciso incluí-los nos espaços de debate, considerando seus interesses, respeitando seus modos de vida, suas manifestações culturais e cosmovisões, bem como agir preventivamente em proteção das áreas e bens historicamente sensíveis, como edificações, centros históricos, ruínas, sítios arqueológicos e acervos museológicos e arquivísticos, que a despeito de toda a intervenção humana e climática têm resistido até aqui. Mas a pergunta derradeira é: até quando?

Foto: Ramiro Sanchez / Divulgação: RGR Pneumáticos

Artigo de Opinião | A crise climática no RS e os impactos aos povos indígenas

Artigo de Opinião | A crise climática no RS e os impactos aos povos indígenas

Por Paôla Manfredini Romão Bonfim, Luíza Machado e George de Cássia Mendes.

Diante da catástrofe no Rio Grande do Sul, onde o estado enfrenta uma série de desafios decorrentes das mudanças climáticas, encontramos um cenário que afeta direta e tragicamente as comunidades mais vulneráveis, como é o caso dos povos indígenas.

Com um mapeamento que revela a presença de 52 terras indígenas (29 demarcadas e outras 23 ainda em fase de estudo) e uma inundação de mais 93% do território estadual, torna-se evidente a extensão dos impactos sobre os povos originários.

Aldeias completamente isoladas, com comunicação parcial ou inexistente, sem acesso a alimentos, água e energia. As áreas afetadas abrangem diversas regiões do estado, trazendo à tona a urgência da assistência emergencial para os povos indígenas, agora também refugiados climáticos.

Este cenário não só evidencia a vulnerabilidade das comunidades indígenas frente às mudanças climáticas, mas também a necessidade de respostas governamentais mais contundentes, além de sublinhar a importância de incorporar seus conhecimentos tradicionais na formulação de estratégias de adaptação e resiliência. 

IMPACTOS AOS POVOS ORIGINÁRIOS DO RS

Segundo dados da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) divulgados em 7 de maio de 2024, são 1.902 indígenas em 29 aldeias com comunicação parcial ou inexistente. Existem 4.870 indígenas de 43 aldeias residentes em áreas com ineficiente ou nenhum acesso. São 4.972 indígenas de 16 aldeias sofrendo com o impacto nos serviços de saúde do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena). Outros 3.700 indígenas de 32 aldeias com pouco ou nenhum acesso à energia elétrica. Mais 10.469 indígenas de 49 aldeias com acesso parcial ou nenhum a água potável. E ainda, 911 indígenas de 15 aldeias com necessidade imediata de evacuação.

Destaca-se a situação dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, cujas casas foram destruídas, forçando-os a abandonar suas aldeias e buscar abrigo em locais temporários.

Nesse caso em específico, a intervenção humana ganha requintes de crueldade, dado que há notícias de que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), vinculado ao Governo Federal, demoliu o acampamento Guarani Pekuruty, em Eldorado do Sul (RS), como parte de um conflito territorial em prol da duplicação da BR-290. Durante a ação, foram destruídas habitações, a escola indígena e outras construções, enquanto a comunidade era evacuada para um abrigo temporário em uma escola do município.

Segundo informações do Coordenador da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), Kretan Kaingang, a Comissão de Terra Guarani entrou com uma Ação Civil Pública junto ao Ministério Público Federal e segue aguardando um retorno do órgão.

As áreas afetadas abrangem diferentes regiões do estado, incluindo Sul, Central, Serra, Litoral, Dos Vales e Metropolitana. A falta de comunicação prejudica a solicitação de ajuda e a coordenação dos esforços de socorro.

Mapa 1: Cidades afetadas pelas inundações com indicação das Terras Indígenas.

Mapa 1: Cidades afetadas pelas inundações com indicação das Terras Indígenas.

A RESPOSTA GOVERNAMENTAL

Para lidar com a catástrofe, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) enviou a Porto Alegre o secretário nacional de Direitos Territoriais Indígenas, Marcos Kaingang. O objetivo da incursão foi desenvolver ações articuladas, entre governo estadual e federal, de resgate e assistência aos povos indígenas, oferecendo abrigos provisórios e kits emergenciais. No entanto, o secretário reconhece que o apoio está muito aquém do que o contexto exige e que o número exato de indígenas afetados ainda é incerto. 

O que se sabe é que aldeias inteiras foram completamente inundadas e que existem diversas regiões isoladas que carecem de itens básicos de higiene, alimento, água potável, roupas e cobertores. É o que ocorre nas áreas do interior do estado, especialmente no norte, que também foram as mais duramente afetadas pelo desastre e que concentram o maior contingente populacional indígena. 

O MPI segue nas suas tentativas de articulação com a Força Aérea Brasileira (FAB) e com o Ministério da Defesa para organizar ações nessas regiões, além de solicitar ao governo federal um crédito extraordinário para esse fim.

A presidente da FUNAI, Joênia Wapichana, também foi para o sul e determinou que os indígenas afetados sejam incluídos nos planos de trabalho da Fundação. Joênia afirma que a FUNAI está trabalhando para garantir o acesso dos indígenas aos auxílios governamentais e ressalta a importância de se desenvolver políticas públicas específicas para as comunidades indígenas repararem os danos, considerando especificidades de contextos urbanos e rurais.

Entre as ações propostas em 14 de maio pelo MPI, estão inclusas a distribuição de cestas básicas quinzenais a 9 mil famílias indígenas; doações de água potável, agasalhos e kits de higiene feminina; e a construção de Plano de Trabalho do MPI com apoio emergencial para:

  • Reconstrução de casas e estradas de acesso;
  • Ações voltadas ao saneamento básico;
  • Recuperação de áreas de plantio;
  • Auxílio de bolsa emergencial para o setor cultural;
  • Ações no PAC Calamidade para os povos originários.

Desta feita, é reconhecida a mobilização dos setores indigenistas do país frente à tragédia no Rio Grande do Sul, mas também é evidente que o momento exige muito mais do que o governo vem oferecendo a essa temática, no contexto catastrófico e fora dele. Enquanto a FUNAI e o MPI totalizam dois representantes enviados, que se integraram aos trabalhos dos funcionários do sul, as Forças Armadas, Bombeiros e Defesa Civil contam com mais de 14 mil pessoas enviadas para atender toda a população, além de centenas de profissionais de outros setores, como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Força Nacional.

Sabe-se que a tragédia flagelou quase a totalidade do estado e que, para a sua reconstrução e reparação, o apoio desses diversos setores e dessas milhares de pessoas é fundamental. A questão é que esses setores têm capacidade, em termos de recursos humanos e financeiros, para prover tal suporte, mas o setor indigenista não, deixando os povos afetados sujeitos ao que outros, porventura, possam prover, sem foco às suas verdadeiras necessidades.

São as próprias organizações indígenas que estão lutando para cobrir o vácuo deixado pelo Estado, para atender as especificidades da sua realidade e que o contexto exige. Ainda de acordo com informações de Kretã Kaingang, a ArpinSul e a APIB entraram com uma ação junto a 6° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (que trata da temática indígena), exigindo que o governo crie uma força tarefa para atender aos povos afetados.

No momento estão sendo realizadas articulações com a Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência da República, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social, FUNAI, Secretaria da Saúde Indígena (Sesai) e Defesa Civil.

O que se pretende, para além da ajuda efetiva no Rio Grande do Sul, é a construção de um protocolo de remoção ou de atendimento aos povos indígenas no caso de epidemias e catástrofes, inclusive com apoio à saúde mental e psicossocial, considerando as inúmeras pressões que esses povos já sofrem em seus territórios – como as indústrias da madeira, da mineração, do petróleo e gás, a atividade de grilagem, de posseiros e tantos outros que invadem as terras indígenas para exploração dos recursos naturais.

Mas, apesar dos esforços, segundo Kretã, a ajuda humanitária realmente efetiva para o auxílio dos povos indígenas afetados está vindo pela mobilização de uma “vakinha” organizada pela ArpinSul. As poucas comunidades que conseguiram ser evacuadas estão sendo atendidas com esses recursos.

No entanto, a realidade é que não se consegue chegar na grande maioria dos territórios afetados. Segundo o Relatório da FUNAI , atualizado no último dia 06 de maio, mais de 600 famílias ainda carecem de apoio, seja com alojamento, água, alimento, material de higiene, cobertores e roupas. O quadro se agrava uma vez que se sabe que esse número é subestimado. Com as comunicações cortadas pela falta de energia, e sem vias de acesso (salvo se for por helicóptero), ninguém consegue informar a realidade desses povos. Se conseguiram escapar, como estão de saúde, alimentação, se suas moradias foram destruídas – são todas perguntas sem respostas até o momento.

Ainda que com diferentes níveis de atuação, a resposta governamental se mostra insuficiente diante do cenário de terra arrasada no estado. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse novo contexto, em que as mudanças climáticas já são uma realidade, é crucial garantir, enquanto política de Estado, a participação efetiva dos indivíduos mais vulneráveis aos impactos da crise nos processos de discussão, financiamento e implementação de medidas e estratégias de adaptação aos novos parâmetros ambientais.

É preciso compreender que os povos indígenas são particularmente vulneráveis às mudanças climáticas devido à sua forte dependência e relação com o meio ambiente. Agora, eles se encontram na qualidade de refugiados climáticos, pois aqueles que já foram evacuados das zonas de inundação se deparam com um cenário de destruição dos seus meios de subsistência, moradias inabitáveis e ainda a quebra do vínculo cultural e espiritual com seu ecossistema local.

Apesar das imensas adversidades, o caminho ainda reside e resiste na incorporação dos conhecimentos desses povos ancestrais para uma adaptação climática eficiente. O reconhecimento e a valorização dessas práticas podem fornecer soluções sustentáveis e eficazes, auxiliando na recuperação e na mitigação dos impactos evidenciados.

Nesse sentido, sistemas tradicionais de manejo de água, agricultura de policultivo integrada a sistemas florestais, que aumentam a biodiversidade e a absorção da água pelo solo, o monitoramento do comportamento dos animais e padrões climáticos, o uso de materiais locais, o respeito ao meio ambiente e seus locais sagrados na conservação de recursos podem oferecer soluções longevas.

Para essas e tantas outras alternativas de sobrevivência nesses tempos extremos, a força, a sabedoria, a resiliência dos povos originários precisa ser ouvida. Mediante o crescente movimento entre os povos indígenas de reivindicação dos seus direitos territoriais, a fim de obter reconhecimento legal, a política pública precisa garantir a proteção e a autonomia na gestão dos verdadeiros guardiões das florestas, dos mangues, dos rios e dos mares.

Somente através de uma abordagem colaborativa e sensível às particularidades culturais indígenas é possível mitigar os impactos das mudanças climáticas trazendo benefícios para toda a sociedade.

Evento no ATL 2024 com representantes de embaixadas debateu impactos do Petróleo aos povos indígenas

Evento no ATL 2024 com representantes de embaixadas debateu impactos do Petróleo aos povos indígenas

Tenda da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no Acampamento Terra Livre (ATL 2024) reuniu representantes de países para debater impactos da indústria de petróleo e gás (P&G) sobre Terras Indígenas do Brasil.

A necessidade de uma transição energética justa que contemple as reivindicações dos povos indígenas pautou muitas falas das lideranças à mesa.

Instituto Internacional Arayara participou do evento, que também contou com representantes do Itamaraty; da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID); e de embaixadas de diversos países como Noruega, Suécia, Canadá, Alemanha, Reino Unido, Austrália, dentre outros.

 

Última quarta (24), terceiro dia do ATL 2024, contou com diversos eventos que debateram os combustíveis fósseis e os impactos dessa exploração às terras indígenas. 

Na tenda da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Instituto Internacional Arayara participou de uma mesa junto a lideranças indígenas, representantes de organismos internacionais e de diversas embaixadas para falar sobre o tema. Evento foi organizado pela APIB e abordou os grandes projetos direcionados à exploração de riquezas em Terras Indígenas (TI). 

Em suas falas na mesa de debate, lideranças indígenas da APIB, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Aliança Mesoamericana dos Povos e Florestas traçaram um panorama desta realidade sob a ótica dos povos indígenas do Brasil, denunciando violações de direitos e impactos ambientais associados às atividades da indústria petrolífera.

Importantes nome do movimento indígena brasileiro, como Alberto Terena, Fabiano Tupi, Kretã Kaigang e Txai Surui, também contribuíram com a discussão, levando reflexões sobre a construção de um futuro econômico e energético mundial que não impacte o Sul global com os passivos ambientais da ordem exploratória.

“Sabemos que muitos países estão fazendo esse debate, da transição energética, mas em nenhum momento, nenhum país, incluindo o Brasil, dialogou com os povo indígenas na construção desse debate, que hoje dizemos que é injusto porque ainda não há participação social”, comentou Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da APIB em sua fala.

Os indígenas também provocaram os países desenvolvidos presentes no evento com a fala de que “Todo e qualquer produto oriundo do Brasil, dentro da sua cadeia de produção, que haja rastreabilidade. Nós precisamos saber de onde está saindo, para onde está indo e quais são os impactos ocasionados em torno deste comércio, principalmente em relação às terras indígenas”. Dinamam Tuxá lembrou ainda que “o produto que sai daqui é muitas vezes para alimentar animais lá fora; isso é sobre nossas vidas”.

Diagnósticos do Instituto Arayara aliados à luta indígena

Kretã Kaingang, liderança da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), destacou o trabalho realizado pelo Instituto Internacional Arayara no diagnóstico dos territórios indígenas sob ameaças pela exploração de blocos de petróleo constantemente leiloados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustível (ANP).

“Arayara é hoje a organização que tem o melhor diagnóstico sobre os impactos dessa indústria às TIs do Brasil”, afirmou a liderança. “Nesses 20 anos de ATL, a gente passa por muitas dores relacionadas às lutas dos povos indígenas. Acabei perdendo uma guerreira, minha filha, que lutava contra os impactos dessa indústria de petróleo e gás no Brasil”, compartilhou Kretã. “Esse é o meu tema, e não posso deixar de falar nesse tom de dor.”

Evento contou com a participação de embaixadas de diversos países: Brasil; Alemanha; Austrália; Canadá; Dinamarca; Nova Zelândia; Noruega; Itália; Suécia; Suíça; Reino Unido e Indonésia.

Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) também participaram.