Com participação popular expressiva, audiência pública denuncia os riscos da privatização da Flona e PNB, pedindo a suspensão imediata do processo de concessão
Por iniciativa da deputada federal Érika Kokay (PT-DF), a Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos Deputados realizou, na última segunda-feira (7/7), uma audiência pública para debater a concessão da Floresta Nacional (Flona) e do Parque Nacional de Brasília (PNB) à iniciativa privada.
O encontro, no Plenário 3 do Anexo II da Câmara, reuniu parlamentares, representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), movimentos sociais e organizações da sociedade civil, entre eles o Instituto Internacional ARAYARA, o Movimento Caminhos do Planalto Central, Caminhadas Brasília, Alternativa Terra Azul e o Comitê da Bacia do Rio Paranaíba-DF.
A proposta do governo federal, conduzida pelo ICMBio em parceria com o BNDES e a Casa Civil, prevê delegar à iniciativa privada, por um período de 30 anos, a gestão das atividades de visitação, manutenção de infraestrutura e exploração comercial do PNB e da Flona. A justificativa apresentada é a de modernizar e ampliar os serviços oferecidos aos visitantes.
Durante a audiência, a representante do ICMBio, Iara Vasco, argumentou que a proposta busca corrigir deficiências estruturais e operacionais, como longas filas na entrada, ausência de serviços de alimentação, falta de vagas nos estacionamentos, insegurança e carência geral de infraestrutura.
Segundo Iara, a medida não se trata de privatização, mas de “desestatização”: “Há uma carência de pessoal e de condições para atender às demandas. O ICMBio precisa de apoio”, afirmou.
Impactos socioambientais
Representantes da sociedade civil e do Ministério Público Federal (MPF) criticaram a falta de diálogo e transparência no processo de concessão. A mobilizadora da ARAYARA, Raíssa Felippe, relatou que o procurador da República Felipe Fritz apontou diversas falhas na consulta pública, como a comunicação deficiente e a dificuldade de acesso ao material informativo. Segundo ela, o procurador destacou em seu discurso que muitos visitantes sequer sabiam que o processo estava em curso ou entendiam seus impactos.
Felippe lembrou ainda que o MPF chegou a recomendar ao ICMBio a suspensão das audiências públicas e a reabertura do debate, mas as medidas adotadas para atender à recomendação foram consideradas insuficientes.
As organizações presentes também denunciaram que as mudanças previstas na política de ingressos — como o fim da gratuidade para idosos a partir de 60 anos e crianças até 12 anos, além da restrição da meia-entrada apenas a estudantes de escolas públicas — tendem a excluir as populações mais pobres, especialmente as mais de um milhão de pessoas que vivem no entorno da FLONA e dependem desses espaços para lazer e contato com a natureza. “Você não governa o meio ambiente ignorando o povo”, criticou Lúcia Mendes, do Fórum em Defesa das Águas.
João Carlos, do Movimento Caminhos do Planalto Central, questionou a pressa do governo em implementar a concessão em um momento em que o Congresso ainda debate uma política nacional para a visitação das unidades de conservação, incluindo a criação de um fundo específico para financiar essas atividades. Ele também criticou a exclusão dos conselhos gestores das unidades do processo de decisão, que, segundo ele, foi conduzido de forma centralizada e sem diálogo com a sociedade.
Confira a audiência:
Ação judicial
No final de maio deste ano, a ARAYARA ingressou com uma Ação Civil Pública na Justiça Federal do Distrito Federal pedindo a suspensão imediata do processo de concessão dos serviços de visitação no Parque Nacional e na Floresta Nacional de Brasília. A ação aponta uma série de falhas graves, como divulgação inadequada, desrespeito aos planos de manejo das unidades, riscos à segurança hídrica, ausência de consulta às comunidades tradicionais e a possibilidade de exclusão social devido a tarifas que podem dificultar o acesso da população mais vulnerável.
Entre os problemas destacados está a falta de consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais do Distrito Federal, como prevê a Convenção 169 da OIT. Raíssa Felippe, da ARAYARA, lembrou que a apenas um quilômetro do Parque Nacional de Brasília está localizado o Santuário dos Pajés, território tradicionalmente ocupado. “Basta existir uma comunidade habitando a área para que a consulta seja um requisito indispensável nesse tipo de processo”, destacou Raíssa.
Direitos ameaçados
Os dados apresentados durante a audiência evidenciam a relevância dos parques: a Flona recebeu 67 mil visitantes em 2023 e alcançou 100 mil em 2024; já o PNB registrou 300 mil visitantes em 2023, sendo o oitavo parque mais visitado do Brasil. Ambas as unidades são fundamentais para a conservação ambiental e para a segurança hídrica do Distrito Federal, para não dizer da própria segurança nacional do Brasil, que tem em sua capital diversos serviços de inteligência, executivo, legislativo, judiciário e segurança nacional essenciais .
Para o diretor técnico da ARAYARA, Juliano Bueno, Doutor em Riscos e Emergências Ambientais, a estratégia de transferir a gestão das unidades de conservação para a iniciativa privada já vem sendo acelerada nos últimos anos , no antigo governo que chegou a propor, por exemplo, a concessão sem licitação das serras da Canastra e do Cipó à mineradora Vale, mesmo após os crimes ambientais de Brumadinho, porém o conceito a época não prosperou.
“Essa postura evidencia a prioridade dada à lucratividade e à mercantilização do Patrimônio Natural brasileiro, promovidas pelo ICMBio e pelo governo Lula, tratando as unidades de conservação como meras estratégias de mercado”, criticou Bueno.
Para ele, essa lógica desvirtua a função de proteção ambiental dessas áreas e exclui a participação social, especialmente das comunidades mais diretamente afetadas — como ciclistas, caminhantes, trabalhadores do turismo receptivo, além dos serviços gratuitos e da economia popular, que hoje garantem renda a centenas de pessoas: pipoqueiros, vendedores ambulantes, bicicleteiros, pequenos restaurantes do entorno, estacionamentos geridos por moradores de classes sociais menos favorecidas que complementam sua renda, entre outros.
Bueno também ressalta que o Parque Nacional de Brasília tem, para o morador do DF, a função de um parque ou bosque municipal, de uso cotidiano, sendo portanto um serviço público gratuito e essencial para milhares de usuários.
Encaminhamentos
Como encaminhamentos da audiência, foram aprovados requerimentos para solicitar informações detalhadas ao ICMBio sobre o estado atual das concessões em outras unidades de conservação, além de respostas sobre as questões levantadas durante a audiência. Também foi proposto ofício à Casa Civil, ICMBio, MMA e BNDES para suspender o processo de concessão, garantindo tempo para um diálogo mais amplo e democrático com a sociedade.