Valor interessa diretamente ao governo estadual, responsável por vender carvão mineral para a usina por meio da CRM
Por: Luciano Velleda I Foto: Divulgação/Eduardo Tavares
A Usina Termelétrica (UTE) de Candiota III encerrou seus contratos de comercialização de energia com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no último dia 31 de dezembro de 2024. Desde então, a usina está paralisada. O fato tem impulsionado um grande lobby político e econômico para que o governo federal publique uma Medida Provisória que reative os contratos de venda de energia com a Aneel ou que o Congresso Nacional derrube o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) feito na Lei Federal 15.097/2025, conhecida como a Lei das Eólicas Offshore, no dia 10 de janeiro.
O governo vetou o artigo 22 da lei, um “jabuti” que previa a prorrogação do contrato da UTE Candiota III até 2050, além de subsídios estimados em R$ 50 bilhões para a contratação de energia proveniente de termoelétricas movidas a gás e carvão. No jargão do Congresso Nacional, o “jabuti” é a inserção de algo sem relação com o texto original da lei.
Na justificativa do veto, o governo federal argumentou que a prorrogação dos subsídios contraria o interesse público por aumentar as tarifas de energia elétrica para consumidores residenciais e para o setor produtivo. O veto também destacou os impactos negativos na competitividade econômica e nos preços da energia, além de afirmar que a ampliação do uso de combustíveis fósseis é incompatível com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris, no que se refere à transição energética, à mitigação das mudanças climáticas e à descarbonização da matriz energética nacional.
Apesar de paralisada, a empresa Âmbar Energia, dona da Usina de Candiota III, recebeu R$ 12,7 milhões em subsídios no mês de janeiro para comprar carvão mineral. O recurso é proveniente da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo setorial embutido na conta de luz paga por todo brasileiro. Tal subsídio interessa diretamente ao governo gaúcho, pois a estatal Companhia Riograndense de Mineração (CRM) é a única fornecedora de carvão mineral para a UTE Candiota III. Em 2024, mesmo sem funcionar por cinco meses, Candiota III recebeu mais de R$ 78 milhões em subsídios da CDE. Entre 1 de janeiro e 18 de novembro de 2024, a usina ficou 56,5% do tempo (182 dias) fora de operação, sem gerar energia durante a trágica enchente que afetou o RS.
No último dia 12 de fevereiro, o governador Eduardo Leite (PSDB) esteve em Brasília, acompanhado de prefeitos e parlamentares gaúchos, em busca de uma solução para o futuro da usina. O grupo reuniu-se com o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, alegando que a cidade de Candiota tem 80% de sua economia dependente do carvão mineral – segundo dados do Departamento de Economia e Estatística do governo estadual. Em seus discursos, Leite tem expressado preocupação com os empregos da região afetados com a paralisação da usina, mas não costuma citar os interesses da CRM com a venda de carvão mineral para Candiota III.
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Desde que a usina parou de vender energia para a Aneel, o governo estadual assinou um contrato emergencial entre a CRM e a usina, cujo prazo de vigência terminaria nesta sexta-feira (28), mas a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) informou sua prorrogação até o próximo dia 29 de abril.
Questionada pelo Instituto Internacional Arayara, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), gestora da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), informou que o valor repassado em janeiro refere-se a dezembro de 2024 e que não tem conhecimento da Usina de Candiota III estar sem operação desde 1º de janeiro de 2025.
“A CCEE esclarece que os desembolsos realizados à empresa Ambar Sul Energia S.A. no mês de janeiro (competência dezembro/2024) refere-se aos valores relativos à compra mínima obrigatória de carvão mineral, conforme previsto pela Lei 10.438/2002 e REN ANEEL nº 1.016/2022. Não foi identificada suspensão regulatória oficial que tenha impactado tais desembolsos”, disse o órgão.
Na nota, a CCEE destaca que a Âmbar Energia possui contrato vigente para aquisição do carvão mineral (com a CRM), o que justifica, diz ela, o recebimento mensal dos R$ 12,7 milhões destinados à compra mínima obrigatória, assim como dos combustíveis secundários (caso haja consumo verificado). O órgão explica ainda que, caso existam valores de carvão mineral reembolsados e não consumidos para fins de geração de energia elétrica, a UTE Candiota III deverá devolvê-los à Conta de Desenvolvimento Energético no ano seguinte.
“A prorrogação do contrato foi uma medida emergencial, enquanto se aguarda a definição do futuro da Usina de Candiota III, após o encerramento de seus contratos de comercialização de energia com a Agência Nacional de Energia Elétrica, que venceram em 31 de dezembro de 2024”, avalia John Wurdig, engenheiro ambiental e gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara.
Ele pondera que a situação da CRM e da Usina Candiota III é complexa, envolvendo questões ambientais, a política energética nacional, além de interesses de diversos atores. “A prorrogação do contrato com a Âmbar representa apenas um capítulo dessa história, que ainda trará novos desdobramentos nos próximos meses e, agora, conta com o total apoio do governador Eduardo Leite e do lobby do setor de mineração de carvão”, afirma.
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Foto: Divulgação/Eduardo Tavares
O futuro da CRM
Há quem diga que o Rio Grande do Sul é o único estado no mundo cuja Secretaria de Meio (Sema) abriga uma mineradora de carvão. Exagero ou não, certamente o caso gaúcho é único no Brasil. Desde 2019, a Sema inclui a Companhia Riograndense de Mineração (CRM), tendo a extração de carvão como política pública regulada pela lei de 2017 que criou a Política Estadual do Carvão Mineral e o Polo Carboquímico.
Apesar de abrigada numa pasta de meio ambiente, a CRM tem deixado a desejar no aspecto ambiental. Entre 2018 e 2024, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) aplicou 24 autos de infração contra a estatal, somando R$ 1,1 milhão. As irregularidades incluem degradação hídrica e descarte inadequado de rejeitos, sendo a mais grave a exploração de carvão sem licenciamento, afetando áreas protegidas e resultando numa multa de R$ 738 mil.
Questionado sobre as infrações, o governo Leite reconhece que os autos de infração aplicados dizem respeito a todas as unidades da CRM, ou seja, Minas do Leão, Cachoeira do Sul e Candiota. Porém, ao invés de explicar o problema, o Palácio Piratini preferiu enaltecer o trabalho da Fepam, destacando que o órgão ambiental “atua fortemente para garantir o cumprimento do que está previsto no licenciamento, reforçando a autonomia da Fepam no que tange a fiscalização ambiental e o compromisso do governo em garantir o cumprimento das regras ambientais, independentemente se empresa pública ou privada”.
Apesar do governo estadual anunciar a intenção de privatizar a CRM, na prática, a proposta não tem avançado. Segundo o Piratini, a prioridade foi dada à desestatização de outras sociedades de economia mista vinculadas à Sema, com base nas autorizações legislativas ocorridas a partir de 2019. Após a conclusão desses processos, o governo estadual diz avaliar “diversas questões para decidir sobre a conveniência e oportunidade de alienar sua participação na CRM”.
Embora o governo gaúcho não diga, não é difícil supor que as “questões” mencionadas para decidir a privatização da CRM tenham ligação com o próprio futuro de Candiota III. Sendo a CRM a única fornecedora de carvão mineral para a usina e estando a termelétrica com suas atividades indefinidas, a estatal gaúcha perde valor de mercado se não tiver a garantia de que terá para quem vender o carvão que explora.
No fim de 2023, inclusive, o governo estadual firmou um contrato com a consultoria Alvarez & Marsal para diagnóstico, avaliação e definição de estratégias futuras para a CRM. Contratada sem licitação, a consultoria custou R$ 5 milhões aos cofres públicos. Perguntado sobre os resultados do trabalho, o Piratini foi genérico na resposta, afirmando que a consultoria teve como objetivo realizar um diagnóstico abrangente das diversas áreas da CRM, identificando oportunidades de melhoria.
“A consultoria apontou ações estratégicas que visam aumentar a eficiência e a competitividade do negócio. Alguns desses pontos já estavam sendo trabalhados pela administração da CRM, enquanto outros estão sendo avaliados ou estão em processo de implementação. A CRM segue comprometida com a evolução contínua e com a adoção das melhores práticas para o aprimoramento de suas operações”, diz o governo estadual.
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Segundo a plataforma do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a UTE Candiota III é, atualmente, o maior emissor de gases de efeito estufa no Rio Grande do Sul. Entre 2020 e 2022, a usina esteve entre as seis termelétricas que mais emitiram gases de efeito estufa (GEE) no Sistema Interligado Nacional, ocupando a 1ª posição em 2020 e 2022 e a 6ª em 2021.
Usando a metodologia da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (US-EPA) para cálculo de emissões, combinada com dados do Ibama e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o Instituto Arayara estima que, entre 2011 e 2023, Candiota III tenha emitido 21,5 milhões de toneladas de CO2 equivalente (tCO2e). O pico da emissão ocorreu em 2021, durante a crise hídrica, com 2,4 milhões de tCO 2 e.
Além do impacto climático, a entidade destaca que muitas dessas emissões violaram a legislação ambiental sobre a qualidade do ar. No dia 6 de dezembro de 2024, o Ibama multou a Âmbar em R$ 500 mil devido a problemas ambientais da UTE Candiota III. O processo tramita sob sigilo no órgão federal.
Apesar do contexto da crise climática causada por gases de efeito estufa, cujos resultados estão sendo duramente sentidos pelos gaúchos e que, inclusive, motivou a ida do governador para a Holanda nos últimos dias, o governo Leite não vê contradição com o empenho para que Candiota III siga operando – e a CRM continue vendendo carvão mineral.
“Mesmo com todos os compromissos assumidos pelo Rio Grande do Sul visando a neutralidade de carbono, seria leviano da parte do governo do Estado não levar em conta o impacto econômico na região que tem mais de 80% da economia ligada à cadeia do carvão”, alega o Piratini.
O governo gaúcho argumenta que o encerramento abrupto da usina impacta diretamente em mais de 4,5 mil empregos, entre diretos e indiretos, o que causaria um “colapso econômico” em Candiota e em parte da região da Campanha. “Assim, levando em consideração as Agendas e Acordos climáticos e ambientais assumidos pelo Estado nos últimos anos, e visando um horizonte de curto, médio e longo prazo, o compromisso é a descarbonização garantindo o emprego e renda dos locais afetados. O Plano de Transição Energética Justa para as regiões da Campanha e Baixo Jacuí norteará as ações futuras no âmbito da cadeia carbonífera”, explica.
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O Piratini diz reconhecer a urgência de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e estar comprometido com uma política de transição energética “justa e sustentável”. De acordo com o governo, isso inclui ampliar a participação de fontes renováveis na matriz energética do RS e buscar alternativas que permitam o encerramento definitivo das operações da usina em um prazo viável, “sem desconsiderar as necessidades das comunidades afetadas”.
“O apoio à transição na UTE Candiota III, portanto, é uma medida necessária diante de um cenário complexo, que exige equilíbrio entre a responsabilidade ambiental e a justiça social. O governo apoia a construção de alternativa para uma transição energética que seja feita de forma planejada, minimizando os impactos econômicos e sociais, ao mesmo tempo em que avança rumo a uma matriz energética mais limpa e sustentável”, afirma o Piratini.
Entre os compromissos assumidos pelo governo estadual para enfrentar o aquecimento global estão a adesão do RS às campanhas globais Race to Zero e Race to Resilience, vinculadas à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. O artigo 2º do Decreto nº 56.347, assinado por Leite em janeiro de 2022, determina que o estado deve evitar novos incentivos a atividades que contribuam significativamente para as emissões de gases de efeito estufa, salvo aqueles destinados à redução dessas emissões.
Novamente, o governo estadual diz não haver contradição entre a adesão às campanhas globais – que costumam aparecer nos materiais oficiais como ação de enfrentamento à crise climática – e o apoio à retomada da operação da UTE Candiota III.
“O governo do Rio Grande do Sul está desenvolvendo estudos com o objetivo de desenvolver um Plano de Transição Energética Justa do Estado, que busca garantir que a mudança para energias renováveis e a descarbonização da matriz elétrica ocorram de maneira equilibrada, promovendo a inclusão social e o desenvolvimento econômico. O 1º Workshop, dentro do cronograma, foi realizado no dia 6 de fevereiro, quando foram abordados os impactos socioeconômicos da transição, metodologias do plano e discussões técnicas sobre as regiões envolvidas, contando com a participação de especialistas do setor”, defende o Piratini.
O evento, no entanto, é contestado por John Wurdig, engenheiro ambiental e gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara. Para ele, o evento realizado pelo governo estadual foi um “workshop de escritório”, por não ter contado com a participação de ONGs, ambientalistas e nem mesmo o Sindicato dos Mineiros de Candiota. Diante disso, a Arayara entrou com Ação Civil Pública na Justiça pedindo a garantia da participação de vários atores da academia no plano de transição.
De qualquer forma, chama atenção que o governo estadual tenha promovido o 1º workshop para tratar do Plano de Transição Energética Justa somente agora em fevereiro, considerando que o fim do contrato de Candiota III com a Aneel é um fato conhecido há alguns anos.
Em defesa de sua posição pró-carvão, o governo Leite justifica que 80% da matriz elétrica do RS vem de fontes renováveis e que o carvão mineral representa 11% das emissões de CO2 equivalentes no uso de energéticos. Destes 11%, diz o Piratini, 4% é em uso industrial e 7% são nas Usinas Termelétricas, conforme o Balanço Energético do Estado.
“Sendo assim, a taxa de emissões elencadas sobre a UTE Candiota III, tecnicamente não invalida as agendas climáticas que o Estado adotou ao longo dos anos. O Estado segue com o compromisso de neutralizar as emissões até 2050, porém de forma responsável e justa, levando em conta o meio ambiente, o social e o econômico”, afirma o governo gaúcho.
Na última segunda-feira (24), durante visita à cidade de Rio Grande, o presidente Lula deu uma declaração que animou os defensores de Candiota III e pode indicar que o governo federal tomará alguma atitude em breve, apesar do veto na Lei das Eólicas Offshore. Durante cerimônia de assinatura de contrato da Transpetro, subsidiária da Petrobras, com o consórcio formado pelos estaleiros Rio Grande e Mac Laren para a aquisição de quatro navios, Lula disse ser contra os combustíveis fósseis, mas enquanto o Brasil precisar deles, o País usará.
“Gostei muito dessa fala do presidente Lula. Eu também sou contra as emissões de gases de efeito estufa, mas enquanto não tivermos a transição energética que consigamos realocar os trabalhadores, temos que utilizar enquanto não tivermos alternativa”, concorda Hermelindo Ferreira, diretor de comunicação do Sindicato dos Mineiros de Candiota.