O Leilão de Reserva de Capacidade na Forma de Potência de 2026 (LRCAP 2026), anunciado no final de agosto pelo Ministério de Minas e Energia (MME), reacendeu o debate sobre os rumos da política energética brasileira. Apesar de ser apresentado como mecanismo para garantir segurança elétrica em meio ao avanço das fontes renováveis intermitentes, o certame vem sendo criticado por especialistas e entidades do setor por abrir espaço para usinas a carvão, óleo combustível e gás natural, em aparente contradição com as metas climáticas assumidas pelo país.
O engenheiro ambiental e Coordenador de Meio Ambiente e Engenharia do Instituto Internacional ARAYARA, Urias Neto, alerta que a Nota Técnica nº 84/2025, que embasa um dos editais, evidencia a pressão de lobbies fósseis para manter ativos poluentes no parque gerador. “A crítica se intensifica porque, embora o MME defenda a contratação de potência flexível para complementar eólica e solar, o carvão não atende aos requisitos de atendimento da potência em curto espaço de tempo exigidos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)”, pontua. Segundo Neto, estudos internacionais apontam que térmicas a carvão têm rampas lentas e tempo de partida que pode levar horas ou até dias, características incompatíveis com a função de backup rápido.
A contratação de usinas termelétricas a carvão mineral, podem agravar ainda mais o problema dos cortes forçados na geração energia renovável (curtailment) no Brasil, gerando ainda mais prejuízos para usinas de geração centralizada. Alexandre Zucarato, presidente do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), órgão responsável por controlar a rede elétrica nacional, afirmou em evento do setor elétrico brasileiro (04/09/2025): “Se o poder concedente pergunta ao ONS, você consegue operar térmicas com t-on de 18h, com rampa de 7h? […] sim a custo do aumento do curtailment“.
Brechas e distorções
O LRCAP 2026 surge após o fracasso do leilão anterior, cancelado por judicialização e falhas regulatórias. Agora, além de repetir os problemas, o novo modelo abre espaço para usinas a carvão competirem diretamente com térmicas a gás. Neto pontua que o argumento do MME é que parte dessas plantas estaria amortizada, oferecendo preços mais baixos. Mas dados do setor mostram que o custo variável do carvão (R$ 150/MWh – Candiota III, em janeiro de 2025) é reduzido, frente à média de R$ 985/MWh (Monitor Energia) das térmicas a gás, distorcendo a concorrência.
O edital não transparece quais térmicas a carvão ao certo estariam habilitadas para concorrer no leilão, porém como este ainda está em consulta pública os critérios de enquadramento ainda podem ser alterados. “Na prática, trata-se de uma estratégia para prolongar a vida útil de ativos antigos e emissores de gases de efeito estufa, como as usinas Figueira (PR) e Candiota III (RS), Porto de Itaqui (MA) e Pecém 2 (CE)”, afirma. Neto lembra que a polêmica se soma a decisões recentes que beneficiaram o setor, como a Lei de Transição Energética Justa aprovada no governo Bolsonaro que estendeu a operação do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda até 2040, e às tentativas de manter incentivos a projetos semelhantes em novos marcos legais.
Flexibilidade questionada
Outro ponto levantado pelo engenheiro da ARAYARA é a definição dos parâmetros operativos. “O MME pediu ao ONS que revisasse os limites de operação das usinas a carvão, e o resultado foi um tempo mínimo de funcionamento de 18 horas. Isso permitiria que essas plantas permanecessem ligadas em 75% do ano, funcionando como geração de base disfarçada de reserva de potência – justamente o oposto da proposta original do leilão”, ressalta.
O engenheiro relata que a situação se agrava com regras que tratam de retrofits ou ampliações de empreendimentos existentes, com menos exigências de licenciamento, que foi facilitado pela Lei Federal nº 15.190/2025, fruto do PL da Devastação.
O papel do gás
“Se o carvão traz graves questionamentos ambientais, o gás natural expõe dilemas econômicos”, avalia John Wurdig, gerente de Transição Energética da ARAYARA. Segundo ele, documentos do MME revelam que a estratégia do governo é manter artificialmente a malha de transporte de gás ativa, em um cenário de crescente migração de térmicas para modelos isolados baseados em GNL. “O leilão foi desenhado para criar demanda cativa para os gasodutos, o que, na prática, significa repassar esses custos, de pagar para ter gás disponível, para o consumidor.”
De acordo com Wurdig, alternativas tecnológicas, como o armazenamento em baterias, acabam ficando em segundo plano. Estudo da Aurora Energy Research estima que baterias poderiam gerar economia de até R$ 11,2 bilhões por gigawatt contratado, além de garantir respostas rápidas sem os impactos ambientais das térmicas fósseis”, afirma.
Risco de retrocesso
A combinação de brechas regulatórias, subsídios implícitos e falta de incentivo a soluções modernas leva especialistas a apontar o LRCAP 2026 como um retrocesso. Em vez de ampliar a flexibilidade e a confiabilidade do sistema elétrico, o leilão tende a encarecer tarifas, reforçar a dependência de fontes poluentes e comprometer a transição energética brasileira em pleno ano da COP30, que será realizada em Belém.
“O governo perde a chance de promover uma reforma estrutural no setor elétrico. Em vez de apostar em complementaridade entre renováveis, hidrelétricas reversíveis e baterias, insiste em manter ativos obsoletos e emissores”, avalia Hirdan Costa, especialista em energia e colaboradora da ARAYARA.