Brasília foi palco, nesta terça-feira (02/09), de uma audiência pública na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados que escancarou os riscos da expansão da indústria do petróleo sobre a pesca, a biodiversidade e a segurança alimentar do país. O evento, solicitado pelo deputado Raimundo Costa (Pode-BA), marcou o lançamento do estudo técnico inédito “Do Mar à Mesa: Como a pesquisa para a exploração de petróleo ameaça a vida”, elaborado pelo Instituto Internacional ARAYARA.
Apresentado por Kerlem Carvalho, coordenadora de Oceano e Águas da ARAYARA, o estudo mostra como a sísmica — etapa de prospecção que utiliza canhões de ar comprimido para mapear o subsolo marinho — se tornou uma ameaça direta aos oceanos e à subsistência de milhares de famílias.
Carvalho explica que as ondas acústicas, que podem chegar a 263 decibéis e se propagar por até 300 mil km², impactam na vida marinha , afugentando baleias, golfinhos e tartarugas, além de impor zonas de exclusão que impedem os pescadores de acessar suas áreas tradicionais por até dois anos. “Não se trata apenas de biodiversidade: trata-se de comida na mesa e de autonomia econômica para milhares de famílias”, alertou.
Confira audiência
Comunidades tradicionais ameaçadas
As falas dos convidados presentes na audiência revelaram a preocupação crescente de comunidades pesqueiras. Evandro Soares de Araújo, presidente da Confederação Nacional de Pescadores (CNPA), denunciou o avanço desordenado da indústria fóssil: “Não somos contra a economia, mas não aceitaremos a exclusão dos pescadores. O que vemos é que a pesca artesanal está sendo empurrada para a extinção.” Ele chamou atenção para a concentração de navios na Bacia de Santos e para os riscos de acidentes catastróficos próximos à costa.
A crítica foi reforçada por Andréa Rocha, do Conselho Pastoral dos Pescadores, que destacou os resultados da terceira edição do Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras, construído a partir da escuta de 450 comunidades em 16 estados brasileiros. O documento denuncia violações recorrentes e mostra como a pesca artesanal vem sendo profundamente ameaçada por pressões externas que colocam em risco sua sobrevivência.
“Há contaminação das águas, deslocamento de comunidades, perda de autonomia econômica — especialmente das mulheres pescadoras — e a ausência de reparação efetiva”, afirmou. Rocha ainda recordou o maior crime ambiental da história recente: o derramamento de petróleo de 2019, que paralisou a atividade de 500 mil pescadores em nove estados. “Até hoje não houve resposta do Estado. Os crimes se repetem e a omissão também.”
O relatório registra 48 novos conflitos desde 2020 e atualiza outros 37, evidenciando ameaças como a PEC 03/2022, que prevê a privatização de praias, além de projetos de petróleo na foz do Amazonas e de usinas eólicas offshore. Ela ressalta que, pela primeira vez, a publicação incorpora os impactos das mudanças climáticas, como as secas na Amazônia e as enchentes no Rio Grande do Sul, que afetam diretamente a pesca, a saúde e a economia local. Esses dados devem embasar os debates da COP 30, que será realizada em Belém, em novembro.
O debate também expôs contradições do próprio governo. Gilberto Sales, diretor do Departamento de Gestão Compartilhada de Recursos Pesqueiros (DPES) do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), reconheceu o desafio de compatibilizar a pesca e a exploração de petróleo, mas afirmou que “não há como nos descolarmos da indústria fóssil”.
Já Itagyba Alvarenga Neto, coordenador-geral de Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Marinhos e Costeiros (CGMac) do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), ressaltou que a atividade pesqueira sempre recebeu atenção por parte do órgão e que os processos de licenciamento seguem diretrizes já estabelecidas. Destacou ainda que o Ibama atua na execução de políticas públicas, não sendo de sua competência definir como se dará o uso do ambiente marinho. No entanto, reconheceu a ausência de políticas prévias e de instrumentos capazes de reduzir os conflitos existentes.
Quêner Chaves Dos Santos,Coordenador-Geral de Cadeias Produtivas, Fomento e Inovação (SNPA) do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), destacou a centralidade dos alimentos aquáticos para a segurança alimentar e defendeu que os impactos da indústria fóssil sejam tratados de forma séria, lembrando crimes ambientais como Mariana e Brumadinho. Ele anunciou ainda que o governo pretende apresentar, durante a COP30, o primeiro plano nacional da pesca artesanal, com propostas para garantir direitos, territórios e políticas públicas ao setor.
Assine a petição : Em Defesa de Quem Vive do Mar!
No final da audiência, a representante do CPP leu o manifesto da campanha Mar de Luta, que reivindica reparação integral aos pescadores afetados, criação de um grupo de trabalho interministerial e o fim da negligência histórica com as populações que sustentam a pesca artesanal no Brasil.
Para o diretor técnico da ARAYARA, Juliano Bueno, o estudo apresentado e as falas dos convidados convergiram em uma conclusão evidente: a expansão da indústria fóssil representa um risco não apenas ambiental, mas também social, econômico e cultural. Ele destacou que o tema da sísmica não é novo, mas que, pela primeira vez, a sociedade brasileira tem acesso a esses dados reunidos de forma integrada em um único estudo, com base nos dados do Monitor Oceano e Amazônia Livre de Petróleo.
“Os impactos da indústria fóssil se manifestam em diferentes setores e todos precisam ser considerados na conta climática e econômica — seja na vida marinha ou na sobrevivência de pescadores e pescadoras. Se o atual modelo de exploração for mantido, o futuro da pesca artesanal — e, consequentemente, da segurança alimentar brasileira — estará gravemente ameaçado”, alertou.
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