Se ainda faltassem provas de que o governo do Brasil está na contramão climática, a decisão da União Europeia (UE), de taxar a importação de produtos intensivos em carbono, mostra que o aumento da participação na matriz energética de combustíveis fósseis e o desmatamento que bate sucessivos recordes são contraprodutivos até às forças econômicas que sustentam o Palácio do Planalto, e que têm na Europa um dos principais destinos das exportações brasileiras.
A situação é tão grave que coloca o Brasil sob os riscos de ser excluído dos mais importantes fluxos de comércio mundial, além da nova geopolítica da transição energética, esta que já vem sendo liderada com larga vantagem por China, EUA e Europa.
A mostra mais recente dessa situação esdrúxula se deu em 14 de julho. A UE anunciou que submeterá suas importações aos padrões ambientais europeus, que caminham no sentido de se descarbonizar rapidamente. Será frontalmente atingido, por exemplo, o grande negócio agrícola brasileiro, um dos pilares de sustentação política do Planalto.
Quem não diminuir o percentual de carbono em suas exportações à Europa (e, em breve, também aos EUA e à China), não mais conseguirá vender aos centros dinâmicos do capitalismo global. Mas, tal inflexão parece não importar ao governo brasileiro, que sempre adota políticas públicas que aumentam a proporção de carbono no PIB nacional.
É o caso da extensão do subsídio à indústria carbonífera de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Com apoio da bancada governista no Congresso, ações neste sentido foram introduzidas na Medida Provisória (MP) da indefensável privatização da Eletrobrás.
Apesar ter desenvolvido megaprojetos de extremo impacto ambiental e social, a Eletrobrás também foi central na construção da infraestrutura que garante segurança elétrica à Nação, a começar pelo Sistema Integrado Nacional (SIN). Essa infraestrutura é baseada na hidroeletricidade, que emite menos gases causadores do aquecimento do planeta em comparação com sistemas baseados em combustíveis fósseis.
O SIN permite otimizar uma rara qualidade, de que dispõem o Brasil e outros pouquíssimos países: dois regimes hidrológicos complementares. Quando falta água nas barragens das hidrelétricas no sul do País, aumenta-se o despacho das usinas localizada na região norte – e vice-versa.
Mas, esquartejada, como prevê a MP elaborada pelo governo e próceres do Centrão, a Eletrobrás perderá o protagonismo nesse engenhoso sistema, o Brasil passará a correr seríssimo risco de falta generalizada de energia elétrica e terá de utilizar muito mais carvão e gás natural para gerar eletricidade.
Foi assim que os parlamentares da base de apoio do governo deram sobrevida à suja e ultrapassada cadeia do carvão, que azeita os esquemas menos republicanos de poder nos rincões do Brasil.
Esses esquemas permitiram a inclusão na MP de privatização da Eletrobras de dispositivo flagrantemente ilegal, que dá ao Congresso capacidade de viabilizar novas usinas termelétricas – uma prerrogativa do Executivo. E que, de quebra, ainda levará ao aumento da conta de energia.
Além disso, há, também, a 17ª Rodada de Licitação de áreas marinhas para exploração de petróleo, que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) planeja realizar em 7 de outubro. Eivada de irregularidades, a 17ª Rodada foi parcialmente suspensa pela Justiça federal em Santa Catarina, a pedido do Instituto Internacional Arayara e do Observatório do Petróleo e do Gás. Em decisão preliminar, foi retirada do leilão a oferta de blocos localizados na bacia marítima de Pelotas, até a legislação ambiental seja cumprida.
Por sua vez, o crescente desflorestamento praticado pelo amplo arco de negócios escusos defendidos pelo ex-Ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles também contribui para carbonizar a economia e afastar o Brasil de 446 milhões de consumidores europeus de alto poder aquisitivo.
A carbonização da economia brasileira também produzirá efeitos no campo geopolítico.
Como observou a professora Monica Bruckman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em artigo publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo, os planos de descarbonização da Europa visam, também, a disputa com a China e os EUA pela hegemonia da assim chamada “transição energética”.
“Quem pensa que o Pacto Verde Europeu é apenas uma política ambiental está enganado. Trata-se antes de uma estratégia ambiciosa para a transformação da economia e sociedade europeias com o objetivo de alcançar a neutralidade climática e com a ambição de posicionar a UE como líder mundial neste processo, pronta a estabelecer relações estratégicas com a Ásia, principalmente com a China, África e América Latina, através da chamada “Diplomacia do Pacto Verde”, escreveu Bruckman.
Ela continua: “Esta estratégia multidimensional é colocada como o eixo articulador das várias políticas da UE em todos os setores. Por conseguinte, tem implicações científico-tecnológicas, de segurança e defesa e um potencial impacto geopolítico a nível global”.
A acadêmica destaca também que as medidas europeias planejam a “transformação do setor industrial em todas as suas cadeias de valor nos próximos 5 anos. Isto significará certamente a destruição ou reconversão de complexos industriais inteiros, que serão substituídos por novos complexos industriais que, por sua vez, dependerão de novos ciclos tecnológicos”.
Mas, ao insistir nas indústrias carbonífera, petrolífera e desmatadora, o governo prova que desconhece o Brasil em suas relações globais profundamente distintas daquelas em que se davam os esquemas que levaram ao poder esse grupo que se instalou no Palácio do Planalto.
Ele é portador de uma visão de mundo que induz a Nação a sucessivos retrocessos históricos.
Diretora do Instituto Internacional Arayara, é mestra em direito internacional e resolução de conflitos pela Leopold-Franzens Universität Innsbruck e Universidad Para La Paz.
Esse artigo foi publicado na edição desta sexta (23) do jornal Valor Econômico: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/brasil-perto-do-carvao-e-longe-da-ue.ghtml
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