Com a aproximação da COP30, Brasil e Colômbia apresentam visões distintas de uma “transição energética justa” para os países em desenvolvimento
Na preparação para a cúpula do clima da ONU deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem se apresentado como um defensor global do meio ambiente, apontando para a forte redução do desmatamento na Amazônia desde que assumiu o cargo. Por isso, ambientalistas ficaram consternados quando, poucas semanas antes da COP30 o governo Lula aprovou um pedido da estatal Petrobras para explorar petróleo na foz do rio Amazonas, região conhecida como Margem Equatorial.
“Enquanto o mundo precisar, o Brasil não vai abrir mão de uma riqueza que pode melhorar a vida do povo brasileiro”, disse Lula a jornalistas após a decisão.
Com o mundo passando pela transição multitrilionária para a energia limpa, a ideia de que essa mudança única deveria beneficiar a todos ganhou força rapidamente. Dos planos nacionais de energia verde apresentados este ano antes da cúpula da COP, que começa em 10 de novembro, quase três quartos fazem referência a uma “transição energética justa”.
Embora a expressão seja popular, as interpretações são muito diferentes. Quase todos os países aceitam que em algum momento a produção de petróleo e gás terá de ser interrompida para salvar o planeta, mas muitas nações em desenvolvimento não têm o desejo de liderar esse processo, especialmente no momento em que o maior produtor mundial de petróleo, os Estados Unidos, uma economia rica, não faz nenhum esforço para reduzir a produção.
Países como o Brasil enfrentam um dilema, segundo Alfonso Blanco, que dirige o programa de transição energética do centro de estudos Inter-American Dialogue de Washington. “Se eu me comprometer de parar de produzir petróleo e gás voluntariamente, perco a chance de monetizar minhas reservas enquanto outros estão utilizando seus recursos. Estou perdendo minha chance de desenvolvimento.”
Lula compartilha dessa visão. Para ele, uma “transição energética justa” envolve maximizar a produção de petróleo e gás e dividir parte dos lucros com os mais pobres. Mas, embora esse conceito goze de amplo apoio político, tanto dentro quanto fora do país, não é a única visão existente.
Na vizinha Colômbia, o presidente Gustavo Petro vem tentando inaugurar uma nova abordagem de política ambiental, que ele espera ver copiada por outros países. “Estamos dispostos a migrar para uma economia sem carvão e petróleo”, disse ele em seu discurso de posse em agosto de 2022, nove meses após a conferência da COP26 em Glasgow. “Protegerei nosso solo e subsolo, nossos mares e rios, nosso ar e nosso céu… A Colômbia será uma potência mundial da vida.”
Desde então, ele interrompeu todas as novas licenças de exploração de petróleo e gás, aumentou os impostos sobre as empresas de combustíveis fósseis e vem desenvolvendo uma economia alternativa baseada no turismo e na agricultura sustentável.
Ainda assim, nos três anos desde que Petro assumiu, o entusiasmo por uma transição energética acelerada em algumas partes do mundo em desenvolvimento parece ter diminuído. As economias emergentes têm se mostrado relutantes em eliminar gradualmente os combustíveis fósseis além do carvão.
Com a China sendo, de longe, o maior emissor de carbono do planeta, e as emissões na Europa e nos EUA em queda, as ações dos países em desenvolvimento vão, em grande parte, determinar o ritmo das mudanças climáticas nas próximas décadas.
Mas alguns afirmam que, no modelo defendido pelo Brasil, faltam incentivos para colocar em prática as propostas de descarbonização. “O argumento de que a exploração de petróleo financiará a transição energética carece de mecanismos concretos para que isso aconteça”, diz Juliano Bueno de Araujo, diretor técnico do Arayara International Institute, uma organização não governamental brasileira.
No momento, o Brasil segue em frente com os planos de aumentar a produção de petróleo. O governo Lula quer transformar o país no quarto maior produtor mundial de petróleo até 2030, à frente do Iraque e dos Emirados Árabes Unidos.
Ambientalistas e defensores dos direitos indígenas estão indignados. “Lula acaba de enterrar no fundo do mar sua pretensão de ser um líder climático”, diz Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, ao se referir à decisão de autorizar a perfuração na foz do Amazonas. O Greenpeace e sete outras ONGs entraram com uma ação judicial, num esforço para anular a licença concedida para um poço exploratório.
“Esse projeto é predatório, ignora a voz dos povos indígenas, os verdadeiros guardiões da floresta, e expõe as contradições do governo ao investir em combustíveis fósseis, a principal causa da crise climática, poucos dias antes da COP30”, diz Kleber Karipuna, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Mas o governo Lula argumenta que explorar as abundantes reservas de petróleo em alto-mar do Brasil — em grande parte destinadas à exportação — ajudará a financiar investimentos verdes e programas sociais em uma sociedade marcada por uma profunda desigualdade.
O ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, diz que a geração de energia limpa do Brasil — em sua maioria proveniente de hidrelétricas — e a liderança em biocombustíveis já fazem do país o “líder da transição energética global”.
“Os países que já se industrializaram, com renda per capita muito acima da média do Sul Global e do Brasil, deveriam ter um pouco mais de consciência de que vivemos em um único ecossistema”, disse ele ao “Financial Times” este ano. “Para salvar esse ecossistema, precisamos de uma transição energética justa e não imposta. E, para que ela seja justa, tem que haver dinheiro na mesa.”
Em todo o mundo em desenvolvimento, a visão de Silveira encontra muitos apoiadores. A prioridade da Nigéria, maior produtora de petróleo da África, é transformar petróleo e gás em receita, enquanto a Arábia Saudita pretende descarbonizar o consumo de energia internamente, mas segue investindo para manter sua posição de segundo maior produtor mundial de petróleo.
Na América Latina, a Argentina está aumentando a produção o mais rápido possível a partir de seus gigantescos campos de xisto de Vaca Muerta, na Patagônia. A Pemex, estatal de petróleo do México, pretende reabrir poços antigos para extrair o máximo possível.
Por outro lado, Chile e Uruguai estão na dianteira das energias renováveis, mas ambos têm economias relativamente pequenas.
Na Venezuela, que detém as maiores reservas de petróleo conhecidas do mundo, o aumento da produção é um dos raros objetivos compartilhados tanto pelo presidente socialista Nicolás Maduro quanto por sua inimiga declarada, a líder opositora conservadora Maria Corina Machado.
O Suriname, um pequeno país na costa caribenha que antes se promovia como emissor líquido negativo de carbono, pretende começar a produzir petróleo offshore pela primeira vez em 2028. A operadora do projeto, a TotalEnergies da França, diz que a iniciativa é “um exemplo perfeito de nossa estratégia de transição”. A vizinha Guiana, coberta por florestas em 85% de seu território, está aumentando ainda mais agressivamente a produção de petróleo, com sua economia quase quintuplicando entre 2019 e 2024 como resultado disso, em campos de exploração vizinhos aos que o Brasil pretende explorar na Margem Equatorial.
Nenhum produtor de petróleo da América Latina vem buscando um futuro com emissões líquidas zero com tanto afinco como a Colômbia, sob seu primeiro presidente de esquerda.
Cerca de seis semanas após sua posse, Petro, um ex-gerrilheiro urbano, disse na Assembleia Geral da ONU em Nova York, que o carvão e o petróleo “podem exterminar toda a humanidade”, um fenômeno que atribuiu ao capitalismo.
“O desastre climático que vai matar centenas de milhões de pessoas não está sendo causado pelo planeta, está sendo causado pelo capital”, disse ele. “Pela lógica de consumir cada vez mais.”
Admirador do pouco conhecido economista ecológico Nicholas Georgescu-Roegen — uma das principais influências da corrente do “descrescimento”, que defende a redução das economias para aliviar a pressão sobre os recursos naturais —, Petro agiu rapidamente para transformar em realidade sua visão de um mundo sem combustíveis fósseis.
Ele aumentou os impostos sobre as empresas de petróleo, gás e mineração, impôs uma moratória sobre novas licenças para exploração de petróleo e gás e pressionou pela proibição do fraturamento hidráulico (fracking). Durante a conferência do clima em Dubai, em dezembro de 2023, Petro anunciou que a Colômbia iria se unir a um pequeno grupo de países — em sua maioria, pequenas nações insulares — que buscam negociar um chamado “Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis”, voltado à eliminação gradual do petróleo, gás e carvão.
A inciativa de Petro foi economicamente arriscada. A Colômbia produz cerca de 750 mil barris de petróleo equivalente por dia. Petróleo e minerais, como o carvão, representaram 44% das receitas de exportação da Colômbia em 2022, segundo a OCDE. Um estudo realizado no ano seguinte pelo Ministério das Finanças da Colômbia e a Agência Francesa de Desenvolvimento constatou que os hidrocarbonetos respondiam por cerca de 10% a 15% da receita total do governo.
Os grandes investimentos e petróleo e gás pararam. Chevron, ExxonMobil, ConocoPhilips e Repsol deixaram o país ou reduziram seus projetos na Colômbia nos últimos anos. A Shell anunciou em abril que se retiraria de três projetos de gás offshore que detém em parceria com a estatal de petróleo colombiana Ecopetrol — mesmo num momento em que o país enfrenta escassez de oferta.
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Com o declínio da própria produção de gás, a Colômbia passou a depender de importações. Mauricio Cárdenas, um pesquisador sênior da Universidade Columbia e candidato conservador às eleições colombianas, diz que isso não faz sentido, já que o gás importado é mais caro e gera mais emissões de carbono. “A única coisa que nós, colombianos, conseguimos com isso é pagar mais e poluir mais por causa de uma política energética ruim.”
As políticas de Petro contra os combustíveis fósseis, somadas a uma postura mais hostil em relação ao setor privado, também afetaram o crescimento econômico da Colômbia.
A economia ficou praticamente estagnada em 2023, seu primeiro ano completo de governo, com o PIB crescendo apenas 0,7% e depois 1,6% em 2024, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para este ano, o FMI prevê um crescimento de 2,5%, impulsionado por um aumento nos gastos públicos. O Brasil vem crescendo mais sob Lula do que a Colômbia sob Petro.
Enquanto isso, os ambiciosos planos colombianos anunciados no ano passado para captar US$ 40 bilhões em novos investimentos para financiar uma “transição socioecológica” do petróleo e gás para o turismo de natureza, indústria de baixo carbono e agricultura sustentável, avançam lentamente.
Luis Fernando Mejia, que comanda o centro de estudos econômicos Fedesarrollo, diz que as políticas de Petro estão prejudicando as finanças da Colômbia. “A estratégia do governo abre mão de fontes cruciais de arrecadação que poderiam ser usadas para financiar uma transição energética gradual e sustentável”, diz ele.
O governo de Petro não pretende mudar de rumo. “Precisamos deixar de depender de uma economia rentista baseada nas commodities e avançar para uma economia produtiva, centrada na agricultura e no turismo”, disse o ministro da Energia e Mineração da Colômbia, Edwin Palma, ao Financial Times.
Ele afirma que o governo vem tentando diversificar a matriz energética do país, que depende da geração hidrelétrica para cerca de 68% do abastecimento, complementada por usinas a gás e carvão e por uma participação ainda pequena, mas crescente, de fontes solares, eólicas e de biomassa.
Mas os esforços para ampliar as energias renováveis também enfrentam obstáculos. Em maio de 2023, a empresa italiana Enel desistiu de um projeto planejado de parque eólico de 205GW na província costeira de La Guajira. O projeto ficou parado por dois anos, até ser adquirido pela Ecopetrol, estatal de petróleo da Colômbia, em julho.
Ricardo Roa, ex-chefe de campanha de Petro e atual presidente da Ecopetrol, diz que a companhia quer aumentar os investimentos em energias renováveis. “Nosso foco é aproveitar o grande potencial de La Guajira”, diz ele.
Alexandra Hernández, presidente da associação setorial SER, que representa o setor de energias renováveis da Colômbia, acredita que os investimentos finalmente começam a decolar. Ela diz que a Colômbia vai gerar 14% de sua eletricidade a partir de projetos eólicos e solares até o fim do ano — contra 2,5% há dois anos.
Mas a natureza radical das ambições de Petro tornou tudo mais difícil. “Ele queria mudar o setor de petróleo e gás, queria mudar a saúde, a educação, o modelo de investimentos, a economia, a tributação”, afirma ela. “Ele queria mudar absolutamente tudo. Mas faltou muito na execução.”
Francisco Monaldi, director do programa de energia para a América Latina da Universidade Rice de Houston, diz que se Petro realmente quisesse ser um líder na descarbonização, deveria ter se concentrado em reduzir ainda mais os subsídios aos combustíveis e reinvestir a economia obtida em energias renováveis. “Acho que a política dele é, no conjunto, um erro – e será um erro duradouro.”
Enquanto isso, o Brasil está aprimorando suas credenciais ecológicas em outras frentes, na preparação para a cúpula da COP. O país tem uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com cerca de 90% da eletricidade gerada a partir de fontes renováveis.
A maior nação da América Latina também é líder global em biocombustíveis de baixo carbono – principalmente o etanol derivado da cana de açúcar, que absorve CO2 durante o cultivo e normalmente emite menos dióxido de carbono do que a gasolina comum. A maioria dos automóveis no Brasil é equipada com motores “flex”, capazes de funcionar com álcool, gasolina ou uma mistura de ambos os combustíveis. Além disso, a gasolina vendida no país contém 30% de etanol.
“O Brasil vê a sustentabilidade como uma vantagem competitiva”, diz Luisa Palacios da Universidade Columbia. “É um laboratório de tentativas de produzir combustíveis ou processos de baixo carbono em setores de alta emissão. Isso não é fácil e obviamente há concessões envolvidas. Mas acredito que tanto as empresas quanto o governo estão tentando fazer isso da forma mais responsável possível.”
Assim, Brasília afirma que o país já está bem encaminhado rumo a uma economia de baixo carbono. Quase metade das emissões de gases de efeito estufa do Brasil vem do desmatamento, seguida pela agricultura e pela pecuária, que respondem por 28%, segundo dados compilados pelo Observatório do Clima. A queima de combustíveis fósseis representa uma parcela bem menor.
Mas isso poderá mudar. Nas últimas duas décadas, o Brasil se firmou como uma potência global do petróleo, graças ao aumento da produção em suas reservas em águas profundas, conhecidas como “pré-sal” – assim chamadas por estarem localizadas sob uma camada espessa de cloreto de sódio.
Com a produção desses campos prevista para atingir o pico até o fim da década, a indústria do petróleo acredita que a próxima grande descoberta do país está em um trecho de 2,2 mil quilômetros do Oceano Atlântico ao longo da costa norte, conhecido como Margem Equatorial. O governo estima que a área possa conter até 10 bilhões de barris recuperáveis.
Essa busca por novas reservas foi o motivo da polêmica decisão, em 20 de outubro, do Ibama (o órgão regulador ambiental brasileiro), de conceder à Petrobras uma licença de perfuração exploratória para uma área conhecida como Bloco 59, localizada a 540 quilômetros da foz rio Amazonas e a 175 quilômetros do litoral do Estado do Amapá.
O Brasil e outros países preveem uma lacuna no fornecimento de petróleo no fim desta década e estarão prontos para preenchê-la, afirma Jason Bordoff, diretor fundador do Centro de Política Energética Global da Universidade Columbia.
“A ação mais importante e eficaz para desestimular o Brasil e outros países a seguir adiante com seus planos de produção de petróleo é mudar os incentivos econômicos acelerando de forma decisiva a adoção de veículos elétricos e outras tecnologias que alterem as perspectivas de demanda por petróleo”, diz ele.
Na Colômbia, a guerra de Petro contra os combustíveis fósseis pode estar perdendo força. Candidatos de esquerda e de direita à eleição presidencial do próximo ano prometem reverter as políticas energéticas do presidente. “Se Deus nos deu petróleo, carvão e gás, vamos usar o petróleo, o carvão e o gás”, postou nas redes sociais Claudia López, ex-prefeita de Bogotá e candidata presidencial de centro esquerda.
“É impressionante como Petro gerou uma reação contrária… Antes havia um consenso muito mais voltado às causas ambientais entre a elite colombiana”, diz Monaldi da Universidade Rice. “Agora, o discurso é mais do tipo: ‘Temos que aumentar a produção de petróleo para viabilizar polícias sociais e o desenvolvimento econômico’. Houve uma grande mudança de perspectiva.”
Fonte: Valor Econômico
Foto: Reprodução / Valor / Ricardo Stuckert









