Paralisação da termelétrica expõe as contradições entre o discurso e a prática da transição energética
O fim do Carnaval traz aos trabalhadores da Usina Termelétrica (UTE) de Candiota III uma grande expectativa. O sentimento é de que, passada a festa popular que movimenta o Brasil, o governo federal editará uma Medida Provisória que renove os contratos de venda de energia da usina com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Os contratos de comercialização foram encerrados no dia 31 de dezembro de 2024 e, desde então, opera nos bastidores um forte lobby político e econômico para que uma solução seja encontrada.
A situação é complexa. De acordo com a plataforma do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a UTE Candiota III é, atualmente, o maior emissor de gases de efeito estufa no Rio Grande do Sul. Entre 2020 e 2022, a usina esteve entre as seis termelétricas que mais emitiram gases de efeito estufa (GEE) no Sistema Interligado Nacional, ocupando a 1ª posição em 2020 e 2022 e a 6ª em 2021.
Se o impacto da usina e do uso de carvão mineral na crise climática que os gaúchos estão vivenciando na prática nos últimos anos, da pior maneira possível, é uma realidade, a paralisação das atividades de Candiota III também afeta milhares de empregos na cidade da Campanha gaúcha. Hermelindo Ferreira, diretor de comunicação do Sindicato dos Mineiros de Candiota, diz que o fechamento da termelétrica atinge diretamente 220 mineiros e 300 eletricitários, mais mil terceirizados da empresa Âmbar Energia, dona da usina, além de um número incerto de empregos de outros ramos em Candiota e municípios vizinhos.
O governo de Eduardo Leite (PSDB) tem dito que 80% da economia de Candiota é dependente do carvão mineral – segundo dados do Departamento de Economia e Estatística – e que o encerramento abrupto da usina impacta diretamente em mais de 4,5 mil empregos, entre diretos e indiretos, o que causaria um “colapso econômico” na cidade e em parte da região da Campanha.
Em nota recente, o Dieese sustenta que o encerramento de Candiota III pode resultar na perda de 36 mil postos de trabalho diretos e indiretos em toda a Região Sul, de R$ 15,5 bilhões de impostos, R$ 1,1 bilhão de salários e R$ 292 milhões de arrecadação ao INSS e depósitos de FGTS. A entidade calcula que 15,8% dos vínculos de emprego em Candiota estão diretamente relacionados à geração de energia elétrica e à extração de carvão mineral. Essa participação corresponde a 31% da massa salarial formal do município.
Diretor do Sindicato dos Mineiros de Candiota, Ferreira refuta a frase que costuma ouvir de que é um defensor da indústria do carvão. “Eu repito em todos os lugares. Eu não defendo o carvão, eu defendo o trabalhador, defendo os postos de emprego”, afirma. “Se chegarem amanhã e disserem que estão instalando uma indústria que vai dar emprego ao mesmo número de pessoas, com o mesmo nível de salários, com o nível de renda que trabalhadores mineiros e eletricitários têm hoje, eu topo.”
Ele faz questão de deixar isso claro, ao mesmo tempo em que pede para que o caso de Candiota seja analisado dentro do seu contexto. Nascido em Lavras do Sul, cidade também com passado ligado à mineração, ele mesmo trabalhou em Minas do Camaquã, hoje uma cidade-fantasma que outrora explorava cobre. Ferreira diz que cerca de 30 municípios da região da metade sul do estado giram em torno de Candiota, sem ter outras indústrias importantes no sustento econômico das cidades.
“Minha preocupação não é com o carvão, é com esses 30 municípios que têm uma única indústria. Se continuar parada Candiota III, se não tem mineração de carvão, se não tivermos a usina termelétrica, para onde vão os engenheiros? Onde vão os operadores de caldeira? Onde vão os mineiros? Eles botam a mochila nas costas e têm que sair dessa região porque não tem alternativa para as pessoas que têm formação profissional nesta área”, enfatiza.
O diretor do Sindicato dos Mineiros chama atenção para o fato da pequena cidade da campanha ter um dos maiores PIBs per capita do estado. Segundo o Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, em 2021, Candiota teve o terceiro maior PIB per capita do RS, só atrás de Muitos Capões e de Triunfo – onde existe o Polo Petroquímico e foi a cidade que apresentou o maior valor de PIB per capita do estado.
“Nós temos os melhores salários na mineração e na geração de energia elétrica”, afirma, ressaltando sua posição de defender esse nível de renda. Ele diz ser impossível os profissionais de Candiota envolvidos nas usinas passarem a trabalhar nas indústrias de Pelotas, Uruguaiana ou Santa Maria e continuarem morando na cidade, além da perda de renda.
Responsabilidades
Engenheiro ambiental e gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara, John Wurdig avalia que a responsabilidade pelo futuro da usina e dos empregos envolvidos é da empresa Âmbar, que comprou Candiota III em 2023 já sabendo que o contrato venceria no dia 31 de dezembro de 2024. “Em nenhum momento o plano de fundo do emprego, da renda e da proteção energética, da questão social, são alicerces onde se busca esses atributos para manter funcionando a usina. Em nenhum momento foi colocado no contrato a previsão da transição energética”, critica.
“Simplesmente, eles contam com a usina funcionando, num cenário até 2040, 2050, com o subsídio. Se tivesse o subsídio no contrato, ninguém estaria falando em transição energética. Como estão em desespero porque a usina está sem contrato, correndo o risco de ser fechada se não for achada uma solução emergencial, se busca esse pano de fundo. Então é uma completa incompetência de quem adquiriu a usina. A Âmbar comprou a usina sabendo dessa responsabilidade. A Âmbar se esconde por trás do governo, se esconde por trás do prefeito (de Candiota) e não aparece”, analisa o gerente do Instituto Arayara.
O subsídio ao qual ele se refere são os R$ 12,7 milhões mensais que a UTE Candiota III recebe para comprar carvão mineral. O recurso é proveniente da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo setorial embutido na conta de luz paga por todo brasileiro. Em 2024, o subsídio foi de cerca de R$ 40 bilhões e em 2025 pode chegar em R$ 44 bilhões. Tal subsídio interessa diretamente ao governo gaúcho, pois a estatal Companhia Riograndense de Mineração (CRM) fornece todo o carvão mineral usado pela UTE Candiota III.
O subsídio da CDE, entretanto, está previsto para acabar em 2027. Para o engenheiro ambiental, esse fato é uma das fontes do “desespero” com a usina. Em outro sentido, ele questiona a falta de precisão dos impactos econômicos e sociais do encerramento da usina na cidade de Candiota divulgada por diversos atores envolvidos no processo. “A região carbonífera da Campanha é composta por 14 municípios. São esses 14 municípios? Quem dá a informação que 80% da renda de um território é só da usina? A mesma coisa o número de emprego. A gente não tem um número real. Já ouvi 5 mil, 6 mil, 30 mil. É um absurdo isso”, reclama.
“No que tange ao governo do estado, quanta empresa já fechou, quanta usina, fábrica, indústria, fecharam e foram embora e a gente não viu essa movimentação do governo gaúcho. Por que essa interessa tanto?”, questiona Wurdig, para ele mesmo responder: “Porque o governo gaúcho é fornecedor de carvão”.
Para tentar dar unidade aos números de empregos diretos e indiretos atingidos pela paralisação da usina, a Frente Nacional dos Consumidores de Energia Elétrica planeja fazer um estudo capaz de dimensionar o impacto do fechamento de Candiota III na economia da cidade e na região. “Precisamos ter um estudo real. Não adianta pegar um raio de 14 municípios e dizer que todos os restaurantes desses municípios serão afetados se a usina fechar”, destaca o gerente do Instituto Arayara.
Transição energética
Na última segunda-feira (24), durante visita à cidade de Rio Grande, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu uma declaração que animou os defensores de Candiota III e pode indicar que o governo federal tomará alguma atitude em breve, apesar do veto na Lei das Eólicas Offshore. Durante cerimônia de assinatura de contrato da Transpetro, subsidiária da Petrobras, para a aquisição de quatro navios, Lula disse ser contra os combustíveis fósseis, mas enquanto o Brasil precisar deles, o País usará.
“Gostei muito dessa fala do presidente Lula. Eu também sou contra as emissões de gases de efeito estufa, mas enquanto não tivermos a transição energética que consigamos realocar os trabalhadores, temos que utilizar”, concorda Hermelindo Ferreira, diretor de comunicação do Sindicato dos Mineiros de Candiota. Alternativas existem, diz ele, desde que haja investimento num plano consistente que crie um “real plano de transição”.
O pedido de mais prazo para a elaboração de planos de transição energética tem sido a tônica não apenas no caso de Candiota, mas também em outros exemplos semelhantes Brasil afora. É um roteiro que se repete: os prazos dos contratos das usinas termelétricas são conhecidos e pouco é efetivamente planejado; quando o prazo se aproxima do final, há um grande alvoroço político e econômico e o pedido de extensão do prazo.
Ferreira lembra que em 2011 e 2012, o senador Paulo Paim (PT) conversou com o antigo presidente do Sindicato dos Mineiros de Candiota sobre o prazo que venceria em 2024. Segundo ele, Paim alertava que algo precisava ser feito e desse movimento nasceu uma nova usina, a de Pampa Sul, com prazo vigente de operação até 2043 e tecnologia mais moderna do que Candiota III – ainda que também problemática no aspecto da emissão de gases de efeito estufa.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, o diretor do sindicato lembra de bons diálogos com o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, para se tratar do fim do prazo da Usina de Candiota III. Com a saída de Albuquerque, o movimento sobre transição energética não foi adiante. As conversas começaram a ser retomadas no novo mandato do presidente Lula. Ao mesmo tempo, ele conta que surgiram questionamentos sobre a ausência do governo estadual nesses debates. Ao contrário do governo de Santa Catarina, que foi atuante na defesa das termelétricas do estado vizinho e conseguiu obter a renovação dos contratos ainda no governo Bolsonaro, Ferreira conta que o governador Eduardo Leite se manteve afastado do problema de Candiota.
“Naquela época, ele estava indo pra COP 26 (conferência da ONU sobre o clima, em 2021), tinha todo aquele movimento dele querer ser presidente da República, não podia manchar a imagem dele com carvão e não podia nem falar, não queria nem tocar no assunto. E realmente, a gente nunca foi nem recebido. Nós tentamos chegar no governo do estado e nem fomos recebidos enquanto comissão de transição energética”, relembra.
A “virada de chave”, segundo Ferreira, foi o encerramento do contrato de venda da energia para a Aneel e a paralisação da UTE Candiota III no dia 1 de janeiro deste ano. O fato ganhou ampla repercussão na mídia. “Aí virou tragédia e tragédia o povo lê”, pondera. Para ele, foi neste momento que o governador começou a ser questionado sobre o tema e percebeu que seria envolvido no problema. “O negócio vira realmente a chave quando o governo do estado diz para o governo federal que também tem interesse que seja feita a renovação”, afirma.
Na opinião do diretor do Sindicato dos Mineiros de Candiota, faltou vontade e empenho tanto do governo federal quanto do governo estadual, na real elaboração de um plano de transição energética que abranja os trabalhadores da UTE de Candiota III e outros impactos econômicos na região. “Não podemos botar a peneira na frente do sol. Faltou vontade de alguém fazer. Não estou dizendo que foi o ‘governo A’ ou ‘governo B’, faltou vontade. E, nos últimos tempos, faltou vontade principalmente para o governo estadual”, sustenta.
Emiliano Maldonado, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (CCM/RS), defende a criação de um fundo soberano como mecanismo de apoio emergencial aos 520 trabalhadores diretamente envolvidos com a UTE de Candiota III, e para que os demais trabalhadores da cadeia produtiva possam desenvolver outros projetos e atividades econômicas na região. Essa proposta poderia utilizar o subsídio de R$ 12 milhões mensais gastos para a compra de carvão, oriundo da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), como forma de indenizar esses profissionais e viabilizar projetos de transição energética na região.
Ele critica que o setor carvoeiro usa os trabalhadores e a comunidade de Candiota apenas para manter uma cadeia produtiva que dá prejuízo e só se sustenta com subsídios públicos. Maldonado pondera que, com a paralisação da usina desde o começo do ano e a entrada em cena do governador Eduardo Leite, o discurso de que a região precisa passar por uma transição “justa” antes de encerrar a operação das usinas tem cooptado e esvaziado o termo da luta dos trabalhadores.
“Claro que apoiamos e queremos construir uma transição justa e que esse processo não deixe os trabalhadores para trás. Porém, entendemos que a transição deve ser justa para todos, para os trabalhadores, mas também para as comunidades locais impactadas pela poluição e para a humanidade e a natureza cada vez mais ameaçada pelos imprevisíveis efeitos do clima. Além disso, o que se vê, na prática, não é uma transição para uma economia mais ecológica e justa na região, mas uma tentativa de postergar a queima do carvão no RS até 2040 ou 2050”, afirma nota do Comitê de Combate à Megamineração no RS, uma articulação formada por diversas entidades ecológicas, socioambientais, sindicais, associativas, movimentos sociais e grupos de pesquisadores das principais universidades do estado.
O professor de Direito defende a proteção dos trabalhadores da usina ao mesmo tempo que haja o planejamento concreto na criação de novos postos de trabalho de qualidade, com mudanças na matriz econômica e produtiva da região de Candiota. Entre as possibilidades apontadas pelo Comitê de Combate à Megamineração (CCM/RS) estão o resgate das vocações socioeconômicas do Pampa, como a pecuária familiar, seus produtos derivados, a apicultura, a olivicultura, o turismo rural e ecológico ou o estabelecimento de uma potencial indústria de equipamentos ligados às fontes de energias renováveis (eólica, solar, bioenergia diversificada) desenvolvidas a partir de uma lógica socioambiental e não predatória.
“As mudanças climáticas em curso nos colocam diante da tarefa inadiável de promover, nos próximos dez anos, uma profunda mudança no atual modelo de produção e consumo. Pensar, neste momento, em manter e expandir empreendimentos de megamineração e queima de carvão é comprometer as condições de vida desta e das futuras gerações a nível global, mas também a nível local, pois essas atividades estão diretamente relacionadas a pioras na qualidade ambiental e, consequentemente, de vida da população residente nos territórios onde se localizam tais estruturas”, enfatiza o Comitê em nota pública.
O grupo diz que a situação de Candiota comprova que os alertas feitos pelas entidades da sociedade civil e pela comunidade científica que compõem o Comitê de Combate à Megamineração (CCM/RS) estavam corretos. “As mineradoras e empresas de energia do setor carvoeiro não se preocupam com os trabalhadores e com as comunidades atingidas, querem apenas garantir a continuidade da queima do carvão e os seus respectivos subsídios por algumas décadas”, afirma Maldonado. “Por isso, defendemos que não é necessário renovar os contratos da UTE Candiota III, ela deve permanecer fechada. No entanto, é necessário que a União, estado do Rio Grande do Sul, empresas do setor e Aneel redirecionem esses subsídios e demais investimentos em combustíveis fósseis para um fundo soberano que garanta uma transição justa para os trabalhadores e as comunidades da região.”
O professor de Direito da UFRGS ressalta ser preciso cumprir a Política Nacional de Mudanças Climáticas (Lei nº 12.187/09) e à Política Gaúcha de Mudanças do Clima (Lei Estadual nº 13.594/10). Para ele, o Rio Grande do Sul tem a oportunidade histórica de mostrar ao mundo que é possível pensar alternativas ecológicas e iniciar a uma verdadeira transição. “Não se trata de uma disputa entre economia e meio ambiente, mas de pensarmos projetos pautados numa economia ecológica que mitigue o colapso climático que se avizinha”, explica, citando como exemplo as experiências de produção agroecológica da Bionatur nos assentamentos da reforma agrária de Candiota e Hulha Negra.
Por sua vez, Hermelindo Ferreira, diretor de comunicação do Sindicato dos Mineiros de Candiota, acredita que não há como algum plano de transição energética ser feito sem a participação de todos os atores envolvidos no processo, incluindo moradores da região urbana e rural de Candiota, trabalhadores do comércio, da indústria e do setor de serviços. E com prazos definidos. Caso contrário, ainda que se consiga a renovação do contrato da usina por mais 10, 15 ou 20 anos, ele prevê que o problema não será resolvido.
“Se não for nesse modelo, se tentar colocar de cima para baixo, a gente vai chegar de novo lá em 2043 fazendo toda essa briga de novo”, projeta. Ele avalia que a classe trabalhadora muitas vezes é individualista e cita a sugestão para os mineiros serem indenizados, uma proposta que muitos dizem que aceitariam. Ferreira, por outro lado, defende uma posição mais ampla. Para ele, é preciso ter pessoas que não olhem para o próprio umbigo, mas que olhem para os horizontes. “É difícil a gente conseguir parceiros que façam isso”, reconhece.
Com o fim do carnaval, a expectativa de Ferreira e de muitos trabalhadores de Candiota é de que o governo federal publique a medida provisória que retomará os contratos da UTE Candiota III com a Aneel e assim dê sobrevida a um dos casos mais emblemáticos da necessidade de transição energética do Brasil.
Fonte: Sul 21