por Comunicação Arayara | 18, out, 2024 | Petróleo e Gás |
Oiapoque é uma cidade que enfrenta vários problemas de infraestrutura. O último Censo divulgado (2010) mostrava que apenas 0,2% das vias públicas eram urbanizadas e somente 24,8% da população tem acesso ao esgotamento sanitário adequado. Nas áreas indígenas, o principal impacto percebido pela liderança é em relação à nova dinâmica aérea. Há dois anos, o aeródromo de Oiapoque começou a receber investimentos da Petrobras e transportar aeronaves com funcionários da empresa. Segundo ela, foi quando a população das Terras Indígenas Galibi do Oiapoque e Juminã começaram a ser afetados pela repentina movimentação. “Começou a assustar as famílias, principalmente as crianças que não estão acostumadas com esse tipo de barulho. As caças e os pássaros também se assustavam”, relata.
Preocupados com o que pode vir no futuro, os povos indígenas começaram a buscar parcerias fora de sua comunidade para se aprofundar no debate sobre a exploração de petróleo e da transição energética. Luene é atualmente uma das mobilizadoras locais em torno do Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis, uma iniciativa global que advoga para a cooperação entre governos, sociedade civil e outras lideranças pela aceleração da transição energética justa.
O compromisso é voluntário e não-vinculante, mas, mesmo assim, apenas 14 nações assinaram, sendo apenas uma da América Latina – a Colômbia, que se juntou durante a COP28, em 2023.
No Brasil, várias entidades não governamentais apoiam o Tratado oficialmente, mas do poder público a adesão veio apenas da prefeitura de Belém. Para Luene, a posição do Governo Federal é contraditória. “O governo brasileiro diz que defende a Amazônia, mas ao fim do dia entrou para a Opep+ [Organização dos Países Exportadores de Petróleo]”, critica.
Para Andrés Gómez, coordenador para América Latina e Caribe do Tratado, a participação dos povos indígenas no movimento é fundamental. “As organizações e povos indígenas são quem habitam o território, mesmo antes do Estado. O apoio que podem gerar, em rede, é muito importante e isso também gera pressão em torno dos governos”, diz, citando também o caso da Colômbia, onde o povo Waorani tem pressionado o governo a parar a extração de petróleo em um parque nacional.
A presença de petrolíferas nas proximidades da Foz do Amazonas não é algo novo. A Petrobras, por exemplo, já tem atividades na região desde 1970. Dados públicos da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), expostos pela epbr em maio de 2023, apontam que ali já houve 95 perfurações, sendo que todas, até o momento, ocorreram em águas rasas, ou seja, de 400m ou menos de profundidade. Nesse caso, é inserida uma plataforma fixa, estrutura metálica presa ao fundo do mar.
Ao todo, conforme mostra o levantamento da epbr, 27 desses poços perfurados para pesquisas foram finalizados por causa de acidentes mecânicos. A maioria, por não ter encontrado petróleo, por dificuldades logísticas ou por indícios subcomerciais.
Agora, a Petrobras anseia ser a primeira explorar águas profundas na região. Para esse tipo de exploração, é preciso instalar sistemas flutuantes, amarrados ao solo submarino por correntes, cabos de aço ou poliéster. A oceanógrafa Kerlem Carvalho explica que a tecnologia de ponta é necessária porque as águas profundas possuem especificidades de salinidade, temperatura e, principalmente, de pressão que impactam na operação. “Quanto maior a profundidade da água, maior vai ser a pressão. E, no caso da segurança operacional dessas indústrias, traz um risco maior de ter falha de equipamento que vai perfurar esse local, se ele não for projetado adequadamente”, adverte, explicando que tubulações, cabos e outros itens ficam sob uma força muito grande, que é natural desse ambiente.
Carvalho atua como analista ambiental na organização da sociedade civil (OSC) sem fins lucrativos Instituto Internacional Arayara, e menciona que outro fator de preocupação é a maior dificuldade de que o serviço de emergência chegue a tempo em casos de acidentes de vazamento, por estar muito longe da costa.
Embora o histórico seja longo na região, as informações sobre a exploração de petróleo local nem sempre são de fácil entendimento. A começar pelo próprio termo usado pela Petrobras: Margem Equatorial, que no Brasil é o trecho de 2.200 quilômetros que vai da costa do Rio Grande do Norte ao Amapá. Já a Foz do Amazonas é uma das cinco grandes regiões da Margem, e inclui os territórios do Pará e Amapá que, mesmo parecendo distantes geograficamente, sofrem muita influência da foz, ou seja, do local onde o rio Amazonas deságua no Oceano Atlântico.
De acordo com o Arayara, encontrar os dados públicos também não é uma tarefa simples. São mais de 70 fontes onde essas informações estão dispersas e geralmente com linguagem técnica.
Pensando nessas dificuldades, o Instituto, em parceria com o Observatório do Clima, lançou o “Monitor Amazônia Livre de Petróleo e Gás” há um ano. A plataforma está disponível em português, inglês e espanhol e tem o objetivo de democratizar o acesso aos dados.
No site, qualquer um pode conferir os dados atualizados de onde estão os blocos petrolíferos, qual o status (em exploração ou produção, em estudo ou área reservada, em oferta ou solicitação) e mais detalhes sobre a empresa operadora e se está em um território indígena, dentre outros fatores.
O Instituto Arayara foi uma das organizações à frente dos protestos da Amazônia Livre de Petróleo na Cúpula de Belém. Para Vinicius Nora, gerente de Oceanos e Clima da OSC, o principal resultado é ver que pesquisadores e movimentos sociais estão podendo se apropriar mais da discussão com o Monitor.
Ele comemora também que, em junho deste ano, a ANP decidiu remover 15 blocos da lista de áreas disponíveis para exploração e produção no país, devido a restrições socioambientais, como a proximidade a terras indígenas e unidades de conservação. “Essa sobreposição nós mesmos já tínhamos identificado no Monitor e, por conta disso, entramos com ações judiciais para tentar impedir a oferta dessas áreas”, recorda.
Apesar de não ter tido sucesso direto na Justiça, ele acredita que a mudança percebida agora pela ANP é reflexo da pressão civil. Em 2024, o edital de leilão de blocos passa por uma revisão e é a primeira vez, em sete anos, que o Brasil não terá uma nova licitação para concessão de áreas para exploração de petróleo.
Nora acompanha cada passo das decisões em torno da exploração na Foz do Amazonas e considera que as consultas prévias às comunidades da região podem travar o processo, porque podem aflorar as preocupações que os povos já possuem sobre o tema. “Por outro lado, mudanças políticas no Ibama e MMA, por exemplo, podem também mudar o andar das decisões, porque a pressão está muito grande em prol da exploração e o rumo pode mudar a qualquer momento”, pondera.
Além do Instituto Arayara, outras instituições vêm fazendo campanha por uma Amazônia livre de combustíveis fósseis nas redes sociais, nos seus territórios e fazendo pressão a autoridades políticas, dentre elas o Instituto ClimaInfo, a Associação das Mulheres Indígenas em Mutirão (Amim) e as ONGs Greenpeace Brasil e WWF-Brasil. Mais de 20 organizações do Amapá e Pará assinaram carta aberta no ano passado para declarar apoio à decisão do Ibama e até o momento 18 organizações e instituições nacionais, assim como oito parlamentares, assinaram o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis.
Geógrafa e mestre em Biodiversidade Tropical, Funi explica que, para começar a entender essa dinâmica, é preciso ter monitoramento constante por pelo menos três anos. “A gente não conhece as correntes superficiais mais profundas para essa região da foz. Até a maré, precisamos de mais pontos para entender. Temos a maior variação de maré do planeta, chegando a 12 metros, mas ela tem comportamentos diferentes ao longo da costa”
A pesquisadora é uma das autoras do Plano Foz de monitoramento da costa oceânica do estado e da foz do rio Amazonas, uma iniciativa que busca financiamento e que propõe a implementação de redes de medições para investigar questões como a hidrodinâmica, salinidade, corrente marítima, o vento e a temperatura, dentre outros aspectos. O Plano envolve pesquisadores, técnicos e professores de instituições como a Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Universidade de Brasília (UNB) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
“A foz é muito pouco estudada. Tem um desafio logístico muito grande, requer um recurso muito maior do que em outras regiões”, contextualiza. “Mas, sem dados, tudo que for feito vai gastar mais tempo, energia e dinheiro e não vai conseguir ter o preparo da maneira correta”, conclui.
A pesquisadora observa que pouco mudou desde que o Ibama indeferiu o pedido da Petrobras. “O que teve de avanço é que vamos atualizar as cartas de sensibilidade de derramamento de óleo. Estamos iniciando as tratativas agora”.
Os documentos, conhecidos como Cartas SAO, mapeiam a vulnerabilidade de uma região a um eventual derramamento de óleo, e incluem informações como sensibilidade dos ecossistemas marinhos e costeiros, recursos biológicos e usos humanos dos espaços. As cartas atuais foram entregues em 2016, por pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, INPA e UFPA, e mostram que, em um cenário pessimista, os ambientes ficam muito vulneráveis, por uma gama de características próprias do local, como a presença abundante de manguezais, que seriam extremamente difíceis de limpar em caso de vazamento.
por Comunicação Arayara | 07, jun, 2024 | Mudanças Climáticas |
Sendo debatida pela sociedade brasileira, a Proposta de Emenda Constitucional 3/2022, a “PEC das Praias”, explicita algumas de nossas históricas disputas: a titulação de terras no Brasil; os embates entre o interesse econômico versus o interesse social e ambiental; e a prática de, quando necessário, implementar processos que aceleram tomadas de decisão de grande impacto – mas que deveriam ser analisadas com cautela.
Aprovada em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados, a PEC das Praias agora tramita no Senado Federal, onde sua última movimentação, a Audiência Pública na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) em 27 de maio, despertou intensamente o interesse da sociedade brasileira.
Para quem é a favor, a PEC simboliza uma ferramenta para a desburocratização de processos públicos, enxugando ou banindo processos administrativos e fiscais entre os empreendimentos privados que atualmente ocupam esses lotes e o governo. Ela também apoiaria comunidades em situação de vulnerabilidade econômica, quando, ao provarem que residem no local há mais de 5 anos, poderiam requerer a titularidade dessas terras, chamadas de “terrenos da marinha”, uma faixa de terra localizada a 33 metros de distância da linha do mar (levando em consideração a maré alta do ano de 1831), pertencentes atualmente à União.
Na visão de quem é contra, a proposta acirra as disputas por terra no Brasil, historicamente conhecidas como “grilagens”: transferências ilícitas de terrenos ou falsos testemunhos de posse. A PEC também aumentaria os riscos de especulação imobiliária, fazendo dessas terras um comércio atrativo para empreendimentos privados que poderiam facilmente comprar faixas da costa brasileira.
O que propõe a PEC?
O texto da PEC autoriza a transferência dessas áreas, os terrenos de marinha, do governo central do Brasil para os estados, municípios ou entes privados que já ocupam esses locais há pelo menos 5 anos. Gratuitamente passadas no caso das cidades, estados, ou ocupantes de moradias sociais localizadas naquele terreno, ou vendidas para os entes privados que atualmente pagam ao governo central uma taxa para usufruí-la.
Nos locais onde não há ocupação; onde estão instaladas Unidades Ambientais Federais; onde há edifícios ou serviços públicos federais em execução, esses continuariam sob a posse da União.
A PEC das Praias e as Mudanças Climáticas
Em alguns lugares da costa, esses territórios de marinha podem abranger porções de área habitada por comunidades tradicionais, como pescadores; áreas de preservação ambiental; ou ainda empreendimentos privados, como hotéis, resorts, edifícios comerciais ou residenciais, etc.
Esses territórios costeiros são fundamentais no âmbito da adaptação climática, pois em tempos de emergência do clima, a elevação do nível do mar é um risco que as sociedades precisam enfrentar em seus planos de contingência ambiental.
Além disso, há muitas comunidades tradicionais vivendo nessas regiões, e elas exercem um papel crucial no debate socioambiental. Suas atividades e culturas ancestrais e de baixo impacto contribuem para a preservação de biomas e impedem que interesses econômicos desenfreados ganhem espaço em locais importantes para a conservação.
Se sucedendo aos limites desses terrenos de marinha, há importantes ecossistemas, como manguezais e restingas, que desempenham um papel crucial na agenda climática, sendo os mangues um dos maiores captadores de carbono, auxiliando no combate ao aquecimento global.
Tem-se visto no Brasil uma forte pressão por “municipalizar” questões ambientais, a fim de que haja menos agentes ou controle federal inseridos nesses processos. Porém, questões socioambientais são de interesse não apenas local, mas nacional e ainda supranacional, pois quando se trata de mudanças climáticas, todas as pessoas, de todas as partes, compartilharão desses impactos, uma hora ou outra. Nesse sentido, toda cautela é bem-vinda.
Até este momento, no portal e-Cidadania do Senado, 2.228 pessoas votaram a favor da proposta; 157.576 votaram contra.
Leia mais sobre o papel da PEC e dos terrenos da marinha no debate das mudanças climáticas no artigo do gerente de Oceanos e Clima da Arayara, Vinicius Nora.
por Comunicação Arayara | 05, jun, 2024 | Eventos climáticos |
A crise climática que nos afeta se intensifica à medida que desmatamos e exploramos combustíveis fósseis.
O Brasil, um dos maiores emissores de CO2, continua a fomentar a indústria de petróleo e gás, aumentando a frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos.
No Rio Grande do Sul, os desafios ambientais são ainda mais graves pela relutância do governo, tanto em reconhecer a ciência climática quanto em implementar políticas ambientais eficazes.
O estado do Rio Grande do Sul enfrenta uma crise climática severa, manifestada por enchentes devastadoras que atingiram mais de 475 municípios, desalojaram cerca de 579 mil pessoas e causaram 172 mortes.
Este cenário alarmante é um reflexo direto do aquecimento global, impulsionado pela queima de combustíveis fósseis e pela destruição ambiental.
Segundo o relatório AR6 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC 2022), as atividades humanas, especialmente as emissões de gases de efeito estufa (GEE) pela queima de combustíveis fósseis, estão aquecendo a Terra. A concentração de CO2 alcançou 420 ppm em 2024, intensificando eventos climáticos extremos, como enchentes. No Brasil, o incentivo à exploração de combustíveis fósseis contraria as diretrizes da Agência Internacional de Energia (IEA), que recomenda a suspensão de novos investimentos nesta área para limitar o aquecimento global a 1,5°C.
As enchentes resultam de chuvas intensas ou prolongadas e são exacerbadas pelo uso inadequado do solo e pela falta de vegetação. Em áreas urbanizadas e agrícolas, a infiltração das águas pluviais ao solo tem sido reduzida pela pobreza de árvores, aumentando o escoamento superficial. A vegetação, especialmente nas Áreas de Preservação Permanente (APPs), desempenha um papel crucial na absorção de água e na prevenção de cheias.
Relatórios do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) indicam que, de 24 a 28 de abril de 2024, municípios como Quaraí, Rio Grande e Caçapava do Sul registraram precipitações superiores a 200 mm. Em maio, a precipitação acumulada chegou a 400 mm, superando significativamente a média mensal de 140 a 180 mm. Este excesso de água, combinado com a limitada capacidade de drenagem do Guaíba, resultou nas enchentes catastróficas que vimos.
Negacionismo científico – até quando?
A crise climática é intensificada pelo desmatamento e pela exploração de combustíveis fósseis. O Brasil, um dos maiores emissores de CO2, continua a fomentar essas atividades, aumentando a frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos. No Rio Grande do Sul, essa situação é agravada pela relutância do governo em reconhecer a ciência climática e implementar políticas ambientais eficazes.
A aprovação do Projeto de Lei nº 151/2023, que facilita a construção de barragens e as intervenções em APPs, enfraquece as proteções ambientais e exacerba os problemas de enchentes. Em 2019, o governo estadual do Rio Grande do Sul ainda revisou o Código Ambiental, comprometendo ainda mais a preservação ambiental.
As enchentes de 2024 tiveram consequências devastadoras: 170 mil pessoas ficaram sem energia elétrica, importantes infraestruturas como a Arena do Grêmio e o aeroporto Salgado Filho foram inundadas, e o transporte foi severamente afetado. A Defesa Civil atualizou em 3 de junho de 2024 que 2.390.556 pessoas foram impactadas, 806 ficaram feridas e 42 estão desaparecidas.
Os eventos extremos no Rio Grande do Sul são um chamado urgente para a ação climática. A ciência deve ser valorizada para prever e mitigar desastres, e políticas ambientais rigorosas são essenciais para combater o aquecimento global. Somente com a redução das emissões de GEE e a preservação ambiental podemos evitar que tragédias como esta se tornem mais frequentes. O futuro do clima, da biodiversidade e da segurança das populações depende das ações que tomarmos agora.
Acesse aqui o Resumo Executivo do estudo“Negacionismo científico: causas dos eventos de enchentes no Rio Grande do Sul”, produzido por técnicos especialistas da Arayara.
Ou clique aqui, para o Estudo na íntegra..
Crédito: O estudo está sob a licença Creative Commons: CC BY-NC (Atribuição-NãoComercial). Você pode remixar, adaptar e criar a partir deste trabalho, desde que para fins não comerciais e atribua ao Instituto Internacional Arayara o devido crédito.
por Comunicação Arayara | 28, maio, 2024 | Patrimônio Histórico |
As enchentes no Rio Grande do Sul afetam mais de 94% dos municípios, com severa extensão dos impactos sobre seus habitantes, povos tradicionais, áreas sensíveis de preservação ambiental e o patrimônio histórico e cultural de importância estadual e federal.
Por: Paôla Manfredini Romão Bonfim, Heloísa Sandiego e George Mendes
Aldeias indígenas e famílias quilombolas enfrentam a disrupção da comunicação (parcial ou inexistente), a escassez de alimentos, água potável e acesso a energia e outros serviços básicos. Ainda que consideremos que esses impactos não se restringem aos povos tradicionais, mas pesam sobre toda a sociedade gaúcha, é preciso também refletir sobre a ausência de medidas preventivas e ações imediatas na proteção desses povos historicamente mais vulneráveis e cuja manifestações culturais são base para a formação da identidade nacional.
Assim, o Ministério dos Povos Indígenas estima o impacto, direta ou indiretamente, sobre 9.000 indígenas e centenas de aldeias com famílias desabrigadas, além de comunidades urbanas ou periurbanas. Destaca-se a situação dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, cujas casas foram destruídas, forçando-os a abandonar suas aldeias e buscar abrigo em locais temporários.
No que diz respeito aos territórios quilombolas, a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) reporta que todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram impactadas pelas chuvas e enchentes que assolam o estado e em torno de 15 quilombos estão totalmente isolados.
É o que acontece no Território Quilombola Areal Luiz Guaranha, Quilombo dos Alpes, Família Silva e Família Fidelix – todos em Porto Alegre; e no Território Chácara das Rosas, em Canoas; e Rincão dos Negros, em Rio Pardo; e o Quilombo Vila do Salgueiro, no município General Câmara.
Com tantas vidas perdidas ou irremediavelmente impactadas, ainda cabe a pergunta sobre as consequências que virão sobre a identidade e as memórias afetivas desses povos, já que também suas formas de expressão, seus saberes e fazeres, seus lugares e celebrações, todos foram devastados junto com os edifícios, centros históricos e sítios arqueológicos pela força das águas.
O IMPACTO AO PATRIMÔNIO CULTURAL
A situação é realmente dramática. E não apenas para as pessoas, de comunidades tradicionais ou não. Aqui também é preciso falar do impacto das cheias aos signos de identidade do nosso povo. O patrimônio cultural, seja em sua dimensão material ou imaterial, também está sendo diretamente afetado pela crise climática no Rio Grande do Sul.
Ou seja, para além das vidas tragicamente perdidas ou terrivelmente afetadas, temos a própria história sob risco.
No âmbito dos bens imateriais gaúchos protegidos pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) temos: rodas e ofícios de mestre de capoeira; Tava, um lugar de referência para o povo Guarani; e as Tradições Doceiras na Região de Pelotas e Antiga Pelotas – Morro Redondo, Turuçu, Capão do Leão e Arroio do Padre.
Com praticamente todo o estado inundado, quando e como os detentores dessas tradições retomarão essas manifestações? Quais os planos do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para a retomada dessas atividades? Como minimizar o impacto que as perdas desses referenciais da memória poderão causar?
No que se refere aos bens materiais tombados, sabemos que o centro histórico de Porto Alegre esteve debaixo d’água, assim como o núcleo urbano tombado de Santa Tereza, e tantos outros bens sob risco ou já em evidente situação de perda total ou parcial.
São em torno de 41 bens materiais tombados em nível federal, acrescidos de mais 29 bens do patrimônio ferroviário valorados pelo IPHAN. Mas essa conta também precisa incluir os bens tombados em nível estadual, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul.
Até muito recentemente, apenas fora emitida uma nota oficial pelo IPHAN em solidariedade e que colocava alguns técnicos de prontidão para quando o tempo permitir agir. A nota também mencionava que o Instituto priorizaria os projetos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) previstos para a região.
Na mesma toada, o IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus), também emitiu sua nota de solidariedade. Tampouco, à época, sem comunicar nenhum tipo de ação concreta que se pretendia para com o acervo museológico atingido do estado. Somente o ICOM (International Council of Museums) Brasil havia publicado um documento com orientações para museus, espaços culturais e gestores quanto ao resgate de acervos diante da catástrofe climática.
Em ação semelhante, o Arquivo Nacional, o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e o Departamento de Arquivo Geral da Universidade Federal de Santa Maria publicaram o documento Ações Iniciais para salvaguarda de Arquivos após ocorrência de desastre natural por inundação. Foi criado também um formulário para o levantamento e identificação de instituições públicas que possuem acervos documentais, sejam arquivos, bibliotecas, museus, centros de documentação e memória, unidades de informação, que foram atingidas pelos alagamentos.
A tangibilidade das ações começaram a ser realmente sentidas apenas a partir da segunda quinzena de maio, quando o Ministério da Cultura (MinC) deu início à criação de uma Rede para Mapeamento e Recuperação do Patrimônio Material, Acervos Museais e Arqueológicos e Arquivos no Rio Grande do Sul.
Dentre os encaminhamentos propostos, temos que: pelo Sistema MinC, o Ibram e o Iphan irão coordenar o processo de constituição das redes; já o Arquivo Nacional, do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), coordenará a rede na parte de arquivos.
Definiu-se também pela iniciativa de levantamento dos danos junto aos pontos de memória, previsão de atividades de formação, participação e orientação e pelo estabelecimento de um protocolo futuro para situações similares.
No entanto, em um cenário tão precário e de alto risco contra a preservação da história regional e nacional, tudo parece pouco e parece lento.
Aqui é preciso considerar os dados levantados por Marchezini, et al. (2023), que informa:
“O cruzamento entre as áreas com risco de deslizamentos e inundações com a localização dos bens tombados demonstra que, em princípio, 44% dos bens imóveis tombados estão a até 1 km de uma área de risco de deslizamento, sendo que para risco de inundação o percentual é de 46%. A referida estimativa é suficiente para pensar na necessidade de implementação de políticas públicas de gestão de risco específico para o patrimônio cultural”.
Assim, dado que impacto aos bens culturais em caso de inundação é evidente e previamente conhecido, quais as medidas tomadas para minimizar a perda desses bens em situação de catástrofe?
O manual de Gestão de riscos de desastres para o Patrimônio Mundial da UNESCO (2015) sugere que sistemas de vedação devem ser instalados para selar janelas e portas em caso de alagamentos. E ainda, que “no caso dos edifícios históricos de propriedade privada, onde a integração do muro de proteção ao edifício não for possível por razões legais, a proteção contra enchentes deverá ser colocada diretamente em frente e de forma adaptada, como se fosse um revestimento”.
De acordo com um Relatório de Gestão Anual, de 2022, o Iphan organizou, em conjunto com o Governo do Chile, o Workshop Internacional Online de Gestão de Riscos de Desastres em Sítios do Patrimônio Mundial. O evento teve como objetivo:
“oferecer uma capacitação sobre questões de Gestão de Riscos de Desastres de acordo com padrões internacionais, para instituições e/ ou profissionais responsáveis pela gestão e conservação de Sítios do Patrimônio Mundial no Chile, na América Latina e na África lusófona, contribuindo para a preservação do Valor Universal Excepcional dos bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial”.
Então, se o assunto estava em pauta e sendo discutido internamente, como é possível não termos identificado ações preventivas do principal órgão nacional de proteção ao bem cultural?
A diretora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto avalia:
“A mudança climática, é o assunto do nosso tempo e ela está entre as maiores ameaças ao patrimônio natural e cultural mundial. Um em cada três sítios do patrimônio natural e um em cada seis do patrimônio mundial histórico estão ameaçados pelas mudanças climáticas”.
Nesse contexto alarmante, o que dizer dos sítios arqueológicos? Em uma catástrofe dessas proporções, quantos resistirão? Registrados no Centro Nacional de Arqueologia, temos 1.838 sítios identificados no Rio Grande do Sul e nas áreas das inundações estão 1.657 sob risco.
Mapa 2: Cidades afetadas pelas inundações com indicação dos sítios arqueológicos e bens materiais tombados pelo IPHAN.
Fonte: Elaborado pelos autores (2024), com dados da Defesa Civil de 24/05/2024.
Signos e registros de valor inestimável da nossa história talvez irrecuperáveis. Dados, anos de pesquisas, vestígios únicos apagados para sempre. São informações, culturas, modos de vida de sociedades pretéritas que nunca mais teremos a chance de desvendar.
Em meio ao caos do hoje, sofremos também por tudo aquilo que nunca conheceremos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atual crise climática, também mostra sua face trágica diante dos bens culturais.
Frente a um cenário tão catastrófico, fica evidente que os órgãos de proteção precisam ser mais previdentes, no sentido de apresentar mais ações de conservação para que os mesmos possam resistir com maior eficácia diante dos desastres naturais ou infligidos pelo homem.
Bem como é imprescindível que as respostas diante da urgência sejam mais imediatas, com planos bem estruturados de remoção para os bens móveis e acervos documentais das áreas em crise e prontidão de técnicos qualificados em situação de desastre para coordenar as ações de contingência em campo, de modo conjunto com outras equipes de proteção e defesa civil.
Para os bens materiais móveis entre as ações emergenciais alguns pontos precisam estar bem estabelecidos, tais como:
- Registro as informações da coleta: data, local do resgate, conteúdo resgatado e, se possível, o acompanhamento fotográfico;
- Separação dos itens conforme o grau de danos apresentados: itens secos, pouco molhados ou muito molhados; itens com barro ou evidência de fungos etc. e quantificação daqueles que irão necessitar dos tratamentos de conservação e/ou restauro e de um novo acondicionamento.
- Controle de transporte do acervo: com identificação das caixas e demais embalagens, preferencialmente, antes da retirada do local;
- A disposição do acervo nas salas de guarda pós-resgate deve permitir a secagem do maior número de itens recuperados possível, e muitas outras orientações que devem partir dos órgãos competentes especializados.
Já no que concerne às comunidades tradicionais afetadas, o suporte deverá ir muito além do básico, precisará incluir apoio psicológico, logístico, de recuperação dos seus signos e lugares identitários e os meios de retomada das suas expressões culturais – todos precisam ser garantidos em ações de longa duração, encampados por políticas públicas efetivas e ininterruptas.
Para tanto é preciso incluí-los nos espaços de debate, considerando seus interesses, respeitando seus modos de vida, suas manifestações culturais e cosmovisões, bem como agir preventivamente em proteção das áreas e bens historicamente sensíveis, como edificações, centros históricos, ruínas, sítios arqueológicos e acervos museológicos e arquivísticos, que a despeito de toda a intervenção humana e climática têm resistido até aqui. Mas a pergunta derradeira é: até quando?
Foto: Ramiro Sanchez / Divulgação: RGR Pneumáticos
por Comunicação Arayara | 22, abr, 2024 | Direitos Humanos, Indígenas, Moblização pelo Clima, ONU |
O planeta já existia antes de elegermos este o seu dia. Não temos como afirmar, nestes mais de quatro bilhões de anos de existência, a data em que de fato nasceu a Terra, a hora, o momento exato de sua criação.
Assim, ainda que pensemos apenas nos 200 mil anos de existência da nossa espécie, um dia é insuficiente para celebrarmos o planeta que chamamos de ‘mãe’, ou mesmo para agirmos por ele, em especial, frente aos impactos que geramos, em nossa história mais recente.
Já passa da hora de agirmos de forma contínua contra empresas que matam nossos rios, contra empreendimentos que colocam em xeque nossa segurança hídrica e contra ações de governos que ferem os direitos daqueles que defendem as florestas.
Em 22 de Abril de 2009, o Dia da Mãe Terra, ou Dia da Terra, foi estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um momento para trocarmos reflexões sobre nossos impactos e a necessidade de se viver em harmonia com a natureza. Os debates giram em torno da crescente degradação ambiental e do esgotamento dos recursos naturais, resultantes dos padrões insustentáveis de consumo e produção. Tais padrões já trazem consequências severas tanto para a Terra quanto para a saúde e o bem-estar da humanidade. Nesse sentido, dentre as diversas reflexões que a data abrange, é de suma importância incluirmos a organização em que nossa sociedade se apresenta: Quem é privilegiado, nesse sistema? Quem é desfavorecido? E por quê?
O dia 22 de abril também marca a chegada dos colonizadores no Brasil. De descobrimento, a data nada tem, mas a partir daí, diversas descobertas vieram. Os colonizadores descobriram terras férteis para os seus cultivares, sustentados pela exploração, e, posteriormente, o ouro e a prata. As imigrações se reduziram no decorrer do século XX, mas o Brasil seguiu/segue na posição de território colonizado a ser explorado, em especial, com o advento do capitalismo. Assim, também foram descobertos o cobre, o petróleo, a silvinita, o gás natural e, mais recentemente, o gás de xisto.
Já os povos que aqui viviam antes de 1500, descobriram o projeto genocida dos invasores, iniciado na colonização, mas que se perpetua até os dias de hoje. Enquanto os exploradores, passados e atuais, sob o incentivo do governo, buscam novas descobertas sob e sobre a terra, os povos indígenas seguem vivendo no ponto cego da perspectiva desenvolvimentista, protegendo e celebrando a terra da qual dependem, hoje e todos os dias.
Mas e nós? Os demais brasileiros e brasileiras que não somos indígenas, tampouco europeus ou grandes empresários? Neste dia de reflexão, devemos apoiar essas explorações ou devemos zelar pelo meio ambiente? onde queremos ver nosso país chegar? Nossa Terra? Diversos povos têm suas respostas para essas perguntas, a exemplo do povo Yanomami. Destaca-se um trecho do livro A queda do céu, em que Davi Kopenawa trata sobre o tema:
“Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus pais mortos!”
A maior parte de nós não vive nas florestas, mas todas e todos, sem exceção, dependem dos serviços ecossistêmicos prestados pelas áreas naturais deste continente, que, além dos aspectos ambientais, trazem benefícios econômicos e sociais, relativos ao bem-estar humano. A Floresta Amazônica tem papel fundamental nos ciclos das chuvas que sustentam a nossa agricultura, que mantém nossa segurança hídrica e a estabilidade climática do país. A Floresta Amazônica também condiciona a existência de outros biomas brasileiros, que desempenham papel semelhante. Ademais, áreas bem preservadas e ambientalmente equilibradas impedem a proliferação de doenças, como dengue, zika e chikungunya.
Temos tantos outros exemplos de benefícios advindos das áreas naturais deste país, mas, apenas para o que foi aqui citado, não há mercadorias que os compensem. Os Yanomami têm razão, não há dinheiro capaz de pagar pela nossa segurança alimentar, pela água que bebemos ou pela saúde de nossas famílias, tudo isso é grande e pesado demais e tem valor, não preço.
No entanto, o país nasceu e se desenvolveu sobre uma grande inversão de princípios, onde o lucro do empresário é priorizado, em detrimento do bem-estar social e da preservação ambiental. Questão essa explícita em casos como Brumadinho, Mariana, Maceió e no avanço das fronteiras de exploração de petróleo e gás. Os leilões de concessão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realizam, regularmente, ofertas de blocos de exploração offshore (no mar) e onshore (em terra), sobre e às margens das Terras Indígenas e territórios tradicionais, aumentando conflitos e a pressão sobre os territórios e colocando em risco ecossistemas aquáticos e terrestres.
Ao mesmo tempo em que os projetos exploradores avançam, são aprovados projetos de lei que anulam a proteção de territórios indígenas, como o PL 490/2007. Nos últimos 38 anos, as Terras Indígenas, demarcadas ou não, foram as áreas protegidas mais preservadas do país, como apontam estudos, de 2022, do MapBiomas, ainda assim o governo insiste em medidas que desfavorecem, justamente, essas populações. Nesse contexto, se observa que, mais do que pequenas ações pessoais, devemos agir coletivamente contra os verdadeiros devastadores, contra os exploradores contemporâneos, que tratam nosso país como uma despensa a ser exaurida, às custas de todas, todos e tudo o que aqui vive. Mais do que isso, devemos nos mobilizar em conjunto e em apoio àquelas pessoas e comunidades que dedicam suas vidas à defesa da vida e da floresta.
O planeta já existia antes de elegermos este o seu dia. Não temos como afirmar, nestes mais de quatro bilhões de anos de existência, a data em que de fato nasceu a Terra, a hora, o momento exato de sua criação. Assim, ainda que pensemos apenas nos 200 mil anos de existência da nossa espécie, um dia é insuficiente para celebrarmos o planeta que chamamos de ‘mãe’, ou mesmo para agirmos por ele, em especial frente aos impactos que geramos, em nossa história mais recente. Já passa da hora de agirmos de forma contínua contra empresas que matam nossos rios, contra empreendimentos que colocam em xeque nossa segurança hídrica e contra ações de governos que ferem os direitos daqueles que defendem as florestas.
O que desejo para o ‘aniversário’ da Terra, é que a presente data seja um marco, uma virada nas nossas ações e mobilizações. Com isso, concluo com uma boa reflexão de Bertolt Brecht, através de uma tradução adaptada: “Há quem lute um dia e é bom, há quem lute um ano e é melhor, há aqueles que lutam vários anos e são muito bons, mas há quem lute por toda a vida, esses são os imprescindíveis.”