por Comunicação Arayara | 19, dez, 2024 | Carvão Mineral |
Câmara ressuscitou “jabutis” da privatização da Eletrobras e assegurou a contratação, até 2050, de termelétricas movidas a gás e carvão. Governo estuda veto
Originalmente publicado em O Eco, por Ellen Nemitz em 19/12/2024.
O urgente projeto de tornar o setor elétrico brasileiro mais verde sofreu um importante revés no Congresso Nacional. O Projeto de Lei n. 576/2021, que traz uma esperada regulamentação da outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore (em alto mar), foi aprovado com um grande “jabuti” – o incentivo às termelétricas à carvão e gás até 2050.
O Marco Regulatório das Eólicas em Alto-Mar, de autoria do senador Jean-Paul Prates (PT/RN), delimita regras para o aproveitamento das águas marinhas brasileiras para a instalação de usinas de captação da energia dos ventos na costa. O texto veda, por exemplo, a instalação das plantas em rotas de navegação, áreas protegidas pela legislação ambiental e áreas tombadas como paisagem cultural e natural, além de restringir o conflito de interesses econômicos em regiões já utilizadas pela indústria offshore de petróleo e gás.
No entanto, a redação final aprovada pelo Senado na última quinta-feira (12), e que segue para sanção presidencial, é um substitutivo na Câmara dos Deputados que reedita os jabutis da privatização da Eletrobras pela Lei 14.182/2021 e insere obrigatoriedades em relação à produção de energia termelétrica de fontes sujas, como gás e carvão.
O texto assegura a contratação de reserva de capacidade de termelétricas com efetividade até 31 de dezembro de 2050, além da contratação de energia oriunda de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), de hidrogênio líquido gerado a partir de etanol e da produção de parques eólicos. A matéria passou pela Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) no início do mês, onde recebeu relatoria favorável do senador Weverton Rocha (PDT-MA), e foi a votação em plenário a toque de caixa.
De acordo com o gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), Ricardo Lacerda Baitello, esta versão do “jabuti” é ainda mais preocupante, porque, embora reduza a obrigatoriedade de contratação de 8 GW para 4,25 GW, aumenta as chances de sucesso nos leilões futuros ao ajustar o preço teto, tornando o investimento mais atraente para empresas – um dos motivos que fizeram leilões anteriores serem fracassados foi o fato de o texto da Lei de Privatização da Eletrobras prever a instalação das usinas em regiões do país sem infraestrutura de gasodutos, uma estratégia para fomentar o desenvolvimento, mas que encarece os custos dos empreendimentos. “Outro fator é a extensão da vida útil das térmicas a carvão, que já estava em 2040 e vai para 2050″, acrescenta Baitello.
De acordo com estimativa feita pela Frente Nacional dos Consumidores de Energia, a mudança proposta pela matéria pode representar um aumento de 9% no custo da energia e uma despesa anual de R$21 bilhões em subsídios até 2050. Além disso, o Instituto Arayara, que classificou o substitutivo como “o maior retrocesso para a transição energética justa e sustentável no Brasil”, destaca que as emendas pró-gás natural e carvão mineral adicionadas ao projeto têm o potencial de gerar 274,4 milhões de toneladas de CO2 equivalente ao longo dos próximos 25 anos – um volume comparável às emissões anuais combinadas do setor de transportes e da produção de combustíveis fósseis no Brasil. “Esse retrocesso ambiental ameaça neutralizar os avanços obtidos com a redução do desmatamento da Amazônia entre 2022 e 2023, comprometendo os esforços do país no combate às mudanças climáticas”, afirma a nota do Arayara.
Na votação, o texto substitutivo teve 40 votos favoráveis e 28 contrários. De acordo com a Coalizão Energia Limpa, em análise prévia à aprovação do texto em plenário, os senadores governistas Otto Alencar (PSD/BA) e Jaques Wagner (PT/BA) haviam sinalizado que a decisão ainda pode ser revertida por veto presidencial, mas que o caminho é bastante incerto. Baitello também avalia que é difícil prever, neste momento, se o governo vai vetar os jabutis e aprovar o marco regulatório em sua versão original.
O Instituto Arayara destaca ainda que esta não é a primeira tentativa da indústria do carvão de fazer lobby em prol da energia suja dentro de projetos que deveriam tratar da transição para uma matriz mais sustentável, e que a aprovação do substitutivo com os jabutis entra em contradição com outro projeto votado na mesma semana: o PL 327/2021, que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (PATEN), cujo objetivo é justamente incentivar a substituição de matrizes poluentes por fontes renováveis.
O panorama da energia eólica offshore
Atualmente o Ibama tem mais de 100 pedidos de licenciamento ambiental protocolados, em um dos filões econômicos mais visados pela indústria de olho no potencial eólico do país. A produção de hidrogênio verde – tipo de combustível catalisado pela energia renovável dos ventos – é o carro-chefe de boa parte dos empreendimentos e consta nos projetos de transição energética do governo brasileiro.
Vale lembrar, contudo, que a mera aprovação de um marco regulatório, embora muito aguardada pelos setores que acompanham a transição energética, não garante a sustentabilidade do setor. Devido à complexidade destes empreendimentos, os quais impactam diretamente um delicado ecossistema marinho, é necessário que os estudos técnicos e relatórios de impacto ambiental (EIA/RIMA), previstos no PL 576/2021, sejam levados a cabo pelas empresas e devidamente exigidos pelos órgãos ambientais competentes, como já mostrou esta reportagem de ((o))eco.
“A gente precisaria de um processo mais amplo. No IEMA a gente tem discutido a possibilidade de revisão deste processo no qual muita pressão é colocada sobre o licenciamento, sobre um órgão ambiental [o Ibama] para fazer a discussão com a sociedade e os [setores e pessoas] impactados. A gente defende uma revisão para um processo mais estrutural em que se possa discutir os projetos antes de eles serem leiloados ou arrematados”, explica Ricardo Baitello.
por Comunicação Arayara | 17, dez, 2024 | Arayara na mídia |
Setor emplacou “jabuti” em projeto de eólicas offshore e viu complexo termelétrico avançar no Pará
Por Rafael Oliveira – Agência Pública – 16/12/2024
No tabuleiro da produção energética no Brasil, o peão do gás natural avançou várias casas em 2024. A vitória mais recente ocorreu na semana passada, quando o lobby do setor conquistou a aprovação de um jabuti – trecho em um projeto de lei (PL) sem relação com o tema original – que o favorece no PL que regulamenta as eólicas offshore.
Mas houve outras conquistas ao longo do ano. No Pará, a instalação de um gigantesco complexo termelétrico está acelerada, e durante a reunião do G20 (grupo das nações mais ricas), o ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia (MME), assinou um memorando de entendimento com a Argentina para importação do gás de Vaca Muerta, que pode ajudar a baratear o combustível fóssil no país.
Em um momento em que o Brasil deveria estar, na visão de especialistas, reduzindo o uso de combustíveis fósseis, os principais responsáveis pelas mudanças climáticas, a previsão é de crescimento. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2034, produzido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao MME, estima mais que dobrar a produção bruta do gás natural, chegando a 315 milhões de metros cúbicos por dia nos próximos 10 anos.
A defesa do crescimento do combustível de origem fóssil, que conta com o apoio de Silveira, se baseia em dois argumentos principais que são fortemente rechaçados por ambientalistas.
O primeiro é de que o gás natural seria fundamental para a transição energética do país. “O gás natural é fóssil, mas é o mais limpo dos fósseis. Quem quer excluir o gás natural no Brasil da transição energética é míope e quer que a energia fique mais cara, quer que o país não tenha segurança energética”, defende Adriano Pires, diretor do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura) e uma das principais vozes pró-gás natural do país.
De fato, o gás natural é menos poluente que outros fósseis, como petróleo e carvão, e é visto como importante combustível de transição em países que dependem muito dessas duas fontes, como ocorreu nos Estados Unidos. Mas não é o caso do Brasil. Aqui, na maior parte dos casos, o gás não está entrando como substituto de fósseis mais poluentes, mas como acréscimo.
Ou seja, em vez de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, o aumento da presença de gás vai sujar a nossa matriz elétrica, apontam especialistas. Além de, ao contrário do que diz Pires, aumentar a conta de luz. Gás é mais caro que água, sol ou vento.
POR QUE ISSO IMPORTA?
Aumento da presença do combustível fóssil na nossa matriz elétrica pode aumentar nossas emissões de gases de efeito estufa e o preço da conta de luz
País planeja dobrar produção de gás nos próximos dez anos, apesar de compromisso global por transição para longe dos combustíveis fósseis, necessária para conter o aquecimento global
“O que o setor do gás quer é correr atrás de um tempo perdido que não vai voltar”, afirma Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). “O único lugar que ainda se pode argumentar que o gás deve fazer parte é a indústria. Mas, fora isso, o gás só atrasa a transição energética. Quanto mais tempo ficarmos com o gás natural, mais vai demorar para dar escala a outras alternativas.”
O segundo argumento pró-gás remete ao apagão do início dos anos 2000, quando o abastecimento de energia elétrica no país era quase completamente dependente de fontes hidrelétricas, e uma seca intensa obrigou o governo a promover um racionamento de energia. Foi quando várias termelétricas foram construídas no Brasil para evitar o desabastecimento.
De lá para cá, no entanto, a participação de outras fontes renováveis, como solar e eólica, aumentou significativamente, reduzindo a dependência das chuvas. A partir de então, a justificativa passou a ser que essas duas fontes são intermitentes e, portanto, não seriam confiáveis como as fontes fósseis.
“Existem soluções para lidar com a intermitência dessas fontes, como o armazenamento de energia em baterias e o aumento da transmissão”, aponta Baitelo. “Em algumas épocas do ano estamos desperdiçando energia renovável adoidado. O Brasil está com energia sobrando, com leilões sendo cancelados. Não é falta de energia, é falta de planejamento, falta de um sistema robusto”, complementa
O Iema, onde Baitelo atua, é um dos membros da Coalizão Energia Limpa, que em junho deste ano publicou o relatório “Regressão Energética: como a expansão do gás fóssil atrapalha a transição elétrica brasileira rumo à justiça climática”. O estudo sistematiza os acontecimentos do setor de gás natural nos últimos anos e aponta os problemas da expansão do uso do combustível fóssil, que responde pela maior parte das emissões do setor elétrico brasileiro.
Com o aumento das emissões de gases do efeito estufa, o planeta fica cada vez mais distante da meta de conter o aquecimento global em 1,5 °C. O resultado disso é o crescimento de eventos climáticos extremos, incluindo chuvas avassaladoras, como as que atingiram o Rio Grande do Sul, secas prolongadas como as que vêm afetando a bacia do rio Amazonas e ondas de calor.
O gás natural também está associado a danos ambientais locais, como riscos de vazamento, supressão de vegetação nativa, uso intensivo de água e poluição do ar – com possíveis impactos na saúde respiratória da população que vive na região da termelétrica. Segundo um estudo do C40, uma organização de cidades preocupadas com o meio ambiente, a poluição causada pelo gás natural pode resultar em mais de 48 mil mortes prematuras extras no Brasil até 2050.
Térmicas-jabuti vão encarecer conta de luz e aumentar emissões
Apontado como principal conquista do lobby do gás natural em 2024, o jabuti inserido no PL que regulamenta as eólicas offshore (em alto mar) é fruto de uma dobradinha com o ainda mais poluente carvão mineral. O projeto, que originalmente visava fortalecer uma fonte de energia limpa, acabou gerando benefícios também para os combustíveis fósseis.
O texto modifica um jabuti anterior que o setor tinha emplacado na lei que permitiu a privatização da Eletrobras, em 2021. Há três anos, tinha sido inserida a obrigatoriedade de instalação de 8 gigawatts (GW) de usinas térmicas. Mas como essa quantidade não se mostrou viável economicamente, o novo jabuti diminuiu a previsão para 4,25 GW. E criou dispositivos econômicos que favorecem empresas como a de Carlos Suarez, dono da Termogás e conhecido como “rei do gás”, como apontou reportagem d’O Globo.
Jabuti inserido no PL que regulamenta as eólicas em alto mar é fruto de uma dobradinha com o carvão mineral
O que se mantém é a inflexibilidade das usinas. Atualmente, a maior parte das térmicas do país só é acionada em caso de necessidade – como ocorreu neste ano diante da seca que atingiu as hidrelétricas. É o que gera a chamada bandeira vermelha. Quando a situação se estabiliza, elas são desligadas, e o preço volta ao normal. Com isso, as térmicas operam, em média, apenas 20% a 30% por ano. Mas os jabutis colocados tanto na lei da Eletrobrás quanto no PL das eólicas offshore estabelece que as térmicas devem operar obrigatoriamente por 70% do tempo.
De acordo com os cálculos da Coalizão Energia Limpa, essas mudanças têm o potencial de emitir 274,4 milhões de toneladas de CO2 equivalente ao longo dos próximos 25 anos. Além de gerar um custo adicional para o consumidor de até R$ 658 bilhões, cerca de R$ 25 bilhões por ano. Isso pode representar um aumento de 11% na conta de luz.
“Como as usinas são inflexíveis, o país vai ter de deixar de gerar energia de fontes mais baratas e menos poluentes, como a eólica, solar ou até a hidrelétrica. Vai se contratar uma energia cara, uma energia suja, e todo esse custo adicional poderia estar sendo redirecionado não só para a transição energética, mas também para investimentos em produção de energia renovável”, aponta Anton Schwyter, gerente de energia do Instituto Arayara.
Para Baitelo, o investimento obrigatório nas térmicas-jabuti pode gerar “ativos encalhados”, já que a redução do uso de combustíveis fósseis será cada vez mais imperativo nas próximas décadas. “Os contratos são de 15 de anos, algumas estariam começando [a operar] em 2026, outras em 2028. Isso significa criar térmicas e gasodutos que se estenderiam pelo menos até 2043, ou um pouco a mais. Vale a pena construir essa infraestrutura?”, questiona.
Os efeitos poluentes e no bolso do consumidor dos jabutis inseridos no PL das eólicas offshore não param por aí: o carvão mineral conseguiu emplacar o prolongamento até 2050 de usinas previstas para encerrar as atividades em 2028 – o que beneficia empresas como a Âmbar Energia, do grupo econômico dos irmãos Joesley e Wesley Batista.
O aumento da conta de energia é questionado por Adriano Pires, do CBIE. Para ele, os números são “completamente equivocados” e fruto de um “lobby burro e irresponsável” pró-eólica e solar. “Não vai ter picos de preço como a gente teve nos últimos anos e vai trazer mais segurança ao sistema elétrico brasileiro. Até mais segurança para a própria geração eólica e solar”, diz Pires.
Para o economista, que presta consultoria para empresas do setor, o aumento na emissão de gases do efeito estufa se justifica. “O grande emissor de gases do Brasil não é o setor energético. Tudo na vida tem um custo. Se a gente precisa ter segurança energética, a gente tem, às vezes, que aumentar um pouquinho a emissão de gases. Agora, o benefício da segurança é maior. Por quê? Porque o aumento é mínimo”, diz.
Aprovado no Senado após ganhar os jabutis na Câmara, o projeto aguarda sanção presidencial. Segundo o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), os dispositivos pró-fósseis serão vetados por Lula (PT). O senador afirmou que a questão será judicializada em caso de derrubada do veto pelo Congresso.
Subsídios para fósseis seguem muito maiores do que para renováveis
Na contramão do processo de fazer a transição para longe dos combustíveis fósseis, como definido pela Conferência do Clima da ONU de Dubai (COP28), em 2022, o Brasil segue institucionalmente e financeiramente apoiando fontes não renováveis e poluentes.
Segundo um relatório produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), os subsídios federais à produção e ao consumo de fontes fósseis chegaram a R$ 81,74 bilhões em 2023, valor muito superior ao destinado a fontes renováveis, que foi de pouco mais de R$ 18 bilhões. Para cada R$ 1 investido em fontes renováveis, R$ 4,52 foram destinados para fontes fósseis. Nos cinco anos anteriores, entre 2018 e 2022, os subsídios aos fósseis foram cinco vezes maiores do que às renováveis.
A predileção pelos fósseis também aparece no Plano Plurianual (PPA) 2024-2027, que estabelece o planejamento orçamentário do governo para o período. O PPA enviado ao Congresso Nacional destinou ao Programa Transição Energética somente 0,2% do valor alocado para o Programa Petróleo, Gás, Derivados e Biocombustíveis, segundo nota técnica do Inesc.
O favorecimento aos combustíveis não renováveis foi constatado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). No final de novembro, após auditoria nas políticas públicas e ações do governo federal em relação à transição energética, o TCU fez uma série de determinações e recomendações para o MME.
Na justificativa para seu voto, o ministro Walton Alencar Rodrigues destacou que “o sistema é pouco adequado para objetivos mais ambiciosos de reindustrialização verde”, apontando que a presença de investimentos em combustíveis fósseis no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é bem maior do que a de energias renováveis ou de baixo carbono: 62% contra 38%.
Além das isenções e subsídios federais, vários projetos relacionados ao setor de gás natural são financiados pelo BNDES. Nos últimos anos, o banco de desenvolvimento financiou projetos na cidade paraense de Barcarena (UTE Novo Tempo, em R$ 1,8 bilhão) e nas fluminenses São João da Barra (UTE GNA Porto do Açu III, R$ 3,9 bilhões) e Macaé (UTE Marlim Azul, R$ 2 bilhões).
Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira
O gás natural também é protagonista de uma iniciativa do ministério de Minas e Energia, comandado por Alexandre Silveira. Trata-se do “Gás para Empregar”, instituído via decreto do presidente Lula em agosto. O programa tem como objetivo diversificar e aumentar a oferta de gás natural no mercado doméstico e diminuir o preço para o consumidor final, além de atrair investimentos privados para a infraestrutura necessária.
Uma das iniciativas ligadas ao programa foi a assinatura do memorando de entendimento entre Brasil e Argentina durante a reunião do G20, no mês passado, para viabilizar a importação de gás natural argentino a partir do ano que vem. O montante, inicialmente de dois milhões de metros cúbicos por dia, pode chegar a 30 milhões de m³/dia em 2030.
O acordo, celebrado por Silveira, vai importar gás do controverso campo de Vaca Muerta, a segunda maior reserva de gás fóssil não convencional do mundo. A extração por lá se dá por meio do fracking, técnica criticada por ambientalistas por conta de seu impacto socioambiental.
O fracking, muito popular nos EUA, é proibido em países como França, Alemanha e Reino Unido, além de estados brasileiros como Paraná e Santa Catarina. Apesar disso, é frequentemente defendido por Silveira, que já afirmou que o veto à técnica “pode trazer grandes prejuízos ao Brasil”.
Em Barcarena, gás avança a passos largos
No Pará, em um município colado a Belém, que será sede da próxima Conferência do Clima da ONU (COP30), no ano que vem, uma subsidiária da multinacional New Fortress Energy (NFE) conseguiu avançar a passos largos em seu complexo de gás natural. Em fevereiro, a empresa inaugurou em Barcarena o primeiro terminal de importação de gás natural liquefeito (GNL) da região Norte e estacionou uma Unidade Flutuante de Armazenamento e Regaseificação (FSRU, na sigla em inglês) no porto local.
Também avançou nas obras da primeira etapa da usina termelétrica (UTE) Novo Tempo, que terá mais de 600 megawatts (MW) de capacidade instalada e tem previsão de inauguração em julho do ano que vem. Mas o projeto não para por aí: no final do ano passado a NFE assumiu o contrato de um projeto originalmente planejado para ser construído em Caucaia (CE), transferindo-o para Barcarena. A UTE Portocém, com capacidade prevista de 1,6 gigawatts (GW), também está em obras e tem o início da operação previsto para o início de 2027.
Segundo documentos internos da NFE enviados ao Ibama, o complexo termelétrico (que engloba a Novo Tempo e a Portocém) pode atingir a capacidade instalada de 2,6 GW ao final de todas as obras, se tornando o maior da América Latina. O valor equivale a quase 20% da capacidade instalada de Itaipu, a maior produtora de energia do Brasil.
Usina Termelétrica (UTE) Novo Tempo em Barcarena no Pará
Como mostrou a Agência Pública em reportagem publicada em julho, o vultoso empreendimento de gás natural está se instalando em um município com um histórico de dezenas de acidentes ambientais e uma população saturada dos impactos causados pelas empresas com a leniência do poder público.
“Todo ano tem novos desastres e todo ano são instalados novos empreendimentos, sem nenhum controle sobre os que já existem. Os desastres são praticamente iguais, a poluição é comprovada e aumenta o tempo todo, e mesmo assim o [governo do] estado chama mais empresas para se instalarem. Barcarena é uma bomba prestes a explodir”, disse à época o professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA) Marcel Theodoor Hazeu.
Nem tudo são flores para o gás natural
Nem só de conquistas viveu o setor de gás natural em 2024, no entanto.
Para Adriano Pires, consultor da área e voz pró-gás natural, frustrou a falta de novos leilões de energia por parte do governo federal e a manutenção do domínio da Petrobras na comercialização do gás – o que, para ele, dificulta a redução no preço do combustível.
Paralelamente a isso, uma demanda antiga do setor, a ampliação da infraestrutura, subiu no telhado: a discussão sobre o Brasduto, uma malha nacional de gasodutos a ser construída com dinheiro público, sequer voltou a dar as caras, depois de tentativas frustradas em 2022 e 2023.
Parte das derrotas do setor se deve à resistência de setores da sociedade civil contra o avanço do combustível fóssil.
Em Caçapava (SP), localizada a 115 km da capital, a Natural Energia encontrou dificuldades para fazer andar o processo de licenciamento ambiental da UTE São Paulo, que tem previsão de gerar 1,74 GW de energia e ser integrada ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Os possíveis impactos socioambientais e climáticos, incluindo a emissão de 6 milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano, têm feito com que ativistas e especialistas lutem contra a instalação do empreendimento.
No início do ano, em janeiro, a mobilização social fez com que o Ministério Público Federal (MPF) entrasse com uma ação civil pública que conseguiu barrar a realização de uma audiência pública e suspender o licenciamento.
A despeito de um parecer contrário do próprio Ibama em abril, apontando problemas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a Natural Energia conseguiu retomar o andamento do projeto, com novas audiências públicas sendo marcadas para o início de julho. Novamente, a mobilização social impediu que as audiências se concretizassem, dessa vez por meio de manifestações populares que inviabilizaram a realização.
No início de agosto, a empresa protocolou um EIA atualizado no sistema do Ibama, mas não houve novos avanços no licenciamento até o momento. Ainda não há perspectivas de realização de novas audiências públicas.
Além de movimentos e organizações ambientalistas, a possível instalação do empreendimento também despertou reações de outros setores. O Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), por exemplo, capitaneou um manifesto contrário à UTE. E as câmaras de vereadores de 12 municípios da região do Vale do Paraíba, incluindo a de Caçapava, aprovaram moção de repúdio contra a instalação da térmica a gás fóssil.
Edição: Giovana Girardi
por Comunicação Arayara - Nívia Cerqueira | 09, dez, 2024 | Indígenas |
Na tarde da última sexta-feira (6), a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) realizou uma audiência pública para discutir o Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas do Movimento Potigatapuia, composto pelas etnias Tabajara, Potiguara, Tubiba-Tapuia e Gavião. O debate, solicitado pelo deputado Renato Roseno (PSOL), aconteceu no Complexo de Comissões Técnicas da Alece, e se voltou para a Mina de Itataia, que pretende realizar a exploração de urânio e fosfato em Santa Quitéria.
Representantes da sociedade civil, como a ARAYARA, além de autoridades e organizações, incluindo a Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público Federal, estiveram presentes na discussão.
O protocolo abrange os povos Tabajara, Potiguara, Tubiba-Tapula e Gavião, reunindo 930 famílias distribuídas em 28 aldeias nos municípios de Monsenhor Tabosa, Boa Viagem, Tamboril, Catunda e Santa Quitéria, que alegam que o empreendimento, cujo licenciamento já está ocorrendo em âmbito federal no IBAMA, está avançando sem a consulta prévia dos povos da região.
O protocolo foi feito dividindo o território em cinco grupos, para a realização das consultas: Katuara, Abá Purang, Mantiqueira, Abá Katemá, Apisá, Apisá. Quase mil famílias, de 28 aldeias. Os povos indígenas do Movimento Potigatapuia abrangem os municípios cearenses de Monsenhor Tabosa, Catunda, Boa Viagem, Tamboril, Santa Quitéria.
Convenção 169
Embora o Consórcio da Mina Itatiaia afirme que as aldeias indígenas estão a mais de 25 km do empreendimento, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) exige a consulta das comunidades sobre projetos que possam afetar seus territórios.
“Os impactos indiretos, como contaminação de águas e perda de biodiversidade, podem atingir aldeias a longo prazo, ignorando o direito à consulta prévia garantido internacionalmente”, afirmou a representante do Instituto Internacional ARAYARA que participou ativamente da audiência.
Durante a sua apresentação, Renata Prata destacou diversas ações judiciais movidas pela ARAYARA, inclusive o caso Mina Guaíba, que guarda semelhanças com a atual conjuntura em Santa Quitéria, por ter sido em defesa de direitos territoriais de povos indígenas e ter como seu objeto um projeto de mineração.
“Essa ação criou um precedente importantíssimo, podendeo ser considerada uma das decisões mais progressistas na pauta socioambiental no estado do Rio Grande do Sul”, explicou Prata.
Prata ressaltou que a participação da ARAYARA – maior ONG de Litigância Climática da América Latina – na audiência reforça a importância da mobilização para garantir direitos e preservar o meio ambiente frente aos impactos da exploração da indústria.
Impactos do projeto Santa Quitéria
O Consórcio Santa Quitéria é formado pela Galvani e Indústrias Nucleares do Brasil (INB). O empreendimento propõe um complexo minero-industrial e nuclear em Santa Quitéria, no semiárido cearense. Com uma área diretamente afetada de 380 hectares, o projeto inclui extração de urânio para abastecer usinas nucleares e produção de fertilizantes e ração animal. Estima-se o consumo de 855 m³/h de água, um recurso escasso na região.
A ARAYARA analisou o relatório apresentado pela própria mineradora ao Ibama e encontrou vários pontos conflitantes. Alguns deles, foram considerados preocupantes, como a possibilidade de contaminação dos rios próximos à mina.
“O projeto visa tornar o Brasil autossuficiente nesta área estratégica, entretanto, apresenta uma série de impactos ambientais e sociais significativos nas três etapas de sua implementação: obras, funcionamento e fechamento”, esclarece o diretor-presidente da ARAYARA, Juliano Bueno de Araújo. Ele destaca que o urânio produzido será destinado às usinas nucleares de Angra dos Reis, atualmente dependentes de material importado para operação.
Apesar do empreendimento reforçar seu discurso de promover geração de empregos e arrecadação de tributos durante seus 20 anos de operação, a engenheira ambiental Daniela Giovana Barros alerta para os impactos ambientais e sociais irreversíveis.
“Esses ganhos são temporários e insuficientes para compensar os potenciais desequilíbrios ambientais e sociais que o projeto pode causar a longo prazo. Impactos como: mudanças na recarga de aquíferos, qualidade do solo e do ar, além de alterações na paisagem e na biota terrestre e aquática, podem ter consequências muito mais sérias do que inicialmente está sendo estimado, ressaltou Barros.
Próximos passos
Como encaminhamento da audiência, ficou definido que o Movimento Potigatapuia, com o apoio do mandato do deputado Renato Roseno, reforçaria as medidas administrativas já adotadas. Entre as ações, estão o envio de ofícios ao IBAMA e à FUNAI solicitando a retomada do processo de demarcação das terras indígenas pertencentes aos povos integrantes do movimento. Além disso, foi recomendado que fosse suspenso o memorando de entendimento firmado pelo consórcio da empresa mineradora responsável pelo projeto em questão.
por Comunicação Arayara - Nívia Cerqueira | 22, nov, 2024 | Transição energética |
Cinco dias antes do início da COP 29 (29a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – CQNUMC/ UNFCCC), a Diretoria Executiva da Petrobrás aprovou uma medida esperada há anos: a Petrobrás Biocombustível S.A. (PBio) não será vendida tão cedo. A decisão atende ao pleito de trabalhadores do setor de energia que se mobilizam nas últimas décadas em defesa da PBio.
Artigo de Opinião
Por Renata de Loyola Prata – advogada, assistente da Diretoria Executiva da ARAYARA
A PBio foi fundada em 2008 como subsidiária integral da Petrobrás e, desde então, houve sucessivas iniciativas de minguar a empresa, sempre resistidas pelos trabalhadores da PBio e petroleiros. Os trabalhadores da subsidiária, assim como da Transpetro, se organizam nos Sindipetros, tendo em vista que a atividade econômica preponderante da empresa matriz é a exploração, produção, refino e transporte de petróleo e gás. Em 2021, houve uma greve nacional contra a privatização da PBio, chegando à adesão, na Bahia, de 100% dos trabalhadores da usina. A Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) ingressou com uma ação popular contra a tentativa de privatização. Além disso, o Sindipetro/MG, Sindipetro/BA, Sindipetro CE/PI, em convergência, propuseram uma ação civil pública. No bojo dessa ação judicial, o Ministério Público Federal apresentou parecer favorável à suspensão do processo de concessão.
Atualmente, a PBio é proprietária de três usinas de biodiesel: duas em funcionamento localizadas na Bahia e em Minas Gerais e uma hibernada no Ceará. Segundo a Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), a subsidiária foi pioneira no desenvolvimento de tecnologias e da produção de biodiesel no Brasil, atingindo a colocação de maior produtora de biodiesel no país, também atuando na produção de etanol. Entretanto, em 2023, a subsidiária produziu o menor resultado em toda sua história: apenas 91 mil m³ de biodiesel.
De acordo com a cartilha apresentada na COP 27, desenvolvida pelo Instituto Internacional ARAYARA, Sindipetro-RJ entre outras organizações de ensino e pesquisa e da sociedade civil, a empresa de economia mista é uma das melhores apostas para o Estado brasileiro de fato promover uma transição energética justa no país, mesmo após sua abertura para o investimento privado nos anos noventa, e o início dos leilões, possibilitando a venda de blocos de petróleo e gás para empresas privadas explorarem. Embora longe do cenário ideal, a empresa ainda é controlada pela União e, no início deste ano, o Estado detinha diretamente mais 50,26% de suas ações ordinárias.
A emergência climática é assunto de caráter público e coletivo, tendo em vista que gera danos para toda a população e perpetua injustiças sociais, raciais e de gênero. A necessidade de abandonar o petróleo, gás e carvão e zerar o desmatamento, como premissas para reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa, impõe tarefas transversais, coordenadas, robustas e que, necessariamente, reduzirão a margem de lucro do setor de combustíveis fósseis e da agropecuária insustentável e irresponsável. Inclusive, após anos de letargia desde o Rio 92, finalmente na COP do ano passado, constou no acordo aprovado no final da conferência, pela primeira vez na história da CQNUMC/ UNFCCC, que é necessária a “transição em direção ao fim dos combustíveis fósseis”. Devido a sua natureza, essas tarefas dificilmente serão orquestradas por outro ator senão o Estado imbuído de participação popular sobretudo de comunidades já afetadas pelo caos climático e poluição gerada por esses setores.
Por isso, a reversão de privatizações no setor elétrico é mais comum mundo afora. Em junho do ano passado, a França concluiu a reestatização da Électricité de France (EDF), geradora de energia. Desde o ano 2000, a Alemanha reestatizou 284 empresas do setor de energia, a Austrália 13, a Holanda 6, a Espanha 19, o Reino Unido 15 e os Estados Unidos 11. Nesse sentido, a luta dos trabalhadores da PBio e petroleiros continua, tendo em vista que o horizonte é mais ambicioso do que retirar a subsidiária do rol de privatizações. A demanda é para que os empregados da PBio sejam incorporados ao Sistema Petrobrás, havendo um plano de cargos único e firmando acordos coletivos unitários, assim valorizando os trabalhadores e fortalecendo a atividade.
Medidas como essa, que trazem maior potência à PBio contribuem para que o país aprimore sua estrutura institucional na mitigação climática. A nova NDC (Contribição Nacionalmente Determinada) que a delegação brasileira apresentou na COP hoje em curso, está longe de prever todas as medidas que de fato nos afastem do precipício climático e social. Entretanto, o destaque que o Brasil dotou aos biocombustíveis é um importante passo e precisa ser materializado em uma agenda de fortalecimento da PBio, dando continuidade às boas novas sobre a subsidiária. Essa tarefa, evidentemente, deve ser trilhada com salvaguardas, compreendendo que a indústria de biocombustíveis deve ser fortalecida para a mitigação climática e justiça ambiental.
Nesse sentido, conforme idealizado desde seu início, o Programa Nacional de Biodiesel, a produção de biocombustíveis deve ser integrada à agricultura familiar, priorizando pequenos fornecedores locais produtores de óleos (mamona, macaúba, caroço de algodão, entre outras), evitando monoculturas, gerando emprego e renda, fortalecendo uma cadeia de suprimentos sustentável e estimulando uma economia regenerativa. Aliado a isso, deve haver um firme compromisso da Petrobrás para afastar definitivamente de sua política a possibilidade de privatizar a PBio e que a subsidiária, bem como a Petrobrás sejam 100% estatais.
As soluções para a mitigação climática devem ser articuladas com ampla participação de comunidades atingidas e das categorias laborais mais próximas aos setores geradores de gases de efeito estufa. Essa troca mútua historicamente rendeu bons frutos, conforme argumenta Stefania Barca em “Workers of the Earth: Labour, Ecology and Reproduction in the Age of Climate Change” (2024). Recentemente no Brasil, experiências como as mobilizações contra os leilões de petróleo e gás da oferta permanente são escolas de ação climática, agitadas por quilombolas, indígenas, trabalhadores do Sindipetro-RJ e organizações da sociedade civil. Muito também nos ensina a luta vitoriosa dos petroleiros contra a privatização da PBio.