O domingo, 19 de abril de 2020, o presidente da República mais uma vez testou os limites não só do bom senso, mas das leis. Bolsonaro desrespeitou não apenas a orientação de isolamento social, mas flertou com uma manifestação ilegítima e que, para muitos, fere a Constituição. Em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, Jair Bolsonaro discursou em cima de uma pick-up para um grupo que ali estava, aglomerado, pedindo o fim da Suprema Corte, o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção militar.
Após repercutir em todo o Brasil e gerar repúdio de chefes de poderes, Bolsonaro disse que é preciso respeitar a liberdade de expressão e foi além: “Eu sou a Constituição”, disse. Em frente ao Palácio da Alvorada, notadamente irritado, Bolsonaro tentou desmentir a si mesmo e, mais uma vez, culpou a imprensa pela repercussão de seu discurso.
Diz o ditado: “há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida”. Jair Bolsonaro, com suas palavras, flechou a democracia, perdeu mais uma oportunidade de calar e pronunciou-se de forma irresponsável. Para alguns, até mesmo criminosa.
Sobre o episódio, a Anistia Internacional afirmou que repudia qualquer manifestação que tenha por objetivo pedir a volta do Regime Militar. “O Golpe Militar deu início a um período de exceção, marcado por graves violações de direitos humanos, como direito à vida, direito à dignidade humana, à liberdade de associação, à liberdade de expressão, entre outros”, disseram.
Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, disse: “Em um momento de crise global, em que todos os brasileiros precisam de um governo que enfrente à crise da COVID-19 e garanta o acesso à assistência médica de forma ampla, sem deixar nenhum cidadão para trás, fazer memória do Regime Militar e defender seu retorno é um enorme retrocesso. Expõe o cidadão brasileiro a violações de direitos humanos fundamentais garantidos pela Constituição de 1988. Não podemos esquecer que durante o Regime Militar torturas, estupros, assassinatos, cassações de direitos políticos e desaparecimentos forçados foram praticados por agentes do Estado que tem o dever de proteger toda a população, independente de seu posicionamento político e ideológico. É grave que o presidente Jair Bolsonaro participe de manifestações que exaltam o Regime Militar, pois ele deve dar exemplo de garantias de direitos para todos os brasileiros e brasileiras”, afirma .
A Human Rights Watch Brasil também se manifestou: “o presidente Jair Bolsonaro continua a agir de forma irresponsável e perigosa, colocando em risco a vida e a saúde dos brasileiros, em flagrante desrespeito às recomendações do seu próprio Ministério de Saúde e da Organização Mundial da Saúde. Além disso, ao participar de ato com ostensivo apoio à ditadura, Bolsonaro celebra um regime que causou sofrimento indescritível a dezenas de milhares de brasileiros, e resultou em 4.841 representantes eleitos destituídos do cargo, aproximadamente 20.000 pessoas torturadas e pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas. Em um momento que requer união de todos contra a disseminação da COVID-19, Bolsonaro se agarra ao radicalismo e demonstra pouco apreço às instituições democráticas do país”.
Desvio de foco
O ato de Bolsonaro aconteceu no mesmo dia em que o Brasil atingiu a marca de 2.400 mortos pelo novo coronavírus. Ao optar pelo discurso na pick-up, o presidente desviou o foco do país e, mais uma vez, politizou a pandemia.
Desde o início da pandemia, Jair Bolsonaro insiste em menosprezá-la. Gripezinha não derruba um país, diz ele. E, já com vistas a 2022, embora tenha prometido não concorrer à reeleição, Bolsonaro segue flertando com o fim da democracia e ameaçando os limites da lei. Resta saber até quando as instituições permitirão que o chefe máximo da nação, eleito em um regime democrático, defenda o fim da democracia.
Para Nicole de Oliveira e Juliano Bueno, diretores do Instituto Internacional Arayara, a defesa da democracia deve unir todos. Segundo eles, milhares de vidas foram perdidas para que o Brasil chegasse ao regime democrático. Fazer justiça a essas vidas perdidas é lutar, incansavelmente, pela manutenção do estado democrático de direito e contra a tirania e a escalada autoritária.