Por: Vinicius Nora
“A solução pro nosso povo eu vou dar
Negócio bom assim ninguém nunca viu
‘Tá tudo pronto aqui é só vir pegar
A solução é alugar o Brasil”
A canção de Raul Seixas e Claudio Roberto soava atual enquanto o Senado brasileiro debatia a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022. Lamentavelmente, em um momento em que o Brasil enfrenta uma das maiores crises climáticas de sua história, negacionistas do Senado Federal ignoraram o risco e abriram caminho para o debate sobre a privatização das praias brasileiras, a especulação imobiliária e o futuro de populações litorâneas inteiras.
Também conhecida como PEC dos Terrenos de Marinha, ela propõe a extinção e a transferência do domínio de áreas públicas da União (conhecidas como terrenos de marinha) para estados, municípios e outros. O texto está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde é relatado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e terá nos próximos passos um intenso lobby a seu favor. Apesar disso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já sinalizou que a pauta ficará de fora (pelo menos por enquanto).
Ontem, ocorreu uma audiência em que os defensores da PEC, ainda cegos quanto à realidade climática, argumentaram que a medida visa regularizar a situação fundiária e promover o desenvolvimento urbano. Muito da negativa da PEC na agenda do Senado pode dever-se ao fato de que houve intensa mobilização. A sessão no YouTube chegou a contar com mais de 1900 pessoas assistindo ao vivo.
Cientistas, gestoras, ambientalistas e comunidades ainda alertam que a extinção dos terrenos de marinha pode gerar impactos negativos ao meio ambiente, como desmatamento, construção irregular e degradação ambiental. Para as áreas costeiras, esses terrenos são fundamentais, pois protegem a biodiversidade, absorvem carbono e promovem a defesa de primeira linha contra os efeitos das mudanças climáticas. A degradação desses espaços aumentaria o risco de desastres naturais, como inundações e erosão costeira, exemplos já corriqueiros no litoral brasileiro.
Além disso, a PEC traria prejuízos à União, pois a transferência da propriedade dos terrenos de marinha pode representar uma perda de receita, já que a União não poderá mais cobrar taxas e impostos pela exploração dessas áreas. Esse cenário traria conflitos judiciais entre a União, os estados, os municípios e os ocupantes dos terrenos. Esse caso foi exemplificado durante a audiência e ganhou destaque na mídia com o caso do jogador Neymar.
Além desse caso específico, muitos outros são foco dos alertas no que tange à perspectiva da privatização e especulação imobiliária. Indicados por muitas vozes no assunto, esse talvez seja o maior motivador e um dos principais riscos da PEC 3/2022: a possibilidade de privatização das praias brasileiras. A transferência dos terrenos de marinha para entidades privadas pode levar à especulação imobiliária e ao aumento do preço da terra, beneficiando grandes empresas em detrimento da população de baixa renda, favorecendo a mitigação de catástrofes climáticas, ao invés de uma agenda de adaptação. Afinal, a quem interessa aprovar uma PEC com esse teor?
Enquanto escrevo esse texto, ocorre o Seminário de Apresentação do Processo de Construção da Estratégia Nacional de Mitigação 2024-2035, onde os terrenos de marinha têm um papel crucial quanto ao impacto futuro das mudanças climáticas no Brasil. Esse é um tema importante para os governos, empresas e população em geral, pois a previsão com o financiamento climático global, com o objetivo de mitigar os impactos já previstos, é estimado em US$ 1,3 trilhão, enquanto o financiamento para adaptação está avaliado em US$ 63 bilhões – boleto esse que ainda não tem dono certo.
A narrativa entre cientistas e negacionistas climáticos é um pano de fundo crucial nessa discussão. Enquanto cientistas alertam para a gravidade das mudanças climáticas e a necessidade urgente de medidas de adaptação e mitigação, negacionistas minimizam os riscos e promovem agendas que favorecem interesses econômicos imediatos em detrimento do bem comum e da sustentabilidade a longo prazo.
A PEC 3/2022 não é apenas uma questão de propriedade de terras, mas uma decisão que pode determinar o futuro ambiental e social do Brasil. É essencial que os senadores considerem os impactos amplos e de longo prazo dessa proposta. A proteção das zonas costeiras é fundamental para garantir a segurança climática, a preservação da biodiversidade e a justiça social.
Neste momento crítico, é imperativo que a sociedade civil se organize contra a PEC 3/2022. Pressionar os senadores a rejeitar essa proposta é um passo crucial para proteger nosso patrimônio natural e as comunidades que dependem dele. Não podemos permitir que interesses privados comprometam o bem-estar coletivo e a integridade do nosso meio ambiente, pois, diferente da canção do Raul, não seria tudo Free.
Quer se informar sobre a PEC? Recomendo quatro links:
– Live no Instagram da Liga das Mulheres pelos Oceanos https://www.instagram.com/liga.mulheres.pelos.oceanos/
– O artigo de opinião da Bia Mattiuzzo, da Marulho https://www.marulho.org/artigo-opiniao-bia-mattiuzzo
– O movimento de pedido de votação popular contrária a #PEC0322NÃO https://www.pec0322nao.org
– A gravação da Audiência na CCJ (27/05/2024) https://www.youtube.com/watch?v=ccj-audiencia-27-05-2024