Duas emergências ambientais são registradas, em média, por dia no Brasil. Essa taxa diária, observada ao longo deste ano, tem se mantido estável desde 2023, revelando um quadro de risco ambiental às vésperas da COP 30. Em 2019, foram registradas mais de 3,6 mil emergências no país. Os dados chamam a atenção para o aumento da fragilidade das estruturas de prevenção a acidentes ambientais no Brasil.
A análise foi feita pela Lupa com base em registros do Sistema Nacional de Emergências Ambientais (Siema), instituído por uma instrução normativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 2014. O sistema compila ocorrências comunicadas por órgãos ambientais, responsáveis por relatar eventos como derramamentos, explosões, incêndios e outras situações com potencial de impacto ambiental.
Embora acidentes e emergências não sejam sinônimos, os dois conceitos estão frequentemente associados. Nem todo acidente se configura como uma emergência – definida, segundo a legislação, como uma ameaça súbita ao meio ambiente ou à saúde pública, abrangendo também desastres naturais.
Acidentes ambientais, especialmente os de médio e grande porte, podem comprometer habitats inteiros, dizem especialistas ouvidos pela reportagem, levando à morte de espécies aquáticas e terrestres e à contaminação do solo e da água. A preocupação é principalmente em áreas sensíveis – como oceanos, matas ciliares e manguezais –, diante de diversas iniciativas de investimentos no país em combustível fóssil, como a exploração de petróleo na Margem Equatorial, na foz do Amazonas.
Acidentes com caminhões-tanques em rodovias, como o tombamento de uma carreta na BR- 116, em Magé (RJ), em outubro de 2024, é um dos muitos reflexos desse alerta. Após o vazamento de óleo causado pela colisão, pescadores encontraram caranguejos e peixes mortos, cobertos com o produto químico nas águas do rio Suruí.
À época, o Comitê da Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara e dos Sistemas Lagunares de Maricá e Jacarepaguá (CBH Baía de Guanabara) publicou nota mostrando preocupação com a contaminação do rio Suruí e os prejuízos acarretados após o acidente. “Além disso, a contaminação mostra que há uma população de comunidades tradicionais que depende do ecossistema para sobreviver e que quaisquer alterações nesse ambiente, afeta o meio de sustento”, diz trecho do texto.

Fonte: Reprodução/Lupa.uol
Trechos de notícias de acidentes com vazamentos de óleo em rodovias.
Apesar de a reportagem ter chegado ao número de 3.652 emergências ambientais, o total real pode ser ainda maior. Fora dessa lista, há dezenas de registros sem data exata de ocorrência do incidente – o que pode indicar falhas na comunicação oficial ou a impossibilidade de se determinar o momento exato de início de determinados eventos, como vazamentos prolongados. Para assegurar a precisão da análise, foram considerados apenas os casos cuja data de ocorrência está claramente situada dentro do período analisado, entre os anos de 2019 e 3 de julho de 2025, abrangendo os governos Bolsonaro e Lula.
Mesmo breve, a série histórica indica um aumento consistente das emergências registradas no Siema, com estabilização, a partir de 2023, em um patamar superior a 650 casos por ano – tendência que se mantém em 2025, considerando o número de ocorrências já contabilizadas no primeiro semestre.

Fonte: Reprodução/Lupa.uol
Esse alto número de emergências, principalmente em plataformas de petróleo, mostra “o quão perigosa é essa indústria como um todo”. O alerta é de Mariana Andrade, coordenadora da frente de Oceanos do Greenpeace Brasil. Em terra ou em mar, a cadeia de indústria do petróleo gera um alto potencial de contaminação na biodiversidade e impacta diversos ecossistemas, diz. “Obviamente esse tipo de indústria ainda deve se manter por algum tempo, mas ela precisa ter protocolos rígidos. A gente precisa estar de olho enquanto sociedade nesse tipo de risco dos acidentes, para evidenciar a complexidade desse tipo de indústria de atividade”, reitera Andrade.
Diesel e óleo cru lideram lista de derramamentos
Não é por acaso que rodovias e plataformas estejam na origem da maior parte das emergências ambientais registradas no país. Tampouco que, por consequência, o diesel e o petróleo cru figurem entre as substâncias mais frequentemente envolvidas nesses episódios. Trata-se de um reflexo direto do modelo de transporte adotado no Brasil desde meados do século passado, baseado prioritariamente no modal rodoviário, e da consequente dependência de uma matriz energética centrada na produção e no consumo de combustíveis fósseis.
Também não surpreende que o tipo de ocorrência mais comum seja o vazamento de líquidos, seguido pelo lançamento de sólidos, com 393 casos. Entre os vazamentos, o mais frequente envolve o diesel, combustível amplamente utilizado no transporte rodoviário de cargas, com 402 notificações. Em 51 desses episódios, o diesel estava associado a outros produtos perigosos, em muitos casos presentes na carga dos veículos envolvidos.

O combustível derivado de fonte fóssil é seguido justamente pelo petróleo cru, com 221 emergências registradas ao longo dos seis anos e meio de série histórica. Quase metade desses casos ocorreu na Bacia de Campos – entre Rio de Janeiro e Espírito Santo, responsável por cerca de 20% da produção nacional –, com 73 registros, e Bacia de Santos – responsável por mais de 70% da produção do país e que se estende do litoral fluminense ao norte de Santa Catarina –, com 23 emergências.
Outro dado relevante é que, do total de vazamentos registrados no país, 128 ocorreram em plataformas. Um reflexo direto da concentração da produção de petróleo cru em áreas offshore, como as bacias de Campos e Santos.
Apontada pelos especialistas, a vulnerabilidade estrutural do modelo logístico adotado no país é evidenciada pelos dados do próprio governo Federal: uma matriz fóssil que impõe riscos contínuos em todas as etapas da cadeia: da extração ao uso final.

Em rodovias, o resultado vem da falta de fiscalização e da ausência de maior rigor na cobrança de responsabilidades por parte das empresas que fazem esse tipo de transporte, diz Taciana Stec, analista de Políticas Públicas do Instituto Talanoa. “Quando a gente tem um derramamento, um acidente, lógico, a fauna, a flora, o recurso hídrico, ou seja, o ambiente equilibrado daquele território é bastante atingido. E aí no oceano é outra história que é também muito grave”, lembra.
Principal meio de escoamento de produtos como petróleo, diesel e de outras formas de óleo, as rodovias não estão adaptadas muitas vezes para incidentes ou eventos climáticos, como tempestade, inundações, cheias e estiagens, o que compromete a segurança das operações, afirmam especialistas consultados pela reportagem.
“A gente precisa também de um olhar para que a rodovia esteja apropriada, assim, tanto no processo de licenciamento, de refazer o asfalto ou duplicar uma rodovia, ou até mesmo abrir uma nova estrada. A gente precisa de um processo de licenciamento muito robusto que dê conta também dessas externalidades climáticas”, reforça Taciana Stec, do Instituto Talanoa.
Situação essa que pode se agravar com o projeto que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021), aprovado pela Câmara dos Deputados na madrugada desta quinta-feira (17). Embora traga alguns reforços nas exigências técnicas, o texto abre espaço para uma flexibilização significativa do licenciamento, especialmente em projetos classificados como prioritários pelo governo. A medida pode resultar na abertura de novas rodovias em regiões sensíveis, comprometendo ecossistemas inteiros em eventuais acidentes com substâncias químicas. É o caso, por exemplo, da BR-319, estrada que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM) e que enfrenta dificuldades há anos para obter o licenciamento ambiental necessário para a sua repavimentação. O texto segue agora para sanção do presidente Lula.
“Então, essa pauta faz parte da agenda de flexibilização, que também impacta o transporte, a produção e o próprio licenciamento das rodovias. Porque a gente tem que considerar que a rodovia passa por áreas sensíveis, muitas vezes áreas de proteção ambiental, área de proteção permanente. A gente tem unidades de conservação muito próximas das rodovias. Então, existe esse impacto gigantesco, principalmente nos recursos hídricos, quando a gente tem vazamento de óleo, diesel ou de outro tipo de derivados de petróleo em geral”– Taciana Stec, do Instituto Talanoa.
Para John Wurdig, gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara, o que explica também o aumento de acidentes em plataformas de petróleo é a redução de investimentos da própria Petrobras na área ambiental e a terceirização de sua cadeia produtiva de petróleo. “Muitas vezes têm a terceirização e isso traz uma fragilidade porque você expande a cadeia produtiva e não consegue muitas vezes ter um profissional tão preparado com um x tempo de experiência que lide com essas questões”, diz.
Coordenador do Programa dos Defensores Climáticos da 350.org Brasil, Luiz Afonso Rosário lembra que a atividade da cadeia produtiva de petróleo é “altamente perigosa”. “Não existe segurança na exploração de óleo e gás, sempre vai gerar algum impacto, mesmo que pequeno”, afirma.
Minas lidera ranking por estados
Apesar do peso da extração de petróleo no total de emergências ambientais, quando se observa a distribuição por unidades da federação, Minas Gerais lidera com 848 registros — mais do que São Paulo e Rio de Janeiro somados, que aparecem na sequência com, respectivamente, 372 e 203 ocorrências. Em Minas, a maioria absoluta dos casos (69,1%) ocorreu em rodovias, reflexo direto do fato de o estado abrigar a maior malha rodoviária do país, considerando estradas federais, estaduais e municipais, cerca de 16%, segundo levantamento do governo mineiro.

Dos casos registrados em rodovias mineiras, 300 estão relacionados a derramamento de líquidos e 150 ao lançamento de sólidos. Considerando o conjunto de emergências ambientais no estado, essas continuam sendo as ocorrências mais recorrentes: foram 393 casos de derramamento e 193 de lançamento de sólidos. Sem costa marítima, a maioria das emergências ambientais em Minas Gerais provocou danos diretos ao solo — apontados em 612 episódios, a 72,1% do total. Em muitos casos, os impactos se estenderam simultaneamente a rios, córregos, atingindo fauna e flora.
Se, em Minas Gerais, o solo foi o elemento mais atingido, em nível nacional são os danos ao mar que predominam. Com 7,3 mil quilômetros de litoral, as emergências em água salgada, algumas vezes atingindo praias, ilhas e outras formações costeiras, corresponderam a 39,4% dos casos registrados no país. Esse percentual foi impulsionado principalmente por falhas em plataformas e acidentes envolvendo embarcações.

Um dos casos mais emblemáticos de impacto causado por acidentes em plataformas de petróleo foi o megavazamento de 1,3 milhão de litros de óleo combustível na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. O episódio ocorreu em 18 de janeiro de 2000, após o rompimento de um duto da Petrobras que ligava a Refinaria Duque de Caxias ao terminal da Ilha d’Água. “A Baía de Guanabara está sendo agredida de forma sistemática há mais de 30 anos. É inadmissível”, critica o coordenador do Programa dos Defensores Climáticos da 350.org Brasil, Luiz Afonso Rosário, que acompanha casos como esse em todo o país. O resultado, lembra, é de impunidade.
O caso ocorrido na Baía de Guanabara é um exemplo frequentemente usado pelos especialistas quando se discute a exploração de petróleo na Margem Equatorial, na foz do Amazonas, que hoje enfrenta resistência técnica e ambiental. Possíveis acidentes com plataformas na região podem ocasionar uma série de problemas ambientais de difícil controle.
Em maio, o Ibama deu parecer favorável ao plano de prevenção a emergências proposto pela Petrobras no trecho 59 da bacia da foz do rio Amazonas. A aprovação, diz o órgão, representa o cumprimento de uma etapa no processo de licenciamento ambiental, mas não configura a concessão de licença para o início da realização da perfuração exploratória.
“Então, essa operação é delicada, é perigosa. E quando isso acontece em regiões tão sensíveis, como a região da bacia do Foz do Amazonas, por exemplo, isso coloca a gente em estado de muito alerta do quão grave seria um possível acidente numa região como essa, uma região delicada, que tem características ambientais e socioeconômicas muito específicas”, reitera Mariana Andrade, do Greenpeace.

Trecho do bloco exploratório 59 da chamada Margem Equatorial, na foz do Rio Amazonas, no Amapá. Foto: Instituto Internacional Arayara
Em fevereiro deste ano, o presidente Lula defendeu a exploração de petróleo para bancar a transição energética. As críticas de especialistas ouvidos pela reportagem são sobre a contradição do próprio governo que, embora defenda pautas climáticas, continua incentivando investimentos em combustíveis fósseis.
“A gente gostaria muito quanto à liderança climática, enquanto um país que tem se dedicado a fortalecer negociações climáticas, fizesse uma escolha corajosa, de entrar num caminho de fato de transição energética que não fosse associado à exploração de combustíveis fósseis, porque muito se diz sobre combustíveis fósseis financiarem a transição energética e isso é absolutamente contraditório, não faz nenhum sentido. E o que a gente gostaria realmente que o Brasil construísse é um modelo de desenvolvimento mais alinhado à transição energética e justiça climática”
– Mariana Andrade, do Greenpeace
Para Luiz Afonso Rosário, da 350.org Brasil, os investimentos do governo brasileiro na exploração de petróleo equivalem a tratar a comunidade científica como “ignorante”. “Há uma ignorância com a comunidade científica que pede, com base em estudos, a diminuição dessa exploração e a busca pelo equilíbrio do ecossistema. É inadmissível”.
Outro lado
Em nota, o Ibama informou que realiza regularmente operações de fiscalização no transporte rodoviário de produtos perigosos em todo território nacional. Também publicou normas que regulam o setor e que tem adotado ferramentas de monitoramento dessa atividade. “Quanto à produção de petróleo, este Instituto vem buscando conhecer e adotar as mais eficientes ferramentas de monitoramento dessa atividade. Destacam-se o uso de imagens de radar para identificação de feições suspeitas, oriundas de satélites, e a realização, desde 2019, de aeromonitoramento das bacias de produção de petróleo, com cerca de 80 horas/voo mensais”, explica
O Ibama informou ainda que o novo Sistema Nacional de Transporte de Produtos Perigosos encontra-se em fase final de elaboração, com previsão de implantação no início de 2026. E que está desenvolvendo ainda o Sistema Multiusuário de Detecção, Previsão e Monitoramento de Derrame de Óleo no Mar (SisMOM). “O sistema visa utilizar tecnologia de ponta e Inteligência Artificial (IA) para monitorar e prever o deslocamento de manchas de óleo nas águas jurisdicionais do Brasil”, diz.
O Ministério de Minas e Energia, em nota, afirmou que a transição energética adotada pelo Brasil é “responsável, baseada em evidências e compatível com particularidades econômicas, vocacionais e sociais do país, promovendo o crescimento sustentável sem comprometer a segurança energética e a arrecadação nacional”. Disse ainda que o setor de petróleo e gás “será essencial para a matriz energética nas próximas décadas, garantindo abastecimento, desenvolvimento regional e geração de empregos”.
A pasta acrescentou ainda que “o Brasil tem adotado uma abordagem gradual, segura e socialmente justa para a transição energética, garantindo que esse processo ocorra sem comprometer empregos e o desenvolvimento econômico das regiões produtoras”. E citou como exemplos, “as estratégias de diversificação e ampliação das reservas, incluindo a exploração de novas fronteiras, a extensão da vida útil de campos produtores e a promoção da indústria nacional”.
Já a Petrobras disse em nota que “comunica às autoridades competentes todo e qualquer incidente em seu processo produtivo. A companhia busca implementar melhorias em suas operações, por meio de aperfeiçoamento dos processos, aplicação de inovações tecnológicas e incorporação de aprendizados”. Destacou ainda que amplia anualmente seus investimentos ambientais e “atua com responsabilidade social e ambiental, além de transparência e respeito a normas e regras vigentes em sua missão de transformar recursos brasileiros em riquezas”. Por fim, ressaltou o investimento de R$ 575 milhões em 2024 em programas ambientais vinculados a condicionantes ambientais, ou seja, a compromissos firmados durante o processo de licenciamento ambiental.
FONTE: Lupa.uol