A emergência climática que enfrentamos exige muito mais que soluções tecnológicas pontuais; demanda uma transformação civilizatória profunda
Barcelona transformou-se, em 2025, no epicentro de uma revolução silenciosa na governança climática global. Durante a terceira edição da conferência MONDIACULT, que teve suas duas primeiras reuniões no México em 1982 e 2022, se consolidou um novo paradigma que posiciona a cultura como elemento central no enfrentamento da crise climática.
O Brasil, em co-presidência com os Emirados Árabes Unidos, assumiu liderança neste processo histórico através do Grupo de Amigos para Ação Climática Baseada na Cultura, sinalizando uma transformação profunda na forma como concebemos as políticas climáticas internacionais.
A Declaração de Barcelona, adotada no evento, representa um marco civilizatório em nossa trajetória coletiva de enfrentamento das mudanças climáticas. Conforme registrado pelo Ministério da Cultura brasileiro, o documento estabelece o reconhecimento da cultura como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável, equiparando-a às dimensões econômica, social e ambiental.
Este avanço conceitual materializa-se no compromisso de integrar sistematicamente a cultura nas políticas, estratégias e ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas em todos os níveis de governança. A declaração explicita que a cultura, em toda sua diversidade, incluindo patrimônio cultural, expressões artísticas, indústrias criativas e saberes tradicionais, oferece recursos indispensáveis para uma transição justa e sustentável.
Particularmente significativo é o reconhecimento explícito de que os conhecimentos dos povos indígenas e comunidades locais, acumulados ao longo de gerações, são valiosos para a compreensão dos ecossistemas e o desenvolvimento de soluções resilientes.
Esta visão contrasta radicalmente com o paradigma ocidental-colonial que historicamente separou humanidade e natureza, gerando a crise climática que hoje enfrentamos. Enquanto esse modelo dominante perpetuou lógicas extrativistas e relações predatórias com o ambiente, os povos originários e comunidades tradicionais desenvolveram, ao longo de séculos, formas de fazer, viver e criar intrinsecamente alinhadas (e dependentes) com o equilíbrio ecológico.
Suas epistemologias não dissociam o bem-estar humano da saúde dos ecossistemas, manifestando-se em sistemas agrícolas complexos que imitam a floresta e sequestram carbono, técnicas de manejo sustentável baseadas em ciclos naturais, medicinas tradicionais que dependem da biodiversidade preservada e cosmovisões que compreendem os recursos naturais como bens comuns sagrados.
Esses sistemas de conhecimento representam sofisticadas tecnologias de adaptação climática que vêm sendo sistematicamente ameaçadas tanto pelo avanço de modelos extrativistas quanto pela própria aceleração das mudanças climáticas.
A Declaração de Barcelona sinaliza uma reconfiguração profunda na arquitetura da governança global do clima, estabelecendo pela primeira vez o reconhecimento político formal da cultura como dimensão central das negociações climáticas.
Este movimento rompe com o tecnocratismo dominante e inaugura um processo de reparação epistêmica onde os saberes tradicionais deixam de ser considerados “alternativos” para se tornarem centrais na construção de soluções.
A declaração estabelece mecanismos concretos de implementação através de compromissos mensuráveis para integração cultural nas Contribuições Nacionalmente Determinadas e nos planos nacionais de adaptação. Significativamente, a co-presidência Brasil-Emirados simboliza o fortalecimento da cooperação Sul-Sul e a liderança dos países do Sul global na redefinição da agenda climática internacional.
À medida que nos preparamos para a COP 30, em Belém, a Declaração de Barcelona estabelece as bases fundamentais para que os conhecimentos dos povos tradicionais da região não sejam apenas “ouvidos”, mas incorporados estruturalmente nos acordos climáticos globais.
A próxima MONDIACULT, agendada para 2029, em Riade, na Arábia Saudita, deverá avaliar os progressos concretos desta integração, pressionando por transformações tangíveis nas políticas nacionais e nos fluxos financeiros climáticos.
A emergência climática que enfrentamos exige muito mais que soluções tecnológicas pontuais; demanda uma transformação civilizatória profunda. As culturas resilientes dos povos tradicionais oferecem não apenas técnicas específicas de adaptação, mas todo um repertório epistêmico e ético para reimaginar a relação entre humanidade e planeta.
A Declaração de Barcelona representa, assim, muito mais que um acordo diplomático: é o reconhecimento institucional de que superar a crise climática exigirá aprender com aqueles que nunca se esqueceram de como viver em equilíbrio com a Terra. O futuro do clima, portanto, dependerá fundamentalmente de nossa capacidade coletiva de ouvir essas vozes ancestrais e transformar sua sabedoria em política global efetiva.
Estamos diante de uma oportunidade histórica para construir uma governança climática verdadeiramente inclusiva e epistemicamente justa, onde os saberes tradicionais possam finalmente ocupar o lugar central que merecem em nossa resposta coletiva ao maior desafio de nosso tempo.
Lucas Kannoa é gerente Jurídico da Arayra e Coordenador do Programa Defensores dos Defensores.
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Fonte: Le Monde










