A Banalidade do Mal
Desde jovem, sempre fui uma aficionada da sétima arte, a tal ponto que, na Porto Alegre onde nasci, chegava a ficar semanas sem assistir a qualquer filme, por já ter visto todos os que estavam em cartaz nos cinemas, que não eram poucos à época.
Em virtude da pandemia de Covid-19 que assola o mundo, venho colocando em dia minhas virtudes de cinéfila, abandonadas há alguns anos, por várias e desimportantes razões. E, dessa forma, assisti a Operação Final, um filme sobre o sequestro do criminoso nazista Adolf Eichmann, em 1960, por agentes israelenses, em um subúrbio da Argentina – país em que se refugiara ao final da Segunda Guerra -, para que fosse julgado, como um dos arquitetos da “solução final”, pelo Estado judeu.
O filme é de 2018 e, como de praxe, empresta um tom romanceado aos fatos ocorridos, o que não lhe retira as qualidades de drama histórico. Ainda que não seja a melhor produção sobre a Segunda Guerra Mundial, tem a importância de fazer recordar figuras e fatos – para que não sejam esquecidos -, e alertar sobre os riscos presentes nos governos totalitários.
Paralelamente, decidi reler Eichmann em Jerusalém, escrito pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt, que, por motivos diametralmente opostos, fugiu daquele país para os Estados Unidos em 1941.
Arendt aceitou assistir ao julgamento de Eichmann na Casa da Justiça de Jerusalém (Beth Hamishpath), em 1961, como correspondente da revista The New Yorker, e o que viu gerou o livro em questão. Suas impressões a respeito do réu, acusado de crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, e dos fatos pelos quais foi julgado responsável, transcritas no livro citado, foram bastante criticadas, provocando diversas e incríveis reações.
Basicamente, a autora viu Eichmann em toda a sua mediocridade: “um arrivista de pouca inteligência, uma nulidade pronta a obedecer a qualquer voz imperativa, um funcionário incapaz de discriminação moral – em suma, um homem sem consistência própria, em quem os clichês e eufemismos burocráticos faziam as vezes de caráter” (trecho extraído da apresentação do livro, publicado pela Companhia das Letras em 1999). Em suma, um homem mediano, buscando obter sucessos pessoais.
Paralelamente, Arendt critica os emissários palestinos que negociaram com Eichmann, no início da guerra, em pé de igualdade e falando abertamente em interesses mútuos – coisa que os judeus nativos não podiam fazer – o destino de seu povo. Embora não tivessem consciência das sinistras implicações futuras, tais emissários acreditavam tratar-se de uma questão de selecionar judeus para a sobrevivência, coisa que, segundo elas, os próprios judeus deveriam fazer. Em suma, esse erro de julgamento levou a maioria não selecionada de judeus a confrontar-se com dois inimigos: as autoridades nazistas e as autoridades judaicas. Ou seja, os próprios judeus tinham cooperado para o extermínio de sua etnia.
Quanto ao réu, o mal que se esperava identificar nele, um mal absoluto, de um conspirador da destruição de um povo, não foi encontrado. Ele era simplesmente um burocrata por excelência, que tinha por objetivo principal vencer na vida a todo o custo.
Sem querer adentrar no julgamento em si, o que não é o objetivo deste artigo, permito-me focar a atenção no que importa mostrar neste momento: a banalidade do mal. Quando Arendt refere-se a ela, procura ater-se aos fatos que conduzem a um fenômeno: a morte dos judeus teria sido um mal menor se eles fossem um povo sem cultura, como os ciganos, que foram igualmente exterminados? Eichmann estava sendo julgado por ser um destruidor de seres humanos ou por ser um destruidor de cultura? Como apontado por Arendt, Harry Mullisch identificara tais questionamentos no depoimento, como testemunha, do professor Salo W. Baron.
Não bastasse, Arendt observa que a situação era tão simples quanto desesperada: a maioria esmagadora do povo alemão acreditava em Hitler, mesmo depois de Stalingrado, da derrota da Itália e dos desembarques na França. Havia, sim, um número indeterminado de indivíduos, totalmente conscientes da catástrofe nacional e moral, mas eles não tinham plano ou intenção de revolta (e nem o grupo conhecido como “conspiradores”).
Foto – On Jornal
Podemos, sem qualquer dificuldade, transpor essas reflexões para o Brasil de hoje. O que faz com que um povo, ou uma dada sociedade, aceite passivamente – e, muitas vezes, até defenda – um governante que, às claras e sem qualquer pudor, zomba de seus 180.000 mortos e quase 7.000.000 de cidadãos infectados pelo Covid-19?
O que faz com que os poderes constituídos permaneçam inertes diante desse verdadeiro genocídio, praticado às claras e sem qualquer sentimento de empatia pelos que perdem seus entes queridos, praticado por quem deveria protegê-los e defendê-los?
Finalmente, em que diferem os artífices da morte de milhões de judeus de quem, podendo evitar, rejeita a única possibilidade de deter a propagação de um vírus letal e do constante aumento do número de mortos no seu próprio país, em nome de uma mesquinha rivalidade política?
Tal como constatou Hannah Arendt, continua exposto para quem quiser ver o “coração das trevas”, para retomar o título de um clássico de Joseph Conrad, cuja relevância reside, também, na descrição do horror vivenciado no antigo Congo Belga. Eis a maior ameaça à democracia atual: a confluência da capacidade destrutiva com a burocratização da vida pública, expressa no conceito de banalidade do mal,presente em todos os sentidos da vida humana e em todos os lugares do mundo, inclusive aqui e agora.
Sandra Cureau é Subprocuradora-Geral da República, faz parte da diretoria da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB, fez mestrado na UERJ e foi Vice-Procuradora-Geral Eleitoral (2009/2013). Leia o original aqui.