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Profissionais de saúde: “ou a gente se cuida, ou adoece”

Profissionais de saúde: “ou a gente se cuida, ou adoece”

Por Marina Amaral, Alice Maciel, Andrea DiP, Thiago Domenici, Julia Dolce, Rute Pina, Joana Suarez, Bárbara D\’Osualdo, Anna Beatriz Anjos, Rafael Oliveira – Agência Pública

“Nós estamos no começo da pandemia, e já estamos tendo contaminação de funcionários e toda essa dificuldade com UTI. E isso com a orientação das pessoas de ficarem em casa. Imagina se não tivesse essa orientação, como seria”, pergunta Waldir *, enfermeiro que trabalha em duas unidades do SUS em São Paulo. “A palavra é descaso”, diz, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro, depois de ouvir o discurso em rede nacional em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia e reclamou das quarentenas decretadas pelos governadores.

Como a maioria dos 20 profissionais de saúde pública de cinco estados (São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Sul) que falaram com a Agência Pública nesta semana, W. pediu anonimato — o medo de processos administrativos e outras retaliações é geral, apesar da diversidade das unidades do SUS. Enfermeiro há 15 anos, ele trabalha em uma Unidade de Pronto Atendimento na zona noroeste, periferia da capital paulista. Na quarta-feira, quando falou à reportagem por telefone, estava há uma semana afastado do trabalho por apresentar sintomas de infecção por coronavírus, como tosse seca e falta de ar. Outras quatro colegas da enfermaria foram afastadas do trabalho. Nenhum dos profissionais conseguiu fazer o teste para coronavírus.

W. tem certeza que ficou doente por causa das condições de trabalho na UPA, com capacidade de atender mais de 60 mil pacientes. “O pior é a falta de proteção”, diz. Segundo ele, o único acessório que não falta são as luvas. “As máscaras estão totalmente racionadas, quando tem. E, de acordo com a orientação do fabricante, o uso deve ser feito por duas horas porque ela perde a eficácia depois desse tempo. Eles querem que a gente use por seis horas. São quatro horas desprotegidos”, aponta. “Essa falta de EPIs está gerando uma exposição desnecessária da nossa saúde e dos nossos familiares.”

Também os pacientes ficam expostos pela falta de equipamentos de proteção para os profissionais. De acordo com o Victor Grabois, presidente da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (Sobrasp), em entrevista ao site da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) enquanto “se espera que, na comunidade em geral, um portador do vírus infecte de 2 a 3 pessoas, no âmbito dos serviços de saúde um profissional de saúde que esteja contaminado pode infectar até 9 pessoas”.

Na unidade de W., os aventais, que segundo o protocolo do Ministério de Saúde, devem ser “impermeáveis e descartáveis” passeiam de uma ala à outra, já que também o isolamento dos pacientes não é eficiente. “Os pacientes ficam na sala de emergência um do lado do outro, os leitos divididos apenas por cortinas. E você cuida de pacientes que estão com Covid-19, e dos que não estão, com o mesmo avental”, afirma, entre a indignação e a frustração.

W. voltará ao trabalho em abril, quando se espera um pico de casos em São Paulo. Enfermeiro há 15 anos por vocação — “eu gosto de cuidar das pessoas e as pessoas precisam de cuidado” — ele quer participar da batalha, mas teme não dar conta se não houver um apoio maior do governo ao SUS. “Eu não sei se vou aguentar voltar nessas condições. Para mim, tem que ter material de trabalho. É frustrante, deprimente e agonizante saber que vai ter tubo para um e não vai ter para outro… É algo que eu não quero nem pensar agora, vai ser muito dano psicológico [para os profissionais da saúde]”, ele diz, que tenta controlar a ansiedade fazendo terapia por Skype. “Ninguém cuida da gente. Ou a gente se cuida, ou adoece”, alerta.

O relato de W. é um retrato do que está acontecendo nesse momento em boa parte do sistema público da Saúde. A maioria dos entrevistados desta reportagem — médicos e enfermeiros de hospitais públicos, que dependem de verbas do SUS, e de unidades que compõem a rede de atendimento primário, UBS, UPA, SAMU, em localidades grandes e pequenas, no Sul, Sudeste e Nordeste do país, relataram como principais problemas a persistente falta de equipamentos de proteção e a dificuldade de isolar pacientes com segurança. Desde o dia 13 de março, o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) recebeu 1.374 denúncias de falta ou escassez de EPI. Um pouco menos do que as denúncias registradas pelo Conselho Federal de Medicina: entre os dias 19 e 24 de março foram mais de 1500, principalmente por falta de equipamentos de proteção individual. O estado de São Paulo, o mais afetado pela pandemia, lidera o ranking nacional, com 449 reclamações, seguido por Minas Gerais, com 187; Rio Grande do Sul com 175 e Rio de Janeiro, com 148 denúncias.

Há exceções: médicos de hospitais bem aparelhados, como o Hospital de Transplantes de São Paulo, o hospital Mário Covas, com UTIs de referência, ou como o Hospital Municipal M’Boi Mirim, administrado pelo Einstein, disseram ter recebido os equipamentos completos e as orientações de como usar.

Também no maior hospital de Recife, em Pernambuco, médicos e funcionários da enfermagem receberam os EPIs nesta semana. Mas ali foi na marra; a presidente do Sindicato dos Enfermeiros no Estado (Seepe), Ludmila Outtes, em Recife, chegou a ser ameaçada depois que os enfermeiros anunciaram uma greve — considerada ilegal pelo governo estadual —, por causa da alarmante escassez de material de proteção. No dia 19, véspera da data marcada para a paralisação, equipes da Secretaria da Fazenda, Procon e Polícia Militar entraram em uma loja de produtos hospitalares em Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, e recolheram máscaras para abastecimento da rede pública.

Mas apesar dos EPIs obtidos por médicos e enfermagem no Hospital da Restauração, em Recife, as assistentes sociais, psicólogas, fisioterapeutas, que lidam diariamente com o público, além de maqueiros e serventes, só receberam luvas; dependem da solidariedade das enfermeiras para conseguir as máscaras. “Elas sabem o risco que estamos correndo nesse hospital, que recebe pacientes do Estado inteiro, em ambientes que contrariam totalmente o protocolo do MS, e não tem janelas, e o ventilador fica o dia todo espalhando tudo”, contou uma dessas profissionais. Ela também chama a atenção para a presença de idosos, como ela, no atendimento direto aos pacientes, muitas vezes sem equipamento de proteção. “Se a Vigilância Sanitária chegar no hospital, vai ver muitos idosos trabalhando no atendimento ao público, e trabalhando sem as EPIs necessárias”, diz.

Outra entrevistada, funcionária do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que realiza o atendimento pré-hospitalar e o transporte de pacientes para unidades hospitalares, disse que os profissionais de sua unidade, mesmo com sintomas respiratórios, estão sendo “orientados a ir ao hospital e não a ficar em casa, como as autoridades informam”. Questionada sobre as orientações transmitidas às unidades, em especial ao SUS, em referência a profissionais de saúde com sintomas, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo respondeu após a publicação da reportagem que as orientações aos profissionais de saúde têm sido comunicadas por meio de webconferências, documentos técnicos e nos serviços de saúde. A resposta completa está aqui.

“Pessoalmente, estou extremamente abalada, com medo de contaminar nossa família ou qualquer outra pessoa. Não tenho conseguido dormir e meus colegas fazem o mesmo relato”, desabafou.
Como disse um médico, referindo-se à desigualdade na distribuição dos recursos do SUS: “Tudo depende de onde você está” — em qual unidade, cidade e região.

Testes é reivindicação unânime, apesar das diferenças

A falta de testes para o coronavírus, porém, é uma preocupação de todos os profissionais ouvidos. Com exceção de médicos do Hospital de Transplantes de São Paulo, nenhum outro profissional relatou a realização de testes para os trabalhadores do setor. Ontem, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo enviou um ofício ao Ministério da Saúde pedindo que todos os médicos e profissionais da área que estejam em contato com pacientes sejam testados, caso apresentem sintomas da doença, leves ou graves. A medida, segundo o Conselho, é “fundamental para a contenção da doença e uma forma de evitar uma possível falta de médicos”.

“O ideal seria testar todo mundo como a Coréia fez. Nós não podemos fazer isso, somos 210 milhões de habitantes, mas os profissionais de saúde sem dúvida nenhuma devem ser testados”, diz a médica pneumologista, pesquisadora e docente da Fundação Oswaldo Cruz, Margareth Dalcolmo.

Sem os testes, que poderiam descartar a presença de vírus nos profissionais, também há casos de funcionários com sintomas que são afastados por um período maior do que seria necessário se fosse descartada a presença do vírus.

Uma realidade que já atinge profissionais da saúde da família e em outras unidades de saúde básica. “Recebemos apenas dois kits para exames de sintomáticos com jalecos descartáveis que já foram usados e não houve reposição”, afirmou uma profissional de Unidade da Família (USF) em Jordão, na zona sul de Recife. Com a falta de segurança, trabalhadores com mais de 60 anos ou doenças crônicas procuraram seus médicos e solicitaram afastamento. Restou apenas uma técnica de enfermagem para três equipes de saúde, pois não houve substituição de profissionais. A unidade tem recebido cerca de cinco casos de sintomas característicos da Covid-19 por dia.

No interior de São Paulo, a médica Nádia Miatta, que atua na coordenação da rede básica de saúde da região de Fernandópolis, disse à Pública que dois médicos (de um total de 20) e 20 profissionais da enfermagem (de 60) já foram afastados, o que aumenta o nervosismo das equipes, que se sentem despreparadas para lidar com a situação. “Tem muito médico entrando em pânico aqui, que não tem preparo psicológico, não tem preparo técnico para lidar com respirador, paciente grave em UTI”.

Na outra ponta do sistema, a sobrecarga dos médicos residentes nos grandes hospitais públicos — que já costumam acumular funções, também preocupa. “Muita gente ficou sintomática, foi afastada mas ainda não teve a confirmação e nem houve nenhuma comunicação oficial sobre os casos”, contou Mário*, residente da Santa Casa de São Paulo, que conversou com a Pública por telefone de casa, onde está desde que foi afastado por suspeita de coronavírus. Naquele mesmo dia (25), todos os residentes, independentemente da especialidade em que atuam, foram convocados a trabalhar em rodízio na tenda de triagem, montada na frente do hospital para atender os casos com sintomas respiratórios. Segundo ele, foi o colega, que tinha feito o exame em um hospital particular, quem o comunicou do resultado positivo para o vírus. Naquele momento ele já apresentava os sintomas que o levaram ao afastamento.

Procurada pela reportagem para comentar a questão dos profissionais afastados e das notificações, a Santa Casa de São Paulo informou “que os números relacionados ao Covid-19 são diariamente transmitidos aos órgãos oficiais”. E reafirmou seu “compromisso com a saúde da população acreditando que com ações em conjunto conseguiremos enfrentar esse momento difícil com sucesso”.

Não há estatísticas específicas divulgadas pelo Ministério da Saúde sobre casos de coronavírus entre profissionais de saúde, embora essa categoria tenha sido classificada como de “risco muito alto de exposição”, pelo Ministério Público do Trabalho. Na sexta-feira passada, duas profissionais de saúde — uma médica e uma técnica de enfermagem — morreram em São Paulo por suspeita de coronavírus. Nenhuma das duas estava entre os casos suspeitos de coronavírus registrados nas estatísticas oficiais. A Secretaria de Saúde de São Paulo diz não ter a contabilidade dos casos separadamente para os profissionais de saúde. Já no Rio Grande do Sul, médicos afirmam que a orientação é notificar e afastar os casos de trabalhadores da saúde com sintomas gripais e febre, que deverão passar por testes, raramente realizados. Em Gravataí, no interior, os médicos chegaram a chamar a Vigilância Sanitária para exigir o teste de uma trabalhadora de saúde, que deu positivo. No Rio de Janeiro, os próprios profissionais passaram a contar os casos, como revelou hoje o UOL. O Sindicato dos Enfermeiros do RJ contabilizou 80 profissionais em quarentena.

Quanto aos testes, apesar das reivindicações da Cremesp e das promessas do Ministério da Saúde de distribuir 22 milhões de testes, especialmente para os profissionais de saúde e segurança, o site do MS informava até ontem que apenas 32.576 testes haviam sido distribuídos. Podem ter sido menos, podem ter sido mais. Como mostrou a reportagem “A caixa-preta do coronavírus no Brasil”, transparência não é o forte do Ministério da Saúde, o que contribui para a insegurança dos profissionais de saúde e da população em geral.

Até falta de água e sabão para lavar as mãos

Profissionais que atuam há muito tempo no SUS lembram que já enfrentavam uma situação difícil antes da epidemia, principalmente depois de 2016, quando o governo Temer editou a Emenda Constitucional 95 — conhecida como emenda “do fim do mundo”, que congelou por 20 anos os gastos com a saúde. Segundo um estudo da Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), publicado pelo site Marco Zero, de Recife, o SUS já perdeu R$ 20 bilhões de 2016 para cá. Além do déficit, o “investimento per capita anual é muito baixo e desigual nos territórios: há municípios em que o gasto por pessoa é de R$ 5 mil; em outros, R$ 280”, disse Islândia Carvalho, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco em entrevista ao site.

Em Maceió, uma médica de um hospital referência para o tratamento de Covid-19 relatou à Pública que “a emergência conta com uma sala apenas de isolamento, sem banheiro, sem carrinho de parada, e sem ventilador mecânico”, o que a preocupa ainda mais pelo fato do hospital atender muitos pacientes com HIV, que já possuem a imunidade comprometida. “As enfermarias também não tem ventilador mecânico e, por muitas vezes, faltam medicações básicas como dipirona”, ela diz.

Goretti*, que há mais de 40 anos trabalha no Hospital da Restauração, em Recife, tem longa prática em trabalhar em condições precárias. Atuando na maior emergência do estado de Pernambuco, estado que já contabiliza três mortos e 48 casos confirmados pelas contas do Ministério da Saúde, ela conta que faltava sabão — e até água — nos banheiros públicos do hospital, o que foi confirmado à Pública por mais quatro colegas. “Os profissionais estão angustiados, higienizando as salas por sua própria conta, levando álcool em gel e até sabão de casa”, diz.

“A gente deixou de fazer o atendimento nos leitos, mas as salas são muito pequenas, sem janelas, e não há como manter os 2 metros de distância dos pacientes”, diz uma psicóloga. Ela também relata, que além do risco inerente ao trabalho, especialmente pela falta de EPIs, a chefia pediu aos profissionais que distribuíssem panfletos aos pacientes e acompanhantes sobre o Covid-19. “Não tem como panfletar sem se aproximar das pessoas”, lamenta.

Nas cidades vizinhas à capital pernambucana, além da falta de equipamentos, muitos trabalhadores do interior têm vínculos precários, não são concursados, e estão se submetendo a qualquer condição ruim para não perder seus empregos. Conversamos com trabalhadores da saúde de Caruaru, Goiânia, Moreno, São Lourenço que disseram que estão comprando por conta própria materiais, capacete de proteção e até roupas de soldador, de construção civil, por meio da internet. “Estamos confeccionando nossos escudos faciais com folha de acetato e diadema (arco de cabeça). Quem está na ponta está morrendo de medo de adoecer”, desabafou uma profissional de unidade básica de saúde.

Procurada, a Secretarias de Saúde de Pernambuco não retornou até a publicação desta matéria.

Sorteio de máscaras

Em Minas Gerais, nem mesmo os profissionais que trabalham no hospital Eduardo de Menezes, referência para o tratamento de casos suspeitos de coronavírus de Belo Horizonte, estão se sentindo minimamente seguros. “Nós estamos passando um medo muito grande dentro do hospital nessa situação de coronavírus”, desabafou a técnica de enfermagem, Gabriela*, que trabalha no CTI.

Segundo ela, os técnicos de enfermagem estão usando o mesmo capote para atender duas pessoas. “A contaminação aumenta mais ainda porque se a gente usa um capote para dar banho no paciente ao lado, se um for positivo, o outro vai acabar virando um paciente positivo. O que vai aumentar o número de coronavírus aqui no nosso Estado, por falta de EPI (equipamento de proteção individual)”, denunciou.

Em apenas cinco dias, — 20 a 24 de março —, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MG) recebeu quase trezentas denúncias de falta de equipamentos por telefone e email. O Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais informou hoje que recebeu “quase 100 denúncias de diversas cidades mineiras sobre as condições de trabalho, que estão sendo cadastradas e triadas”. Segundo o MPT-MG as denúncia vêm de trabalhadores da rede pública e privada “e são provenientes tanto de grandes cidades como Belo Horizonte, Betim, Contagem e Uberlândia, como de pequenas cidades”. “Esses dados serão usados para subsidiar as próximas atuações do MPT-MG”, conclui a resposta à Pública.

Dentre os relatos ao Coren, enfermeiras contam que estão tendo de sortear máscaras cirúrgicas, ou que as máscaras estão sendo fornecidas apenas para os médicos, além dos casos de ausência total de material. Até o álcool está sendo racionado. Tem quem está tirando dinheiro do próprio bolso para comprar os equipamentos. Diante deste cenário, há enfermeiras que estão se isolando da família para preservar os filhos e companheiros, ou pedindo demissão.

Bruna*, enfermeira de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Uberaba, no Triângulo mineiro, deixou o emprego na quarta-feira passada para preservar seus filhos de uma possível contaminação. “Lá onde eu trabalhava fornecem apenas uma máscara que vale por duas horas, para um plantão de 12 horas. O capote não é adequado, é um tecido muito fino. A gente não teve nenhum treinamento até hoje de manejo com esses pacientes. Nem o fluxo que está tendo em alguns lugares, que é o certo a se fazer, que é uma entrada específica para esses pacientes, o distanciamento, nós não tivemos”, contou.

Segundo Bruna, as pessoas que chegam na UPA com suspeita de coronavírus ficam em locais que não são isolados porque “só tem dois isolamentos com banheiro”. “A gente está trabalhando sem nenhuma condição, está muito tenso. Os médicos também estão muito nervosos, a maioria está alugando hotel para ficar isolado da família. Alguns enfermeiros também que tem essa possibilidade ou deixa com algum parente, ou está alugando hotel para ficar isolado”.

A enfermeira lamenta ter sido levada a se demitir: “Foi muito contra a minha vontade. Eu gosto de ser enfermeira, é um ideal meu. Se eu tivesse condições adequadas e treinamento, com certeza eu ficaria trabalhando. A gente se sente mal com isso porque não é o que eu gostaria. Eu gostaria de ter condições de treinamento, segurança para continuar trabalhando”.

Procurada, a Secretaria de Saúde de Minas Gerais não retornou até a publicação da matéria.

A Rede Fhemig, responsável pelo hospital Eduardo de Meneses, disse que todas as redes estão abastecidas com equipamentos de proteção individual e seguem as orientações das suas diretorias, amparadas pelo contingenciamento necessário estabelecido nos protocolos clínicos e nas portarias das instâncias estaduais e federais sobre a epidemia do COVID-19. Os EPI’s estão sendo fornecidos, especialmente as máscaras, de forma responsável aos profissionais cujo seu uso no atendimento é indispensável. Sabemos que esses itens se encontram em falta no mercado e é necessário que haja um contingenciamento para evitar extravios e o uso indiscriminado, o que acarretará, realmente, em riscos para servidores e pacientes.

Todos os critérios e materiais referentes aos equipamentos de proteção individual, assim como outras orientações aos profissionais de saúde, estão descritos na Norma Técnica nº 04/2020 – Orientações para Serviços de Saúde: Medidas de Prevenção e Controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2).

“O risco é ficar paralisado, não acordar no dia seguinte para trabalhar”

Na UBS Francisco Dias, em Osasco, região metropolitana de São Paulo, a médica Nathalia Neiva dos Santos está há uma semana na linha de frente porque sua unidade – que já atende muitos idosos – passou a ser referência para atendimentos de pacientes com sintomas respiratórios. Além de muitos pacientes com sintomas de gripe, ela diz que atendeu muita gente buscando orientação, sem saber como agir nesse momento, e casos de ansiedade, com a somatização de sintomas em pacientes idosos e ansiosos. “Os casos de ansiedade e síndrome do pânico estão começando, então a previsão é um aumento de casos de saúde mental”, diz. Inclusive entre a equipe médica.

“Enquanto trabalhadores, estamos com medo, lidamos com técnicos de enfermagem e agentes de saúde com medo, e temos que trabalhar para lidar com o stress e a fadiga dos trabalhadores. O risco é ficarmos paralisados e não conseguirmos acordar no dia seguinte para trabalhar. Então começamos, há dois dias, a fazer um momento de alongamento e relaxamento aqui na unidade, entre os profissionais, para nos dar mais condições de nos manter nesses dias”, conta.

A situação de tensão diante dos casos da pandemia, que se avolumam entre nós, a fez lembrar de outra crise, “com algumas semelhanças.” Em 2018, Nathalia trabalhou em Barra Longa (MG), em 2018, uma das cidades atingidas pela lama da Samarco na região de Mariana. O pior momento, lembra, foi quando as pessoas começaram a fazer exames que identificaram a contaminação por metal pesado. “Como não sabiam a fonte da contaminação, se era a água, os alimentos, o solo, as pessoas começaram a entrar em um pânico geral, por não conseguir identificar a fonte transmissora”, lembra. “Eu tinha a sensação de impotência. Enquanto profissional de saúde a gente quer dar conta do problema colocado, mas a solução não vem de mim, vem de um esforço de pessoas, e do próprio Estado na construção de políticas públicas. Então nos sentimos muito pequenos diante do problema”, diz.

Nathália também ficou revoltada com o discurso de Bolsonaro de quarta-feira, principalmente pelas informações equivocadas sobre a importância do isolamento social. “O que Bolsonaro faz agora é gerar confusão nas pessoas. A gente faz uma orientação em trabalho de formiguinha, em um esforço diário por meio de um protocolo internacional, e o presidente, usa de uma rede de transmissão para disseminar uma informação que entra em conflito com a nossa, em relação ao isolamento. Então é como enfrentar uma grande maré e perder a força. Estamos na frente das pessoas, expostas a uma contaminação, enquanto ele está no Palácio da Alvorada, na casa dele. Me sinto frustrada e injustiçada como grande parte dos trabalhadores de saúde”, diz.

Números do front

Não é fácil saber quantos profissionais de saúde estão na linha de frente do combate à epidemia nos 200 mil estabelecimentos que compõem o Sistema Único de Saúde, que reúne a rede pública e a rede privada filantrópica/conveniada. Em artigo recente no jornal O Globo, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz, Maria Helena Machado, falou em “mais 3,5 milhões de funcionários de saúde que nele atuam”, qualificando-os de “patrimônio nacional” no âmbito da Saúde.

Nem todos, porém, atuam no front do atendimento direto ao paciente. Se restringirmos a busca no Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil para as categorias que enfrentam a maior exposição – médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, chegamos a 1,147 milhão de profissionais que atendem no SUS (dados de fevereiro de 2020). Destes 303 mil são médicos, a maioria clínico geral, e 31 mil residentes. Trabalham na enfermagem do SUS 843 mil profissionais – sendo 232 mil enfermeiros, 441 mil técnicos e quase 169 mil auxiliares. O estado de São Paulo, sozinho, concentra aproximadamente um quarto dos médicos (81 mil) e mais de 20% dos enfermeiros (50 mil).

A remuneração destes profissionais acompanha a desigualdade do SUS. Segundo o Cremesp, a rede privada concentra 3 vezes mais médicos do que a pública, o que contribui para a variação de salários dentro da mesma categoria. Em São Paulo, 62,4% dos médicos tem remuneração de até 16 mil reais, enquanto 20,4% recebem de 16 a 24 mil, e 13% mais do que 24 mil mensais.

Os dados são mais escassos em relação à enfermagem, que compõe o grosso da linha de frente. Os mais completos, embora desatualizados, são da Pesquisa Nacional da Enfermagem do Brasil, feita em parceria entre Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) e Fiocruz e divulgada em 2015. Dos técnicos e auxiliares de enfermagem, 84,7% eram mulheres, maioria esmagadora também entre os enfermeiros, onde elas representavam 86% da categoria. Os brancos são maioria entre os enfermeiros, com 57,9% se declarando dessa cor/raça; já entre os técnicos e auxiliares o percentual maior se inverte: pretos e pardos somam 56%. Para efeito comparativo, já que os dados são de 2013, mais de 50% dos auxiliares e técnicos ganhava entre 681 e 2000 reais enquanto 58% dos enfermeiros recebiam entre 2 mil e 5 mil reais. Um dado importante que a pesquisa traz é o número de ocupações que cada profissional exerce: 28% dos enfermeiros e 24% de técnicos e auxiliares trabalhavam em duas atividades, e cerca de 3% em três.

*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das fontes.

Sem teste para coronavírus, mortes em São Paulo são registradas como “causa indeterminada”

Sem teste para coronavírus, mortes em São Paulo são registradas como “causa indeterminada”

Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca – Agência Pública

Há uma semana sem realizar autópsias, o Serviço de Verificação de Óbitos da cidade de São Paulo (SVOC) segue recebendo corpos de mortes por causas naturais, confirmou à Agência Pública um funcionário do órgão. De acordo com ele, o serviço tem recebido corpos de pessoas que faleceram em suas residências, mas também em algumas Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Nesses casos, ele relata que é assinado o óbito sem realização de mais testes que possam comprovar ou descartar morte pelo novo coronavírus.

“Não vai ter laudo. Os casos que estão vindo de [mortes na] residência, o médico já está assinando o óbito. Não está fazendo autópsia”, afirmou à reportagem. Ele não soube precisar quantos corpos passaram pelo serviço nesta semana.

Segundo o funcionário, toda a equipe da secretaria de laudos e administração está sem trabalhar. A situação é reflexo da decisão do Governo Estadual do último dia 20 de março. Na data, uma portaria definiu que corpos envolvendo mortes suspeitas por Covid-19 ficam sob responsabilidade do serviços de verificação. Contudo, para proteção dos profissionais, eles podem evitar exames invasivos e registrar as mortes como “causa indeterminada neste momento”.

“Se o exame interno do cadáver não for necessário, a necropsia pode ser feita de forma indireta e com uso de outros elementos baseando-se em: exames externos, radiografia, tomografia computadorizada, descrição da cena, entre outros, para devida emissão da Declaração de Óbito, e do laudo necroscópico, devendo nessa situação no campo ‘a’ do item 49, Causas da Morte, Declaração de Óbito, o termo ‘causas indeterminadas neste momento’”, determina o texto.

No dia 17 de março, a Folha de S. Paulo anunciou que seriam empregadas técnicas de autópsia de modo minimamente invasivo para confirmação de mortes por coronavírus no Hospital das Clínicas em São Paulo. Segundo o funcionário ouvido pela Pública, a coleta de material chegou a ser feita no início da crise, porém não está sendo realizada no momento.

“Estávamos fazendo no início [autópsia] de suspeitas de Covid, colhendo material para mandar para o [instituto] Adolfo Lutz. O resultado final [dessas autópsias] a gente nem ficou sabendo”, acrescentou o funcionário. Segundo ele, atualmente, os corpos “ficam o menor tempo possível por aqui”, disse.

O médico Paulo Saldiva, professor de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), considera acertada a decisão do governo de São Paulo. “Essas medidas protegem a equipe. Para você fazer uma autópsia de Covid-19, precisa ter uma sala de proteção nível 3, no mínimo, contra infecção. Não tem como fazer essas autópsias e garantir [a segurança de] todo o ciclo, desde o transporte do cadáver até a entrega à família, porque o corpo é aberto, fluidos orgânicos ficam mais acessíveis às superfícies externas. Esse é um risco tanto para quem faz a autópsia, como para a família”, afirma. Saldiva é o coordenador do projeto que desenvolveu, nos últimos seis anos, as técnicas de autópsia minimamente invasivas que estão sendo utilizadas no HC.

Pública questionou a Secretaria Municipal de Saúde, responsável pelo serviço de óbitos da capital, sobre uma possível subnotificação de casos de mortes por coronavírus, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

A reportagem confirmou com a Secretaria Estadual de Saúde que a determinação é não realizar autópsias em pessoas falecidas por causas naturais para proteção dos trabalhadores, já que, segundo o governo, não há condições de realizá-las em massa sem risco de infecção. O órgão informou que apenas futuramente será possível informar quantas mortes ocorreram nessa situação ou estimar possíveis relações com o coronavírus.

A secretaria reforçou que resolução do governo estadual cita que “as determinações internacionais desaconselham a realização da necropsia em casos de suspeita de Covid-19” e acrescenta que “exames necroscópicos não têm sido realizados em casos de rotina nos países mais afetados pela Covid-19, como se verifica na China, Itália e Espanha”, descreve.

O Serviço de Verificação de Óbitos recebe apenas corpos de mortes por causas naturais para as quais não foi definida a doença ou situação que levou à morte. Não chegam no órgão mortes violentas, por exemplo, envolvendo acidentes ou assassinato — essas são direcionadas a unidades do Instituto Médico Legal (IML).

Fonte: Agência Pública

Isolamento vertical se mostrou ineficaz e arriscado em outros países, diz médica da Fiocruz

Isolamento vertical se mostrou ineficaz e arriscado em outros países, diz médica da Fiocruz

Por Giulia Afiune, Agência Pública

Em entrevista exclusiva para a Agência Pública, a médica pneumologista, pesquisadora e docente da Fundação Oswaldo Cruz Margareth Dalcolmo afirma que se fizermos um esforço coletivo para um isolamento mais intenso agora, enquanto o número de casos de Covid-19 está crescendo, é possível que possamos começar a sair do isolamento, gradualmente, dentro de 2 ou 3 semanas.

“Neste momento, que é o momento muito agudo dessa epidemia, não há nenhuma outra maneira de impedir a transmissão. Não há nenhuma outra arma”, explica, reiterando que ainda não há nem remédios nem vacinas de eficácia comprovada contra o novo coronavírus. Ela alerta que quebrar o isolamento agora, como propõe o presidente Jair Bolsonaro, pode levar a um colapso do sistema de saúde e provocar mortes que seriam evitadas.

Margareth explicou ainda que manter em casa apenas idosos, o “isolamento vertical” que sugeriu Bolsonaro, foi considerada uma medida ineficaz e perigosa para combater o coronavírus em outros países. “O maior exemplo é a Inglaterra que voltou atrás, verificando que [o isolamento vertical] não ia resolver. Eles voltaram atrás pelo risco que isso incorreria diante de uma doença nova de alta transmissibilidade, cujos riscos não estão completamente determinados. Agora, dada a progressão da epidemia, a Inglaterra está propondo o isolamento mais radical.”

Durante a entrevista, Margareth explicou que já existe um coronavírus “brasileiro”, fruto de mutações do vírus importado. “Como a doença chegou ao Brasil pela classe média, ela é uma doença importada, e a transmissão sustentada ou comunitária começou com um espaço de tempo um pouco maior. Agora vai depender da velocidade com a qual ela vai se espalhar nas comunidades de grande aglomeração. Essa é a variável da qual dependemos agora”.

A entrevista foi realizada com apoio dos Aliados da Agência Pública, que também enviaram perguntas. (Conheça o programa)

Durante algumas semanas, o Ministério da Saúde deu recomendações a favor do distanciamento social e isolamento domiciliar. Agora, teve uma mudança de tom. O presidente está dizendo que “o Brasil não pode parar” e planejando a flexibilização da quarentena a partir do dia 7 de abril. Quais são os riscos do “isolamento vertical” proposto pelo Bolsonaro?

São coisas diferentes. O que o nosso presidente propôs foi uma quebra no isolamento social.

O risco que isso traz é que a doença que já chegou a essas áreas mais vulneráveis e pobres vai se disseminar com uma velocidade fora de controle. Ela vai lotar os serviços de saúde. O SUS, que é quem tem que dar resposta para 80% da população brasileira nessa grande epidemia atual, não tem condições de arcar e nós vamos ver um colapso generalizado, aumentando mais ainda a mortalidade que poderia ser evitada.

Nós estamos falando de um patógeno que é altamente transmissível e transmite com uma velocidade e uma intensidade maior do que a gripe comum. É considerado que uma pessoa pode transmitir para três ou quatro.

Realisticamente, vacina é uma coisa para se pensar para, no mínimo, daqui a dois anos. E da mesma maneira, não temos tratamento. Então assim, a única coisa a fazer, a meu juízo, é manter o isolamento social. Neste momento, que é o momento muito agudo dessa epidemia, não há nenhuma outra maneira de impedir a transmissão.

Então é preciso que nós separemos e isolemos as pessoas para interceptarmos essa cadeia de transmissão. Não há nenhuma outra arma.

Quebrar o isolamento domiciliar agora significa que haverá mortes que poderiam ser evitadas e não serão?

Sim. Mas isso não vai acontecer porque [a voz do presidente] foi uma voz que me pareceu muito isolada. Não é aquilo que foi secundado nem pelo Ministério da Saúde. Nosso Ministro ouviu a comunidade acadêmica, está trabalhando muito próximo de nós, e o Ministério da Saúde, formalmente, continua recomendando isolamento social.

E o que é o isolamento vertical?

Ele [Bolsonaro] está propondo que deixem apenas as pessoas idosas isoladas. Nós não concordamos com isso como medida de saúde pública porque outros países que pensaram em fazê-lo já voltaram atrás – é o que está ocorrendo agora no estado de Nova York.

Estou falando do ponto de vista técnico. Tecnicamente, nós vamos seguir a experiência dos países que nos antecederam e que, inclusive, pensaram em fazer isolamento vertical. E o maior exemplo disso é a Inglaterra que voltou atrás, verificando que [o isolamento vertical] não ia resolver. Eles voltaram atrás pelo risco que isso incorreria diante de uma doença nova de alta transmissibilidade, cujos riscos não estão completamente determinados. Agora, dada a progressão da epidemia, a Inglaterra está propondo o isolamento mais radical.

A economia terá que ter soluções alternativas, obviamente, como todo mundo está buscando, para resolver o problema durante esse período.

O isolamento vertical é muito eficaz quando se trata de uma epidemia menor. Mas numa doença com uma transmissibilidade tão alta quanto essa, é impossível. Os próprios epidemiologistas, grandes pensadores, já reviram essa posição agora. Todo conhecimento diante de uma situação tão nova é muito dinâmico. Tudo é revisto quase que permanentemente.

E o que é a “imunidade por rebanho” que a Inglaterra estava buscando?

A “imunidade por rebanho” significa que nós todos seremos infectados num determinado momento. Nós desenvolveremos anticorpos, teremos contato e não necessariamente desenvolveremos doença.

A imunidade de rebanho acontecerá, é esperado em qualquer doença nova transmissível, só que leva muito tempo. Você faz imunidade por rebanho quando você tem uma vacina, por exemplo. Se está todo mundo vacinado, existe a imunidade de rebanho, sim. Agora, numa doença nova com esse grau de transmissibilidade, nós não podemos ainda falar nisso.

Não está provado que o isolamento vertical gere esse resultado [imunidade por rebanho]. São coisas diferentes e independentes.

O Ministro da Saúde chegou a falar de algumas medidas mais graduais, menos radicais. Você concorda com isso?

Não, eu não concordo. Eu acho que haverá o bom senso dentro das famílias, instituições públicas, instituições privadas que concentram grande número de pessoas. No caso desses serviços considerados essenciais que precisam permanecer funcionando, tem que ter alternativas. Liberação parcial, alternativa de grupos de trabalho, essas são as medidas que eu vejo como sensatas. O resto é o isolamento social, sim.

A pergunta que mais recebemos dos nossos leitores foi: quando isso vai acabar? Vamos por partes: Em que estágio da curva epidemiológica nós estamos hoje?

Nós ainda estamos no estágio de crescimento. A epidemia cresce no Brasil, ela não alcançou o pico da curva epidêmica até o momento. Ela está crescendo, ela está se disseminando e é por isso que o mínimo de tempo previsto para um isolamento social mais radical é de pelo menos mais duas a três semanas, realisticamente falando. Os epidemiologistas calcularam que o pico da curva epidêmica se dê no Brasil até o meio do mês de abril. E, a partir daí, nós imaginamos que com essas medidas possamos começar a suavizar um pouco esse ponto agudo da curva epidêmica.

O Ministro da Saúde falou que o número de casos vai subir em abril, maio e junho, começar a desacelerar em julho e agosto, e cair mesmo em setembro. É por aí ou na Fiocruz vocês trabalham com um cenário diferente?

Depende de várias variáveis, da velocidade de propagação, do número de mortes que vai haver, da paralisação de serviços. Um prognóstico preciso depende de muitas variáveis.

O que significa controlar uma epidemia? É impedir que a propagação em larga escala continue. Eu acho que talvez em dois meses nós consigamos fazer isso e aí a doença passa a ter uma certa endemicidade. Não é mais uma epidemia, já há muita gente infectada desenvolvendo anticorpos, sem desenvolver doença. Esse é o esperado que ocorra.

Eu diria que o Ministro foi até bastante pessimista de imaginar que nós ainda teremos todos esses meses pela frente. Mas a própria China hoje já está monitorando e imaginando que possa haver uma segunda onda. A China não relaxou as normas de isolamento social até o momento. Ela está gradual e muito cuidadosamente fazendo isso porque se sabe, epidemiologicamente, que pode haver uma segunda onda.

Controlar a epidemia não quer dizer que o problema está resolvido. Continua a ter muitos casos, mas o número de mortes começa a diminuir e o impacto social e humano começa a diminuir também.

Já é possível avaliar se o isolamento que muitas pessoas adotaram na última semana teve efeito?

Não, a gente não tem essa informação. A gente não tem essa informação porque o número de casos oficial ainda está muito distante da realidade. Esse processo, esse timing entre o caso existir e ser notificado, ser confirmado, leva muitos dias.

Nós imaginávamos os dois mil casos [atuais], isso deve significar mais ou menos 10% da realidade. Sem dúvida, já deve ter ultrapassado dez vezes esse número no Brasil.

Então vai demorar um pouco até a gente conseguir saber se estamos realmente “achatando a curva”? Há uma previsão?

Certamente essa semana que nós já fizemos de isolamento já diminuiu a velocidade de transmissão. Isso é um fato, não há dúvidas disso. Nós esperávamos ter mais casos do que tivemos.

Como a doença chegou ao Brasil pela classe média, ela é uma doença importada, e a transmissão sustentada ou comunitária começou com um espaço de tempo um pouco maior. Agora, vai depender da velocidade com a qual ela vai se espalhar nas comunidades de grande aglomeração. Essa é a variável da qual dependemos agora.

Se mantermos a lentificação do processo de transmissão, nós conseguiremos que os serviços de saúde estejam preparados para receber os 20% de casos graves que vão exigir internação hospitalar. Caso contrário, nós vamos entrar em colapso como hoje já se verifica numa cidade rica, desenvolvida, com uma infraestrutura espetacular como Nova York. Nova York teve um colapso de serviço de saúde, um número de mortos enorme, um número de infectados enorme e os serviços de saúde não têm sequer o número de respiradores necessários para tantos casos graves.

Em termos de dados e projeções de ações do governo, faz sentido comparar o cenário do Brasil com algum outro país?

Não. Nós temos particularidades próprias. Nós não temos testagem massiva. O mundo ideal seria se nós tivéssemos 200 milhões de testes para testar a população toda. Mas isso não existe, isso não vai ter. Nossa situação não pode ser considerada semelhante à da Coreia, por exemplo, que testou todo mundo. Nós somos uma população muito maior, muito heterogênea, densidades demográficas muito diferentes. O Sudeste é muito diferente do Norte, e por aí vai.

Certo, mas existem lições que a gente pode aprender com esses países. O que a gente pode aprender com eles?

Nós aprendemos com todos os países que nos antecederam nessa epidemia. Nós aprendemos, sobretudo, com a Itália e a Espanha que demoraram a reconhecer o problema e onde a situação é essa tragédia humana que nós estamos verificando. A situação da Espanha também é muito dramática hoje.

O Brasil está tentando, a meu juízo, tomar medidas que não repitam esses modelos trágicos. É por essa razão que nós nos antecipamos no sentido de propor o isolamento social, de mobilizar a iniciativa privada no sentido de criar uma cultura nova.

Quando você verifica 4 bancos se unindo para comprar 5 ou 10 milhões de testes novos para doar ao Ministério da Saúde, é uma iniciativa extraordinária para nós, mas muito normal em qualquer lugar onde a solidariedade humana é claramente exigida como agora.

Há fábricas que não estão com sua produção a todo vapor que estão fabricando máscaras, há produtores da rede de cosméticos que em vez de perfume estão produzindo sabão líquido. E isso terá que chegar às comunidades mais desfavorecidas sob pena de elas não poderem seguir as recomendações que nós estamos dando.

E falando em comunidades menos favorecidas, muitas das orientações que são dadas não podem ser seguidas por essas pessoas, como ficar em casa, lavar as mãos, e manter uma distância de dois metros de outra pessoa. Se a pessoa tem que trabalhar, se ela não tem acesso a saneamento básico e se ela mora num apartamento que tem um cômodo por exemplo. Que medidas essas pessoas podem tomar para se protegerem dentro da realidade em que elas vivem?

Eu não posso dizer a essas pessoas que se tiver uma pessoa de idade, um avô ou uma avó que fique sozinha num cômodo, porque elas vão me responder “Aqui moram cinco no mesmo cômodo.” A gente não tem como fazer retórica de uma coisa que não tem aplicabilidade prática. Não há como fazer, essa é a resposta.

Dentro do possível, que recomendações essas pessoas podem seguir?

Mantenha normas de higiene muito rígidas. Hidratação e alimentação, o máximo possível, adequadas.

E o que o poder público pode fazer também para ajudar a prevenção nesses locais?

Eu tenho uma visão muito particular. Eu não acho que isso caiba ao poder público, nesse momento. O poder público não aguenta. O SUS sozinho não aguenta. Ou nós ajudamos com a iniciativa privada ou o colapso será mais grave e mais rápido.

Por que a Covid-19 não é só uma “gripezinha”?

Ela começa com sintomas muito semelhantes a uma gripe comum. Mas num determinado número de pessoas – e, até agora, o que a epidemiologia tem mostrado é que esse grupo de pessoas são aquelas de mais idade e aquelas portadoras de doenças associadas ou prévias, como hipertensão arterial, diabetes descompensada, paciente imunossuprimido pelo uso de remédio ou com qualquer doença que diminua a imunidade, pacientes transplantados de órgão, paciente com HIV…

Quem morre de Covid-19 morre de pneumonia. A pneumonia que ela causa é muito grave e é diferente de uma pneumonia comum. Ela se caracteriza por um grau de inflamação muito mais grave evoluindo com fibrose precoce, evoluindo para síndrome de angústia respiratória do adulto, evoluindo para “sepsis”, necessitando ventilação mecânica porque o pulmão não funciona.

E com uma mortalidade muito alta nessas condições nesse grupo de pessoas que eu falei.

Sobre remédios, têm alguns estudos muito preliminares falando sobre remédios que já são conhecidos pra malária, ebola e HIV que podem negativar o coronavírus. Isso deve ser encarado como uma possível cura?

Não. A nossa posição brasileira foi de não recomendar nenhum tratamento. Há vários trabalhos publicados, há um número de papers publicado na literatura nesses últimos três meses que já ultrapassa 700. Desses, alguns são de avaliação, mas são estudos não randomizados, não controlados, não duplo-certos, com uma série de impedimentos. São cohorts, são séries de casos que testaram alguns antivirais, algumas medicações antimaláricas que são usadas em algumas doenças autoimunes. Mas as conclusões até o momento não permitem que nós recomendemos que haja esse ou aquele tratamento.

Nós optamos por esperar a publicação do grande estudo clínico que está sendo feito na China, o que deve ocorrer nos próximos dois meses, para verificação dessas associações medicamentosas. Essa é a nossa posição.

O quanto que o corte de recursos para pesquisa, para universidades e para o próprio SUS prejudicaram e fragilizar mais a gente para combater essa pandemia?

Agora nós estamos reivindicando recuperar alguns cortes havidos. Temos conseguido alguma coisa. Mas, sem dúvida nenhuma, os geneticistas e os virologistas brasileiros têm dado uma contribuição extraordinária. Desde as pesquisadoras de São Paulo que em três dias desvendaram o genoma que chegou ao Brasil, que era um genoma importado europeu.

E agora tem um grupo de pesquisadores multi-institucional envolvendo universidades de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Fiocruz, que está trabalhando no sentido de determinar o perfil epidemiológico e as mutações existentes.

Hoje nós já podemos dizer que o vírus que está circulando no Brasil já tem características brasileiras. Ou seja, ele já sofreu mutações que o adaptaram ao nosso país. O vírus brasileiro já tem cluster, ou conglomerados virais, que já o torna diferente daquele que circula na China ou mesmo nos países europeus.

Que cuidados as pessoas devem tomar com compras, alimentos que elas trazem de fora de casa e, até com pelos animais, cabelo e barba, para elas não se contaminarem?

Normas de higiene. Lavar com água e sabão as embalagens. Quando for pedir comida de entrega domiciliar, sempre ter cuidado de passar um paninho ou alguma coisa, de preferência descartável, nas embalagens que possa limpar aquela superfície, uma vez que o vírus pode se manter em superfícies durante algumas horas. Não está determinado por quantas horas, mas nós sabemos que pode viver algumas horas em superfícies lisas.

Tem muita gente que tem coronavírus e não sabe que tem, já que 80% dos infectados são assintomáticos. Tem algum teste caseiro que dê pra pessoa saber se tem coronavírus?

Não.

Então muita gente que não sabe se tem, principalmente jovens….

Nem vai saber. Portanto, a recomendação é igual para todos: sigam o isolamento social, não façam festa, não vão para bares. Esse é o momento em que todo mundo tem que colaborar. E cuidem dos seus velhos: pais, avós, padrinhos, tios, etc.

Cuidar significa ficar longe por enquanto, o máximo possível.

É, por enquanto, nada de abraços e nem beijinhos.

Muita gente perguntou sobre tomar vacina e doar sangue. Isso é seguro?

São duas coisas diferentes.

Para doar sangue, nenhum problema. As condições de biossegurança, tanto nos locais de doação, utilização de materiais, proteção da pessoa doadora, bem como da pessoa que vai receber sangue são 100% seguras. Portanto, nós conclamamos as pessoas que compareçam porque os bancos de sangue estão precisando muito de doador nesse momento. Rio de Janeiro, São Paulo, locais de grande atendimento e de grandes hospitais com grande demanda cirúrgica, inclusive, de terapia intensiva e para casos graves. Isso é uma coisa completamente segura.

Fila para tomar vacina é uma coisa é totalmente não recomendada. A nossa recomendação é que, quem vai tomar vacina vá, preferencialmente, usando máscara e que mantenha uma distância de um metro de uma pessoa para a outra enquanto espera.

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

Brasil reduz a aplicação da lei ambiental em meio ao coronavírus

Brasil reduz a aplicação da lei ambiental em meio ao coronavírus

O Brasil vai reduzir os esforços de combate aos crimes ambientais durante a epidemia do coronavírus, disse um funcionário da agência ambiental Ibama à Reuters, apesar das preocupações de que a redução da proteção possa levar a um pico no desmatamento.

O diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, disse que a epidemia lhe deixou pouca escolha, a não ser enviar menos pessoal para o campo por causa do vírus altamente contagioso.

Ele estimou que um terço dos agentes de campo do Ibama tem perto de 60 anos ou tem condições médicas que os colocam em maior risco de sintomas graves do vírus.

O Ibama não contrata novos agentes há anos por causa dos cortes no orçamento do governo e suas fileiras estão envelhecendo rapidamente.

“Não há como pegar essas pessoas que estão em risco e expô-las ao vírus”, disse Azevedo. “Não há escolha entre uma coisa e a outra. É uma obrigação.”

Duas fontes do Ibama, que não estavam autorizadas a falar à mídia, disseram que os agentes de campo estão preocupados com sua própria saúde e com o risco de disseminar o coronavírus para as regiões rurais onde operam.

Os especialistas em desmatamento disseram que, embora as preocupações com a saúde devam ser uma prioridade máxima, a política pode ter graves consequências ambientais.

“Enfraquecer a fiscalização significa definitivamente um maior risco de desmatamento por razões óbvias”, disse o economista ambiental Sergio Margulis, autor de um artigo sobre “Causas do Desmatamento da Amazônia Brasileira”.

O risco adicional vem na esteira do aumento do desmatamento e de um pico de incêndios na floresta amazônica brasileira depois que o presidente de direita Jair Bolsonaro tomou posse em janeiro de 2019, provocando um clamor global de que ele estava incentivando madeireiros ilegais, fazendeiros e especuladores de terras.

O Brasil abriga cerca de 60% da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, que absorve grandes quantidades de gases de efeito estufa que causam a mudança climática.

Bolsonaro tem defendido planos de desenvolvimento para a região amazônica argumentando que eles são a melhor maneira de tirar mais brasileiros da pobreza. Mas o pico do desmatamento ameaça fazer descarrilar um acordo de livre comércio sul-americano com a Europa e prejudicar as exportações.

ESSENCIAL, MAS COM FALTA DE PESSOAL
Em um decreto na semana passada, Bolsonaro definiu a fiscalização ambiental como um serviço essencial durante a pandemia de coronavírus, permitindo ao Ibama continuar a enviar agentes para o campo.

Mas Azevedo disse que até mesmo serviços essenciais, como saúde e polícia, devem ser cortados para proteger os trabalhadores em situação de risco.

A assessoria de imprensa de Bolsonaro dirigiu perguntas ao Ministério do Meio Ambiente. O Ministério do Meio Ambiente, que supervisiona o Ibama, não respondeu imediatamente ao pedido de comentários.

As operações mais importantes serão priorizadas, enquanto algumas áreas precisarão ser cortadas, disse Azevedo, acrescentando que proteger a Amazônia é uma prioridade.

“Não haverá redução dos agentes de fiscalização na Amazônia”, disse ele, prevendo que algumas partes da floresta tropical podem até mesmo ver o desmatamento caindo.

Fontes do Ibama disseram que a pandemia apresentou mais desafios logísticos, uma vez que muitos hotéis e restaurantes estão fechados e os vôos foram cancelados em massa.

Azevedo disse que enquanto os agentes ainda podem optar por voar, o Ibama está alocando veículos e priorizando o transporte terrestre para reduzir o risco de contágio.

Alguns agentes dirigem durante dias para chegar às suas missões na Amazônia, disse uma das fontes.

Os pesquisadores concordam que a redução da fiscalização permite mais desmatamento. No entanto, uma recessão profunda desencadeada pela pandemia pode criar um aumento do desemprego, o que pode impulsionar a atividade criminosa, mas também deprimir os preços da madeira e da terra adquiridas ilegalmente.

Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon, instituto amazônico sem fins lucrativos, disse que é impossível prever a reação dos criminosos, que são difíceis de estudar. Os preços das commodities continuam altos e o enfraquecimento da moeda real brasileira significa que os agricultores estão vendo maiores lucros para suas exportações. A demanda para limpar novas terras para a agricultura, portanto, continua forte, disse ele.

A limpeza e venda ilegal de terras é inerentemente especulativa, por isso Barreto disse que os criminosos ainda podem desflorestar com a esperança de impunidade, para depois sentarem-se na terra até poderem vender.

O desmatamento já aumentou 71% em relação ao ano anterior em janeiro e fevereiro, de acordo com dados preliminares do governo, e os pesquisadores estarão atentos aos dados de março e abril.

“Meu palpite é que o desmatamento não vai diminuir”, disse Carlos Nobre, um cientista de sistemas de terra da Universidade de São Paulo.

Reportagem de Jake Spring; Editorial de Richard Chang/Reuters

Do desmatamento ao comércio de animais silvestres, crise climática contribui para o surgimento de pandemias

Do desmatamento ao comércio de animais silvestres, crise climática contribui para o surgimento de pandemias

O que o desmatamento tem a ver com a aceleração no ritmo das epidemias e pandemias, como a atual de coronavírus? Tudo. E quem diz isso não faz parte de nenhum grupo ecologista radical. A afirmação está, por exemplo, em artigo publicado pelo Fórum Econômico Mundial, entidade que reúne uma vez por ano os líderes empresariais e políticos do mundo em Davos (Suíça). Segundo pesquisa, 31% dos 12.012 surtos em todo mundo entre os anos de 1980 e 2013 estão ligados diretamente a ambientes que foram devastados.

O cálculo é que 65% das doenças que surgiram nas últimas quatro décadas sejam zoonoses. Animais silvestres, seja por caça, comércio ou perda de habitat, entraram em contato com o homem, passando doenças que antes estavam restritas à selva. Foi assim com o ébola, zika, Aids e agora com o coronavírus.

A origem mais aceita cientificamente é que o Covid-19 contaminou humanos a partir do mercado de Wuhan, na China, que comercializava animais (vivos ou mortos) como morcegos, cobras, civetas, entre outros animais silvestres. E essa é uma história que se repete. O surto de ébola de 2014 na África Ocidental se deu por contato com macacos. Já as mortes pelo nipah em Bangladesh, em 2004, aconteceram pela proximidade com fluídos de morcegos chamados de “raposas voadoras”. Esses dois vírus têm letalidade bem maior que o coronavírus e são classificados como “bombas-relógio” que também podem causar pandemias.

Por outro lado, o aquecimento global está derretendo geleiras que preservaram vírus antigos que estavam encapsulados e eram desconhecidos até agora. “Esses desequilíbrios e desregulações criam fenômenos que depois a ciência tem que se preocupar e correr para resolver”, afirma Ricardo Abramovay, professor sênior do Programa de Ciência Ambiental da USP.

A crise climática torna-se ainda mais urgente.

Fonte: RODRIGO BERTOLOTTODE ECOA, EM SÃO PAULO