por Nicole Oliveira | 20, fev, 2020 | Mudanças Climáticas, Mundo, Petróleo e Gás |
Carvão, petróleo e gás são responsáveis por muito mais metano atmosférico, o gás superpotente de aquecimento, do que se sabia anteriormente
No meio do verão de campo na Groenlândia, em 2015, Benjamin Hmiel e sua equipe perfuraram as enormes entranhas congeladas do manto de gelo, transportando periodicamente um pedaço de gelo cristalino do tamanho de um motor de motocicleta. O gelo continha parte da resposta a uma pergunta que incomodava os cientistas há anos: quanto do metano na atmosfera, uma das fontes mais potentes do aquecimento global, provém da indústria de petróleo e gás?
Anteriormente, acreditava-se que fontes geológicas como infiltrações vulcânicas e vasos de lama com gás cuspiram cerca de 10% do metano que acabava na atmosfera todos os anos. Mas uma nova pesquisa, publicada esta semana na Nature, sugere que fontes geológicas naturais compõem uma fração muito menor do metano na atmosfera de hoje. Em vez disso, dizem os pesquisadores, o metano provavelmente é atribuível à indústria. Além disso, os resultados indicam que subestimamos os impactos de metano da extração de combustíveis fósseis em até 40%.
Essas são más notícias para as mudanças climáticas e boas, diz Hmiel, principal autor do estudo e pesquisador da Universidade de Rochester. Ruim, porque significa que a produção de petróleo e gás teve um impacto maior e mais confuso no orçamento de gases de efeito estufa do que os cientistas sabiam. Mas Hmiel considera o resultado encorajador quase pelo mesmo motivo: quanto mais emissões de metano puderem ser identificadas para a atividade humana, como a extração de petróleo e gás, mais controle significa que os formuladores de políticas, empresas e reguladores precisam resolver o problema.
“Se pensarmos no total de metano na atmosfera como fatias de uma torta – uma fatia é de ruminantes, a outra é de pântanos. A fatia é que costumávamos pensar que o metano geológico era muito grande ”, diz Hmiel. “Então, o que estamos dizendo é que a fatia de torta de combustível fóssil é maior do que pensávamos, e podemos ter uma influência maior no tamanho da fatia, porque é algo que podemos controlar”.
Metano, o combustível da “ponte” – mas uma ponte para onde?
Um potente gás de efeito estufa, o núcleo de carbono do metano e os braços de hidrogênio estão dispostos em uma configuração que o torna excepcional na absorção de calor. Em uma escala de tempo de 20 anos, uma molécula de metano é aproximadamente 90 vezes mais eficaz em reter o calor na atmosfera do que uma molécula de dióxido de carbono, o gás de efeito estufa que exerce o maior controle sobre o aquecimento futuro da Terra a longo prazo.
As concentrações atmosféricas de metano aumentaram em pelo menos 150% desde a Revolução Industrial. Por causa de sua potência, quanto mais houver no ar, mais difícil será impedir que as temperaturas do planeta superem as metas climáticas globais.
O metano também é o protagonista de um mistério científico de décadas em todo o planeta: de onde, exatamente, todo o metano extra que aquece a atmosfera hoje vem? São arrotos de vaca ou arrozais? Vazamentos na produção de petróleo e gás? Vulcões gasosos de lama gasoso ou escoam ao longo da Terra, mudando de costuras?
Nas últimas décadas, à medida que as chamadas para reduzir as emissões de dióxido de carbono aumentaram e as tecnologias de coleta de gás natural, como o fracking, ficaram mais baratas, muitas usinas a carvão nos Estados Unidos e no exterior se aposentaram. Nos EUA, mais de 500 usinas a carvão foram fechadas desde 2010. Em muitos casos, são substituídas por usinas de gás natural (que é composto principalmente de gás metano), que agora produzem quase 40% das necessidades de energia dos EUA.
O metano queima mais eficientemente que o carvão, tornando-o uma opção melhor em termos de custo de carbono e poluição do ar do que o carvão. Ele também permanece na atmosfera por muito menos tempo que o CO2 – uma média de nove anos, comparado às centenas de CO2.
Devido às suas características, o gás natural tem sido frequentemente apontado como um “combustível de ponte” para ajudar a facilitar a transição para um futuro energético neutro em carbono. Atualmente, as usinas de gás natural atendem às necessidades de energia, enquanto se desenvolvem tecnologias renováveis ou com carbono negativo.
“A questão é: isso é um combustível de ponte ou vai durar muito tempo?” diz Sheila Olmstead, economista ambiental da Universidade do Texas em Austin. “O mercado está nos dizendo que provavelmente permanecerá por muito tempo”.
No entanto, o custo climático do gás natural se baseou em uma premissa básica: existem menos emissões totais de carbono do gás natural do que de outras fontes. Mas, nos últimos anos, uma flotilha de estudos científicos colocou essa suposição em questão, principalmente observando a quantidade de gás perdida durante o processo de produção.
Se houver muito poucos vazamentos ou perdas ao longo do caminho – menos de alguns por cento da quantidade total de gás recuperado -, a matemática se iguala ou sai à frente. Mas se essa “taxa de vazamento” ultrapassar mais de 1% do total de gás recuperado, o orçamento será reduzido.
Um estudo recente descobriu que a “taxa de vazamento” de gás amplamente utilizada no processo de produção de gás natural dos EUA poderia ser superior a 2%. Outros, observando “super emissores” específicos nas principais regiões de perfuração dos EUA, encontraram ainda mais vazamentos.
“Nos últimos anos de pesquisa, eu diria que todo o argumento para o metano para um combustível de ponte realmente se foi”, diz Howarth. “Mas se voltarmos e dissermos que realmente precisamos de gás natural por um tempo, esse cálculo depende do ponto de equilíbrio do metano. E não temos certeza se estamos perto disso. “
É fundamental eliminar gradualmente as emissões de CO2, salienta Jessika Trancik, especialista em energia do MIT, porque é isso que manterá o planeta trancado para o aquecimento a longo prazo. Mas para os objetivos climáticos que o mundo está lutando para atingir neste momento – mantendo a temperatura do ar acima dos objetivos de temperatura de 3,6 graus Fahrenheit (2 graus Celsius) do Acordo de Paris de 2015 – também é essencial impedir que qualquer metano extra vaze na atmosfera.
“É impossível atingir essas metas climáticas com metano na mistura”, diz Lena Höglund Isaksson, especialista em gases de efeito estufa do Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados da Áustria.
O gelo tem respostas
É extremamente difícil descobrir quanto do metano na atmosfera provém de fontes humanas, como perfuração ou queima de petróleo e gás, quanto provém de outras fontes influenciadas pelo homem, como a agricultura, e quanto provém de fontes naturais, como escoamentos vulcânicos.
De onde vem, determina o que os humanos podem fazer sobre isso. Se for petróleo e gás, podemos consertar os sistemas para produzir menos. Se forem vulcões, podemos ser menos capazes de gerenciar as emissões.
“É como uma história de detetive”, diz Höglund Isaksson.
No passado, os cientistas fizeram estimativas de quanto o chamado metano natural vem de fontes geológicas, caminhando até um vulcão de infiltração ou lamaçal e medindo cuidadosamente suas emissões. Então os cientistas aumentariam essas observações para fazer uma estimativa para todo o planeta. Usando essa estratégia, a maioria das estimativas coloca a contribuição anual do metano proveniente de geologia natural em cerca de 50 teragramas por ano, cerca de 10% da quantidade total anual de metano emitido. Estimativas recentes colocam a contribuição anual total do metano da aquisição e queima de combustíveis fósseis em pouco menos de 200 teragramas.
A equipe de Hmiel suspeitava que as fontes geológicas pudessem ser ainda menores – e eles tinham um lugar para testar essa suspeita: a larga e plana camada de gelo da Groenlândia. O gelo ali, enterrado a mais de 100 metros abaixo da superfície, datava de antes da Revolução Industrial, em 1800, e por isso tinha o metano pré-industrial preso em pequenas bolhas de ar em sua estrutura congelada.
Eles desenterraram mais de 2.000 libras de gelo. Depois, sugaram o ar contendo metano das bolhas presas no gelo.
O metano de fontes geológicas naturais tem uma composição química ligeiramente diferente do metano de outras fontes, como as áreas úmidas. O metano sugado para fora do gelo de 250 anos continha vestígios de apenas uma pequena quantidade de metano geológico. E como as amostras eram de antes do início da Revolução Industrial e o aumento simultâneo de metano do carvão e do petróleo, não havia vestígios de metano nos combustíveis fósseis.
Por outro lado, as amostras após o início da Revolução Industrial mostraram uma impressão digital reveladora de combustíveis fósseis.
Mas a principal descoberta foi sobre o quão pouco metano de fontes geológicas havia no gelo: o equivalente a não mais do que cerca de 5 teragramas de metano liberados na atmosfera por ano, naqueles dias pré-combustíveis fósseis. É improvável que a geologia tenha mudado em tão pouco tempo, portanto essa estimativa é, diz Hmiel, uma boa suposição para o que a geologia está contribuindo hoje também.
Fundamentalmente, essa contribuição é 10 vezes menor que outras estimativas – incluindo aquelas usadas pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA e pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – usadas para fazer avaliações científicas e decisões políticas.
No geral, os cientistas há muito sabem exatamente quanto metano existe na atmosfera. Esse número não mudou: ainda existem cerca de 570 teragramas de metano coletando na atmosfera a cada ano. Mas se houver muito menos das fontes geológicas naturais, alguma outra fonte deve fazer a diferença. A equipe também pode demonstrar que a fonte mais provável são as operações de petróleo e gás.
Se as operações de petróleo e gás tiveram uma pegada muito maior nas emissões de metano do que se sabia anteriormente, Hmiel pensou, isso também significa que elas podem limpar essas emissões – reduzindo a quantidade de gás usada e limpando vazamentos, explosões e outros gás desperdiçado do processo.
“As concessionárias de energia que atualmente optam por se concentrar em energia eólica e solar ou gás – se escolherem gás, é crucial entender que essa usina estará em operação por décadas”, diz Olmstead.
“Eles têm um poder real de permanência muito além da data de validade da placa de identificação. Sabendo disso, isso muda as decisões que tomamos hoje? Que teremos efeitos nas emissões de metano daqui a 10, 20, 30, 40 anos? ”
Vitórias no Brasil
A Coalizão Não Fracking Brasil pelo Clima, Água e Vida (COESUS), presente em mais de 10 estados brasileiros, tem trabalhado arduamente para combater a exploração do gás natural. Paraná e Santa Catarina simbolizam essas vitórias. “Nosso trabalho no estado do Paraná foi árduo e, graças ao apoio de cooperativas, autoridades, ONGs e sociedade, hoje os mais de 11 milhões de paranaenses podem respirar aliviados sabendo que o gás da morte ficará longe de suas terras. Em Santa Catarina , um forte e incansável trabalho de diversas entidades junto a diversos municípios fez com que a Assembleia Legislativa aprovasse uma lei que garante a 7 milhões de pessoas a certeza de estarem livres do gás de xisto. Ou seja, com informação, mobilização e participação, a sociedade pode impedir a exploração do gás da morte e barrar o avanço das mudanças climáticas”, afirma Juliano Bueno de Araújo, diretor fundador da Coesus.
Fonte: National Geographic
por Nicole Oliveira | 20, fev, 2020 | Mudanças Climáticas, Mundo, ONU |
Países de todo o mundo estão fracassando em proteger as crianças das ameaças à saúde causadas pelas mudanças climáticas, e em criar um ambiente saudável essencial para seu bem-estar, diz um relatório conjunto da Organização das Nações Unidas, Fundo da ONU para a Infância (Unicef) e a revista médica The Lancet, que publicou o estudo nesta quarta-feira (19/02).
“As mudanças climáticas, a degradação ecológica, populações migrantes, conflitos, desigualdades persistentes e práticas comerciais predatórias ameaçam a saúde e o futuro de crianças em todos os países do mundo”, diz a publicação, que destaca os impactos de emissões de gases poluentes, a destruição da natureza e alimentos altamente calóricos e ultraprocessados.
“Os governos precisam formar coalizões através de vários setores para superar as pressões ecológicas e comerciais, a fim de garantir que as crianças recebam seus direitos agora e um planeta habitável nos próximos anos.”
Enquanto crianças de países ricos têm maiores chances de sobrevivência e bem-estar, esses mesmos países contribuem de forma desproporcional com emissões de CO2 que ameaçam o futuro de todas as crianças no mundo, consta do texto da autoria de 40 dos maiores especialistas em saúde infantil e juvenil do mundo.
Os pesquisadores desenvolveram um índice de “desenvolvimento infantil” que inclui fatores como mortalidade, saúde, educação e nutrição, e outro de “sustentabilidade”, que se concentra nas emissões per capita de gases de efeito estufa de cada país. O estudo frisa que nenhum dos países do mundo teve bom desempenho nas três categorias avaliadas: desenvolvimento infantil, sustentabilidade e igualdade.
“Construímos um novo perfil nacional com o fim de medir as condições fundamentais para menores entre 0 e 18 anos sobreviverem e se desenvolverem hoje em dia, além de medir ameaças ambientais futuras para crianças, baseando-nos nos excessos das emissões de gases de efeito estufa projetados para 2030. Essas duas medidas […] são combinadas para gerar nosso perfil de desenvolvimento e futuro infantil”, explica o documento.
Segundo os critérios do primeiro índice, nações menos desenvolvidas como a República Centro-Africana e o Chade têm desempenho bastante ruim, comparado a países ricos como Noruega, Coreia do Sul, Holanda, França e Irlanda, que ocupam os cinco primeiros postos em bem-estar infantil.
O ranking, no entanto, aparece praticamente inverso no segundo índice, que detalha as emissões de poluentes por habitante. Países onde as crianças contam com um melhor ponto de partida na vida, com destaque para os europeus, falham em assegurar um ambiente climático adequado para o futuro infantil.
Estados Unidos, Austrália e Arábia Saudita, por exemplo, estão entre os dez últimos países no ranking de sustentabilidade. Holanda, Islândia e Alemanha também constam no fim dessa lista. A Alemanha ocupa o 14º lugar em bem-estar infantil, mas o 161º em sustentabilidade.
Já o Brasil não altera muito sua posição: em bem-estar infantil, ocupa o 90º lugar, ficando em 89º no critério de sustentabilidade.
“Os tomadores de decisão estão falhando com nossas crianças e nossa juventude, fracassando em proteger sua saúde, seus direitos e seu planeta”, comentou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus.
O relatório também destacou ameaças que o setor comercial representa para a infância. A exposição a publicidades de junk food (comida de baixa qualidade) e alimentos ricos em gordura e açúcares é relacionada à obesidade infantil. O número de crianças e adolescentes obesos mais que decuplicou entre 1975 (11 milhões) e 2016 (124 milhões), de acordo com os autores.
Crianças também são expostas a publicidade de produtos destinados a adultos, como álcool, tabaco e jogos de azar, aumentando suas chances de consumi-los no futuro. “Crianças em países de baixa e média renda também tem alta exposição”, constata o estudo. “Numa amostra de 2.423 crianças entre 5 e 6 anos do Brasil, China, Índia, Nigéria e Paquistão, 68% conseguiam identificar pelo menos uma marca de cigarros, com índices que variam de 50% na Rússia até 86% na China.”
No Brasil, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública lançou no início do ano uma consulta pública para regulamentar a publicidade infantil no Brasil por meio de portaria. Porém especialistas destacam que a publicidade infantil dirigida a menores de 12 anos já é considerada abusiva no país.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não proíbem a publicidade infantil expressamente, mas permitem concluir que a prática é proibida no país. O Artigo 39 do CDC, por exemplo, proíbe que um fornecedor de produtos e serviços se aproveite “da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.
Em 2014, a Resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) classifica como abusiva a “a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.
Fonte: Deutsche Welle
por Nicole Oliveira | 20, fev, 2020 | Mudanças Climáticas, Mundo |
Há menos de um ano, a casa de Alice Posha foi arrastada pela chuva torrencial provocada pelo ciclone Idai. Este ano, no entanto, essa avó do Zimbábue capina sem muita esperança um campo de milho arruinado pela pior seca em mais de três décadas.
“Só de ver esses espigões murchos, certamente teremos uma colheita muito ruim”, lamenta a sexagenária.
Em um período de dez meses, o leste do Zimbábue foi abalado por eventos climáticos extremos, ilustrando o alto preço pago pela África, o continente mais afetado pelas mudanças climáticas.
Em março de 2019, o ciclone Idai causou inundações catastróficas nos vizinhos Zimbábue, Moçambique e Malauí, deixando mais de mil mortos, milhões de vítimas e danos consideráveis, inclusive em termos de suprimentos alimentares.
“Ele levou nossas galinhas e perus”, lembra a cunhada de Alice, Josephine Ganye, que agora depende de ajuda alimentar para sobreviver.
Ganye é uma das 45 milhões de pessoas – um número recorde – ameaçadas pela fome no sul da África devido a secas, inundações e dificuldades econômicas em seus países, segundo as Nações Unidas.
“Esta crise da fome está atingindo proporções nunca antes vistas”, alertou a chefe regional do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Lola Castro, em meados de janeiro.
Nos últimos cinco anos, todo extremo sul do continente africano, onde as temperaturas estão subindo duas vezes mais rápido do que no restante do mundo, sofreu um déficit significativo de chuva.
Pequenos e grandes agricultores, criadores de animais, hoteleiros, professores… todos são afetados.
– Orações –
Com suas dificuldades financeiras, o Zimbábue é claramente o país mais vulnerável às mudanças climáticas na região.
A seca se soma a uma lista interminável de dificuldades como inflação, escassez de dinheiro, gás, remédios, água e eletricidade. A vida cotidiana se tornou um pesadelo.
“Quase todo mundo aqui está em situação de insegurança alimentar”, afirma Janson Neshava, de 68 anos, em sua casa em Buhera.
“Não há problema em organizar orações para pedir chuva, mas isso não ajuda em nada. Até os pântanos e rios que fluem ao longo do ano estão secos”, acrescenta, com a cabeça coberta com um velho chapéu de feltro preto.
No total, 60% dos 15 milhões de habitantes do Zimbábue sofrem de insegurança alimentar.
No distrito de Buhera, no leste do país, esse número chega a 80%, de acordo com Patience Dhinda, uma autoridade local.
Celia Munhangu, de 34 anos, é casada com um professor. “Ele ganha tão pouco que precisamos de ajuda em tempos de seca”, confessa, enquanto cava no leito seco de um rio para encontrar água.
“Às vezes, recebemos milho do governo, mas não recebemos nada desde novembro”, acrescenta.
O depósito de grãos da Buhera, que reúne a ajuda alimentar estatal, está vazio. Carregamentos de ajuda estão a caminho, garante Patience Dhinda.
Para economizar dinheiro, o marido de Celia Munhangu volta para casa apenas no fim de semana. De segunda a sexta-feira, dorme na escola onde leciona.
Com meio dólar por viagem, “o transporte é muito caro”, diz a mulher. “Este tem sido um ano péssimo”, suspira.
Em 2019, as lavouras em Buhera já sofreram com a seca, antes de serem varridas pelas chuvas torrenciais. Este ano, correm o risco de serem completamente queimados pelo sol.
– Uma refeição por dia –
Cerca de 800 quilômetros mais ao oeste, do outro lado da fronteira, na Zâmbia, o contraste é surpreendente: grama alta, estradas enlameadas e campos de milho de um verde intenso.
No povoado de Simumbwe, no sudoeste do país, as chuvas chegaram no final de dezembro.
À sombra de majestosas árvores, porém, sentadas sobre a terra vermelha, empoleiradas em galhos ou apoiadas em carros de boi, centenas de pessoas aguardam pacientemente a distribuição de alimentos organizada pela ONG World Vision e pelo PMA.
A colheita do ano passado foi catastrófica pelo segundo ano consecutivo. Em 2019, até 70% dos cultivos foram perdidos por conta da seca e, agora, as necessidades são enormes.
“No ano passado, colhi 18 quilos de alimentos. Em outras palavras, nada”, contou Loveness Haneumba, mãe de cinco filhos e “feliz” beneficiária da ajuda em Simumbwe.
“Comemos uma vez por dia”, relata. “As crianças perguntam: ‘o que vamos comer?’ E eu respondo: ‘Espera, vou buscar algo'”, diz ela, apenas para ganhar tempo.
Nos últimos anos, a temporada de chuvas se reduziu consideravelmente, afetando, com isso, toda a produção agrícola.
Tradicionalmente, essa temporada de chuvas ia de outubro a maio, mas agora dura apenas de dezembro a abril.
No pátio da escola de Simumbwe, Derick Mulilo, que supervisiona a distribuição de alimentos, aproveita a oportunidade para conscientizar os presentes sobre a crise climática.
“É preciso parar com o comércio de carvão! Como podem ver, o desmatamento contribui para a mudança climática”, diz aos camponeses sem dinheiro que tentam sobreviver com a venda desse produto.
– Absenteísmo pela fome –
“A comida que trouxemos não é suficiente”, afirma, diante dessas pessoas afetadas pelo calor e pela fome. “Nós nos concentramos nas pessoas mais vulneráveis”, explica.
Entre elas, estão Loveness Haneumba e seus filhos, com atraso no crescimento. A de 6 anos parece ter 4, e o de 4, dois.
Lizzy Kayoba, outra mãe de uma família numerosa, também está na lista de beneficiários. Na última noite, caminhou cinco horas, carregando seu filho pequeno nas costas. Ela queria chegar ao amanhecer ao local de distribuição de alimentos.
O sol está quase no auge, quando ela é, enfim, chamada. Parte com 25 quilos de milho, e 7,6 quilos de feijão. A comida é suficiente para “uma ou duas semanas”.
O alívio é bem-vindo, mas a dotação de alimentos não lhes permitirá esperar até a próxima distribuição, programada para acontecer dentro de um mês na mesma escola.
Em uma das salas de aula, o tema do dia é o “Corpo que tem fome”.
“Comemos alimentos para que nossos corpos possam se manter saudáveis”, lê-se no quadro.
Cerca de 80 estudantes se amontoam na sala, a maioria sentada no chão de cimento. Há pelo menos 15 ausentes, “por causa da fome”, explica seu professor, Teddy Siafweba.
E os que comparecem com frequência estão com o estômago vazio e sonolentos na aula, observa a professora Tryness Kayuni, de 33 anos.
De sua sala, Tryness observa a distribuição de alimentos e não consegue reprimir pensamentos sombrios. Não faz parte dos 862 beneficiários.
Mãe solteira de um menino, não é considerada uma prioridade. Há meses, come apenas uma refeição por dia, já que não recebe salário desde setembro.
“Como eu sobrevivo? Peço comida aos meus colegas”, explica.
– Adaptar-se é a chave –
Zâmbia precisa, desesperadamente, de recursos para atender às necessidades de cerca de 2,3 milhões de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar grave.
O PMA recebeu apenas um terço dos 36 milhões de dólares necessários.
Nesse contexto, as pessoas estão predispostas a qualquer coisa. Recentemente, “ladrões roubaram alimentos destinados a uma escola” na área, disse Derick Mulilo.
A ajuda tampouco consegue se livrar da corrupção, do assédio e da violência. Homens sem escrúpulos prometem às mulheres incluir seus nomes na lista de beneficiários em troca de relações sexuais sem proteção.
Orgulhosa, Imelda Hicoombolwa, uma agricultora de 49 anos, afirma não ter de se preocupar por seu nome estar, ou não, na lista.
“A comida não é um problema. Eu tenho”, diz ela, com um grande sorriso.
Há três anos, esta mãe solteira faz parte das pequenas agricultoras que apostaram na diversificação agrícola e optou por verduras nutritivas. Usaram técnicas agrícolas adaptadas para a mudança climática.
É simples e funciona.
Antes de 2017, Hicoombolwa cultivava quase que apenas milho. Hoje, planta ervilhas que crescem com muito pouca água, amendoins, abóboras e girassóis.
“Eu me preparo para ganhar 18.000 kwachas (cerca de 1.200 dólares) por ano, em vez de 8.000 kwachas (540 dólares) antes da diversificação”, explica.
“Antes, as crianças faltavam à escola, porque nem sempre podiam pagar as taxas escolares. Agora, não”, conta.
Ela tampouco precisa correr para plantar com as primeiras chuvas.
Antes, “nas primeiras gotas de chuva, os agricultores plantavam, em vez de esperar que a umidade do solo fosse suficiente. No final, perdiam tudo”, diz Allan Mulando, do PMA.
Para plantar no momento propício, são distribuídos 165 pluviômetros para agricultores nos distritos da Zâmbia mais afetados pela seca, como parte de um programa conjunto da agência da ONU e do governo da Zâmbia lançado em 2015.
– Represa –
A regra básica é não plantar nada antes de 20 a 25 milímetros de precipitações, e adaptar as sementes de acordo com a previsão do tempo, diz Mulando.
Se os serviços meteorológicos esperam uma curta temporada de chuvas, é preciso escolher sementes que germinem rapidamente.
“Se tivesse tido acesso a essa conhecimento antes, seria relativamente rico”, comenta Godfrey Hapaka, um agricultor de 58 anos. “Teria um carro digno desse nome e poderia ter pagado os gastos escolares dos meus filhos”, completou.
Ao lado de sua modesta casa cercada de campos de milho, há um pluviômetro em um recinto cuidadosamente protegido por uma grade nova.
Assim que começa a chover, ele informa a quantidade de precipitação aos vizinhos.
Mas a mensagem nem sempre chega, lamenta.
Alguns são “reativos a aceitar informações. Seguem o exemplo de seus pais e avós. Estão parados no tempo. Mas, quando veem meus campos, começam a pensar”, acrescenta.
Os agricultores não são os únicos que monitoram as chuvas de perto.
Da represa de Kariba, na fronteira entre Zâmbia e Zimbábue, o diretor da central elétrica, Geoffrey Chambisha, observa com preocupação o nível do lago.
Ele trabalha nessa infraestrutura há 14 anos e nunca viu nada igual.
Este ano, o lago alcançou um de seus níveis mais baixos: 476,61 metros sobre o nível do mar, não muito longe do recorde de 475,93 metros registrado em 1996.
Na ausência de chuva em quantidade suficiente, espera-se que a represa de Kariba, a principal fonte de eletricidade nestes dois países, opere em apenas em 25% de sua capacidade em 2020.
Como era de esperar, os dois países vivem ao ritmo de prolongados cortes de energia, de até 20 horas por dia.
Isso tem consequências econômicas catastróficas, especialmente em Livingstone (no sudoeste), localidade procurada por turistas de todo mundo para admirarem as cataratas Victoria.
“Este ano foi particularmente ruim”, lamenta Andrew Murrin, dono de uma hospedagem próxima.
Quando as temperaturas beiram os 45ºC, os clientes naturalmente pedem ar-condicionado. Nessa situação, há meses Andrew recorre a seu gerador, que se tornou uma fonte importante de gastos.
“Em três meses, os cortes de energia me custaram 30.000 kwachas (1.950 dólares) em combustível e manutenção”, por um imóvel de apenas seis cômodos, calcula este britânico.
– Cataratas Victoria –
Além dos problemas de energia elétrica, a indústria do turismo sofre com uma publicidade recente, que preferia não ter tido.
Um vídeo filmado em setembro passado por um visitante que mostrava as cataratas Victoria praticamente secas causou grande comoção. O vídeo reflete, porém, apenas uma parte da realidade.
As imagens mostravam somente uma parte das cataratas de 1,7 quilômetro de extensão e, por isso, provocaram indignadas reações de profissionais do setor turístico. O restante fluía torrencialmente.
O presidente da Zâmbia, Edgar Lungu, também contribuiu para o pânico, publicando fotos das cataratas rochosas no Twitter em outubro, como “uma lembrança dramática das consequências da mudança climática no nosso meio ambiente e nos nossos meios de subsistência”.
Em Livingstone, o caso provocou irritação.
Todos os anos, a parte zambiana das cataratas Victoria está seca. “É um fenômeno natural e sazonal”, alega o responsável pela parte zambiana das cataratas, John Zulu.
Mas era tarde demais, e o dano já estava feito.
“Em um segundo, milhares de pessoas cancelaram suas reservas”, lamentou Zulu.
O resultado do episódio foi uma queda de 25% nos turistas, em 2019.
Em fevereiro de 2020, as cataratas fluem novamente ao longo de toda sua extensão, como acontece todos os anos nesta temporada.
Devido à falta de turistas, a pensão vizinha ao hotel de Murrin acaba de fechar, e seu dono se viu obrigado a demitir quatro de seus oito funcionários.
– Búfalos e antílopes dizimados –
Os turistas também são escassos no oeste da África do Sul, cerca de 1.500 quilômetros mais ao sul.
Na província de Northern Cape, às portas do deserto de Kalahari, os animais selvagens estão acostumados a temperaturas extremas, mas depois de vários anos de seca e debilitados, morrem.
Em dois anos, metade dos 4.500 búfalos, antílopes e cudos na reserva administrada por Burger Schoeman morreram.
Neste local, chove em média 250 milímetros ao ano. “Mas 250mm foi o que tivemos em cinco anos”, diz este imponente sul-africano.
Nos últimos três anos, dois terços dos animais selvagens sucumbiram à seca em Northern Cape, segundo a associação Wildlife Ranching South Africa.
Duas enormes fossas escavadas no topo de uma colina que domina a reserva privada de Schoeman, de 22.000 hectares, servem como fossas comuns.
Dois funcionários da reserva jogam ali os cadáveres de dois antílopes.
Em geral, Paul Ludick é o responsável por localizar vestígios e pegadas de animais para os turistas. Agora, porém, passa seu tempo coletando corpos, em número excessivo mesmo para os animais necrófagos.
Também tem de alimentar os que sobrevivem em condições-limite.
No fim do dia, quando a temperatura volta a ser tolerável, dezenas de búfalos se juntam, assim como as vacas, para comer alfalfa, uma cena completamente antinatural.
– Cordeiros abandonados –
A seca representa um abismo financeiro para a reserva, que gasta 200.000 rands (cerca de 12.000 euros) por mês para alimentar os animais e obriga o cancelamento das reservas dos caçadores, que buscam troféus.
“Temos que fazer uma partida de caça justa. Os caçadores não podem atirar em animais tão fracos”, alega Schoeman.
Menos caçadores também significa um problema de renda para Paul Ludick e seus colegas.
O salário de Ludick caiu pela metade em um ano. Pela primeira vez, “tive de pedir dinheiro emprestado para comprar material escolar” para os filhos, conta ele, há 28 anos funcionário nesta reserva.
O governo sul-africano, que declarou estado de desastre natural em Northern Cape, vai liberar 300 milhões de rands (19,65 milhões de dólares) em ajudas, uma quantia que representa uma gota de água no deserto.
“Nunca vi isso. Simplesmente não chove”, assegura Johan Steenkamp, um criador de 52 anos, à frente de uma granja de 6.000 hectares.
“Perdemos muitos animais. Restam de 30% a 40% do nosso gado”, já que mais de 100 animais morreram pela seca e outros 200 foram enviados prematuramente para o matadouro.
É uma hecatombe. O mesmo vale para muitos fazendeiros da região, que perderam entre 30% e 70% de seu gado em dois anos, segundo a cooperativa agrícola KLK.
As ovelhas ainda dão à luz, mas abandonam seus recém-nascidos, porque “não têm leite suficiente”.
“Deixam os filhotes para trás e morrem”, conta Johan Steenkamp.
Seus dois filhos mais velhos escolheram uma carreira diferente da agricultura, e Steenkamp também dissuadiu o mais jovem de trabalhar na propriedade familiar.
“Se isso continuar assim, não há futuro aqui”, prevê o fazendeiro com os olhos em lágrimas.
“Nesse ritmo, posso aguentar até março. Depois disso, não sei”, lamentou.
Fonte: AFP