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Lançamento do Monitor Oceano sensibiliza sociedade sobre conservação marinha

Lançamento do Monitor Oceano sensibiliza sociedade sobre conservação marinha

Na última quarta-feira (14), o Instituto Internacional Arayara e parceiros lançaram a nova ferramenta de monitoramento do petróleo e gás sobre a zona costeira-marinha do Brasil: o Monitor Oceano, que também foi pauta da reunião da Arayara na Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustível (ANP) no mesmo dia, no Rio de Janeiro.

No mês em que se completam cinco anos do devastador derramamento de petróleo que atingiu a costa nordestina e dois estados do sudeste em 2019, o Instituto Internacional Arayara lança o Monitor Oceano. A iniciativa vem como uma resposta ativa a esse crime ambiental, que segue até hoje sem respostas definitivas.

Durante os últimos cinco anos, não houve avanços em medidas de proteção do mar. Pelo contrário: há evidências do avanço da exploração de petróleo sem consulta prévia das comunidades locais. Segundo relatório publicado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em março, o total de áreas atingidas pela tragédia foi de 1.009 locais em mais de 130 municípios em 11 estados das regiões Nordeste e Sudeste. Segundo a Marinha do Brasil, foram retirados da costa brasileira mais de 5.000 toneladas de petróleo cru.

“Escolhemos lançar o monitor próximo a essa data como forma de não esquecermos do maior desastre de vazamento de petróleo da história do nosso país, um dos maiores do mundo”, gerente de Oceanos e Clima do Instituto Arayara, Vinícius Nora.

O monitor Oceano e as primeiras análises feitas com a ferramenta estão disponíveis em www.monitoroceano.org.

 

 

Apresentação do Monitor Oceano à ANP

No mesmo dia do lançamento da plataforma ao público, a diretoria do Instituto Internacional Arayara teve uma reunião com o presidente da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Ricardo Saboia. A reunião teve como objetivo principal discorrer sobre os planos de redução de emissões do setor de óleo e gás. Na ocasião, o Monitor Oceano foi apresentado formalmente à Agência, como uma contribuição da sociedade civil para uma gestão ambiental mais responsável, reduzir os danos ao meio ambiente e acelerar a transição energética. Os diretoras da Arayara também inquiriram a Agência sobre a investigação da autoria do vazamento de petróleo em 2019.

“Queremos reverter os impactos desse avanço exploratório do petróleo e gás na costa marítima brasileira, garantindo um futuro com qualidade de vida para comunidades, além da conservação ambiental. O Monitor Oceano é uma ferramenta inédita e de livre acesso, que contribuirá para tomada de grandes decisões e formulação de políticas públicas nesse sentido”, declara a diretora executiva do Instituto Arayara, Nicole Figueiredo.

Monitor Oceano

Criado com o objetivo de destacar as áreas marinhas mais sensíveis, contrastando-as com as zonas de exploração e produção da indústria petrolífera, o Monitor Oceano permite uma visualização clara dos impactos potenciais na costa brasileira. Além disso, desempenha um papel fundamental ao apoiar campanhas como #MarSemPetroleo, #SalveACostaAmazonica e #SalveNoronha, fortalecendo a luta por uma transição energética justa e sustentável.

Nora pontua que a Arayara baseia seu levantamento de dados dentro das salvaguardas ambientais previstas na legislação vigente e ressalta a importância da ferramenta. “O Monitor Oceano identificou uma série de sobreposições. Esses blocos, à medida que são estudados para leilão ou ofertados, tendem a enfrentar questionamentos e  ações de litigância sobre  sua implementação e licenciamentos. Um exemplo claro é o caso do Bloco 59 na Foz do Amazonas, que após 11 anos, ainda não tem o licenciamento devido à elevada sensibilidade da área”.

O biólogo explica que “esses blocos sinalizados pelo monitor com uma sobreposição de 20% em áreas prioritárias para a conservação dos ambientes coralíneos, por exemplo, devem ficar encalhados tanto para sua compra quanto para o licenciamento, caso venham a ser comprados”.

O Monitor Oceano foi criado pelo Instituto Internacional Arayara em parceria com o GT Clima e Oceano do Observatório do Clima, Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (CONFREM Brasil), Rede de Mulheres Pescadoras da Costa dos Corais, Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Painel Brasileiro para o Futuro do Oceano (PainelMar) e Instituto Linha D’água.

Oceanos sob alerta

Os oceanos são cruciais para a vida na Terra, regulando o clima, fornecendo oxigênio, absorvendo dióxido de carbono e sustentando uma vasta biodiversidade. Eles abrigam ecossistemas essenciais, como recifes de corais, manguezais e prados marinhos, vitais para inúmeras espécies e para a economia global, incluindo pesca e turismo.

O relatório “State of the Ocean Report” da Unesco indica que o aquecimento das águas do oceano duplicou nos últimos 20 anos, um fenômeno denominado “febre do oceano”. A queima de combustíveis fósseis é a principal causa. Estudos mostram que 70 a 90% dos corais do mundo podem ser extintos com um aumento de 1,5ºC na temperatura global. A perda desses habitats pode custar bilhões em contenção de danos.

Com o Monitor Oceano, a Arayara democratiza e facilita o acesso a informações confiáveis e atualizadas sobre os impactos da exploração de petróleo no oceano, promovendo transparência e fortalecendo a participação da sociedade civil nos processos decisórios. 

Descobertas e Riscos Revelados pelo Monitor Oceano

  • Impactos das Operações de Petróleo

A construção e operação de plataformas de petróleo podem causar danos físicos e derramamentos de óleo, devastando recifes de corais. Análises do Monitor Oceano mostram que 99 mil km² de ambientes coralíneos prioritários estão sobrepostos por áreas de exploração de petróleo e gás –  uma área que equivale aproximadamente ao tamanho do estado de Pernambuco (98,3 mil km²).

  • Plano de Ação Nacional para Conservação de Ambientes Coralíneos (PAN Corais)

O PAN Corais visa proteger e conservar ecossistemas coralíneos, mas enfrenta desafios significativos com a sobreposição das áreas de exploração. 63% das áreas do PAN Corais na Costa Sul e Sudeste, 24% na Região do Sistema de Recifes Amazônicos, e 14% na região da cadeia marinha ao redor da APA de Fernando de Noronha estão sobrepostas por atividades de exploração de petróleo.

  • Plano de Redução de Impactos das Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural sobre a Biodiversidade Marinha e Costeira (PRIM-PGMar)

O PRIM-PGMar é uma política pública importante, que orienta o licenciamento ambiental das atividades de petróleo e gás quanto ao seu impacto e medidas de mitigação, ranqueando ecorregiões marinhas quanto a sua compatibilidade com a conservação da biodiversidade. De acordo com o Monitor Oceano,  47% das áreas monitoradas pelo PRIM-PGMar sobrepostas a blocos de petróleo são de muito baixa ou baixa compatibilidade, comprometendo 300 mil km² de biodiversidade marinha.

Essa classificação dos cenários em “Muito Baixa Compatibilidade”, “Baixa Compatibilidade”, “Alta Compatibilidade” e “Muito Alta Compatibilidade” (ICMBio, 2023), significa que as áreas com “Muito Baixa Compatibilidade” possuem um Alto Custo ambiental, onde recomenda-se que essas áreas sejam livres de Exploração e Produção de Petróleo de Gás Natural (EPP&G) e as de “Baixa Compatibilidade” também são de alto custo ambiental, mas são áreas que apresentam um claro conflito de interesses com a EPP&G.

  • Impacto na Pesca

Outro dado preocupante revelado pelo Monitor Oceano: 22% da pesca comercialmente conhecida no litoral brasileiro está sobreposta à indústria fóssil, são  1.271 áreas de exploração e produção de petróleo e gás natural, afetando diretamente 78% do esforço de pesca das espécies “abrotea, galo e merluza”; 66% do caranguejo-vermelho; 64% do “dourado, atuns e afins”, além de 63% do esforço do “bonito-listrado”, sobreposto por projetos da indústria fóssil. Para a balança comercial, os pescados em destaque movimentaram quase US$ 6 milhões no ano de 2023 em exportação (Comex Stat, 2024).

É importante ressaltar que a Economia da Pesca desempenha grande papel na balança comercial brasileira, movimentando toneladas de produtos para a subsistência, distribuição nacional e exportação para diversos países das Américas, Ásia e Europa. Dados do estudo Impactos do Avanço do Petróleo na Pesca da Costa Amazônica“, do Instituto Arayara, revelam que apenas no ano de 2022, somente as exportações de subprodutos da pesca como bexigas natatórias, totalizaram US$18,6 bilhões para Hong Kong. 

Isso mostra que o investimento de US$3,1 bilhões previsto pela indústria fóssil para a Margem Equatorial nos próximos cinco anos – de acordo com o Plano Estratégico (2024-2028) – representa uma expressividade de mercado muito menor em relação à cadeia produtiva da pesca.

O futuro incerto da cidade gaúcha movida ao combustível mais poluente do mundo: ‘Não somos contra o planeta’

O futuro incerto da cidade gaúcha movida ao combustível mais poluente do mundo: ‘Não somos contra o planeta’

A economia e vida da pequena Candiota gira em torno das minas e das usinas movidas a carvão mineral, que são campeãs em emissões de gases do efeito estufa.

 

Por Leandro Prazeres, João da Mata

 

“Não somos más pessoas por não querer que fechem a usina e nem defendemos que o planeta se exploda. Não somos contra o planeta.”

É assim que a empresária e cozinheira uruguaio-brasileira Gil Melo, de 34 anos, defende o que parte da comunidade científica considera indefensável: o carvão mineral.

O carvão é o combustível fóssil que mais emite gases do efeito estufa, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), e apontado como um dos grandes vilões das mudanças climáticas, cujos efeitos foram associados às chuvas extremas que devastaram o Rio Grande do Sul há pouco meses.

Mas Gil Melo vive em Candiota, município gaúcho de 10,7 mil habitantes a quase 400 km de Porto Alegre. Seu restaurante, diz ela, é como o restante da cidade: gira em torno da economia do carvão.

 

“Cerca de 80% da nossa economia gira em torno do carvão mineral”, diz o prefeito da cidade, Luiz Carlos Folador (MDB), à BBC News Brasil.

 

Candiota abriga a maior mina de carvão mineral a céu aberto do Brasil, com reservas estimadas em 1 bilhão de toneladas. Também é lá que estão duas usinas termelétricas abastecidas pelo combustível fóssil.

Durante décadas, as reservas de Candiota foram motivo de orgulho e impulsionam a economia da cidade.

Segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), elas seriam suficientes para abastecer o Brasil por aproximadamente cem anos.

Mas o mundo, segundo cientistas, não pode suportar mais cem anos usando carvão mineral — e os moradores de Candiota parecem saber disso.

Nos últimos anos, a cidade vive um clima de incerteza por conta da pressão global pelo corte nas emissões dos gases do efeito estufa.

Relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) pedem reduções drásticas nas emissões de gases do efeito estufa.

Em maio de 2022, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, pediu que o mundo abandone seu “vício” em combustíveis fósseis, começando com o carvão mineral, se quiser limitar o aumento da temperatura global em 1,5ºC, em relação aos níveis pré-industriais, até 2100, estabelecida pelo Acordo de Paris.

O Brasil já se comprometeu a zerar até 2050 suas emissões líquidas, como é chamado o saldo entre o que é emitido e o que é reabsorvido pela natureza.

O temor em Candiota é de que a transição energética chegue à cidade antes de ela encontrar uma nova fonte de sobrevivência.

Nos últimos meses, esse temor ganhou um novo elemento depois que o Rio Grande do Sul foi atingido por enchentes que mataram mais de 170 pessoas e é considerado o maior desastre climático do Brasil.

Os moradores relatam terem medo de que a economia do carvão mineral vire uma espécie de “bode expiatório” da tragédia gaúcha e que isso acelere iniciativas para o declínio da atividade carbonífera na região.

A empresária Gil Melo diz reconhecer os perigos das mudanças climáticas, mas defende a manutenção da economia do carvão em Candiota: 'Nos apegamos ao que nós temos'. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

A empresária Gil Melo diz reconhecer os perigos das mudanças climáticas, mas defende a manutenção da economia do carvão em Candiota: ‘Nos apegamos ao que nós temos’. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

Riqueza que vem do carvão

 

A história de Candiota está intimamente ligada ao carvão mineral.

Ainda no Brasil imperial, a região era conhecida por suas reservas do minério que era extraído para movimentar antigas forjas. À época, a área fazia parte do município de Bagé.

A primeira usina termelétrica movida a carvão mineral na região foi instalada em 1961.

Atualmente, a cidade tem duas usinas em funcionamento: Candiota III e Pampa Sul.

A primeira pertence ao grupo Âmbar Energia, que faz parte da holding J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. A segunda pertence aos fundos de investimento Perfin e Starboard.

As duas usinas, assim como as duas minas em atividade, são as principais empregadoras da cidade.

Juntas, as duas usinas geram 695 MW, o equivalente a 0,3% da capacidade instalada de geração de energia elétrica do Brasil, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

A indústria do carvão ajudou Candiota a se transformar em um dos municípios mais economicamente prósperos do Rio Grande do Sul.

O Produto Interno Bruto (PIB) per capita — a soma de todas as riquezas geradas dividida pelo número de habitantes — de Candiota foi de R$ 282 mil em 2021, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Era o 20º maior do Brasil e o 3º do Rio Grande do Sul. O valor é mais do que seis vezes a média nacional, de R$ 42,2 mil.

Caminhão faz o transporte do carvão mineral que será utilizado por uma das usinas termelétricas instaladas em Candiota. Carvão é o combustível fóssil que mais emite CO₂. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

A estimativa é de que pelo menos 5 mil dos 10,7 mil habitantes tenham empregos diretos ou indiretos ligados à indústria do carvão.

Eles cresceram próximos aos canteiros de obras e às instalações das usinas e minas que funcionaram e ainda funcionam no município.

Pelo menos três vezes ao dia, ônibus levam centenas de trabalhadores de outras cidades a Candiota para atuarem nas minas e usinas da cidade.

A viagem é marcada por uma paisagem quase bucólica repleta de pequenas propriedades rurais típicas da região conhecida como Campanha Gaúcha.

Trata-se de um relevo em boa parte plano coberto por uma vegetação rasteira onde há algumas plantações e criação de gado e ovelhas.

Da estrada, é possível ver parreirais e algumas plantações de oliveiras — e também as chaminés de mais de 30 metros das duas usinas termelétricas.

Uma delas, a da usina Candiota III, chama atenção pelo seu formato, semelhante às de usinas nucleares.

A cidade é divida em três núcleos diferentes, alguns distantes quase 10 quilômetros um dos outros.

Em geral, as ruas desses núcleos são asfaltadas, as escolas municipais são bem equipadas, e há supermercados abastecidos para atender à população.

“Candiota é uma ilha em matéria de sustentação econômica”, celebra Hermelindo Ferreira, ex-presidente do Sindicato dos Mineiros de Candiota.

Vinhedos e, ao fundo, chaminé da usina termelétrica Pampa Sul, em Candiota. A usina foi vendida pela francesa Engie a dois fundos de investimento brasileiros. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

Vinhedos e, ao fundo, chaminé da usina termelétrica Pampa Sul, em Candiota. A usina foi vendida pela francesa Engie a dois fundos de investimento brasileiros. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

O outro lado da prosperidade

 

A prosperidade de Candiota, no entanto, vem acompanhada de controvérsia.

Um dos principais argumentos entre os moradores da cidade e de entidades que defendem a indústria de carvão é o de que o impacto ambiental gerado pela produção de energia elétrica a partir do mineral é pequeno considerando o total das emissões de gases do efeito estufa do Brasil.

Parte dos dados científicos a respeito aponta nessa direção.

O Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), mantido pela organização não-governamental Observatório do Clima (OC), estima que apenas 0,4% das emissões brutas do Brasil em 2022, conforme os dados mais recentes, tenham produzidas pela geração de energia elétrica a partir do carvão mineral.

Ainda segundo o SEEG, 74% das emissões brasileiras resultam de desmatamento e da atividade agropecuária.

Além disso, a eletricidade gerada com carvão representa apenas 1,2% da capacidade elétrica instalada no Brasil, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME).

Além das duas usinas no Rio Grande do Sul, também há térmicas a carvão no Paraná, Santa Catarina, Ceará e Maranhão.

Ainda de acordo com a EPE, 89% da matriz elétrica brasileira é composta de fontes renováveis como a energia hidrelétrica, eólica e solar.

“O Brasil já fez a sua transição energética”, diz o presidente da Associação Brasileira do Carbono Sustentável (ABCS), Fernando Luiz Zancan.

 

A entidade é a principal representante dos interesses de mineradoras e usinas termelétricas movidas a carvão mineral e, até março deste ano, se chamava Associação Brasileira do Carvão Mineral.

“Sei que as coisas são urgentes, mas não vamos resolver o problema acabando com 1,5% da nossa matriz energética. Isso não resolve o problema do Brasil, do Rio Grande do Sul e nem do mundo”, argumenta o sindicalista Hermelindo Ferreira.

Parte dos dados, no entanto, vai em outra direção.

De acordo com a EPE, a produção de eletricidade a carvão responde por 48,6% das emissões de gases do efeito estufa oriundos de toda a produção de eletricidade com fontes não-renováveis.

Perde para as emissões do gás natural (50,4%), sendo que a quantidade de energia produzida por usinas a gás natural no Brasil é 4,5 vezes maior que aquela gerada pelas usinas movidas a carvão.

Pesquisas indicam que a situação em Candiota é ainda mais grave.

Por dois anos consecutivos, relatórios do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) apontaram que as duas usinas termelétricas localizadas no município são as mais ineficientes e as que geram mais gases do efeito estufa por unidade de energia produzida em todo o Brasil.

“O carvão gera mais emissões, porque é preciso queimar uma grande quantidade para liberar a energia aprisionada, na comparação com, por exemplo, o gás natural”, explica à BBC News Brasil o analista de projetos do IEMA Felipe Barcellos.

 

“Mas além disso, as usinas de lá são um pouco antigas e usam um carvão que é mais pobre energeticamente. Por gigawatts-hora gerados, ou seja, por cada unidade de eletricidade, as emissões pelo carvão são as maiores possíveis. Elas são bem acima das que temos em outras tecnologias.”

Além disso, por conta das altas emissões geradas pelas duas usinas e por suas minas, Candiota aparece no ranking do SEEG como o 60º município brasileiro com a maior quantidade de emissões de gases do efeito estufa.

A posição chama atenção, porque o município, segundo o IBGE, é apenas o 2.868º mais populoso do Brasil.

Procurada, a Âmbar Energia, dona da usina Candiota III, não respondeu às perguntas enviadas pela BBC News Brasil.

Em nota, os controladores da usina Pampa Sul enviaram uma nota informando que o grupo estaria investindo R$ 150 milhões em “melhorias operacionais e no aumento da qualidade e eficiência da usina” o que “acabará por contribuir para redução significativa das emissões de gás carbônico equivalente”.

Rosáurea Castañeda Greco preside o Clube de Mães de Candiota e defende a manutenção das atividades carboníferas na cidade até que surja uma nova fonte de renda para a população. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

Rosáurea Castañeda Greco preside o Clube de Mães de Candiota e defende a manutenção das atividades carboníferas na cidade até que surja uma nova fonte de renda para a população. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

 

Ansiedade climática

 

Em 2017, um artigo publicado na revista da Associação Psiquiátrica Americana descreveu o termo “eco-ansiedade” ou “ansiedade climática” como um conjunto de sintomas caracterizado pelo medo das catástrofes que podem afetar o planeta por conta das mudanças climáticas.

Em Candiota, os moradores relatam um temor também relacionado ao clima, mas em direção diferente.

As pessoas com quem a BBC News Brasil conversou afirmam reconhecer a emergência da crise causada pelas mudanças climáticas.

Apesar disso, eles parecem temer que a busca por alternativas às mudanças climáticas leve ao fim da economia do carvão na região e “estoure” a bolha de prosperidade em que vivem.

“Há muita ansiedade nas pessoas com quem a gente convive aqui”, disse à BBC News Brasil a aposentada Rosaurea Castaneda Greco, de 61 anos.

 

Ela é presidente do Clube de Mães Mãe Cleci. Sua família, assim como a de milhares de moradores, é dependente da economia do carvão.

Rosaurea explica que o carvão é tão importante para a cidade que até a logomarca do clube de mães foi alterada para expressar essa relação umbilical.

“Nosso símbolo era um pôr-do-sol que traz a esperança de um mundo melhor para se viver. Há dois anos a gente acrescentou o carvão mineral, porque ele é o símbolo da nossa economia. Temos carvão para mais de 300 anos”, explica.

 

Vera Regina Azambuja Rijo, de 63 anos, também faz parte do Clube de Mães da cidade. Ela chegou a Candiota ainda criança, nos anos 1970, quando o pai foi trabalhar na construção de uma das usinas.

Seu marido se aposentou como funcionário de uma termelétrica, também movida a carvão. Agora, seus seis filhos e dois netos também trabalham para as usinas ou minas da cidade.

Ela diz que mal pode ouvir falar sobre um possível fim da economia do carvão. Sua fala fica embargada ao tocar no assunto.

“Eu me sinto muito triste porque, quando ouço isso, a primeira coisa que me vem à cabeça são os meus filhos e meus netos”, diz Vera Regina.

 

“Todos dependem do carvão. Se acabaram com o carvão, o que vai acontecer com a gente?”

Não há no horizonte nenhum plano ou anúncio de que o governo brasileiro vá encerrar exploração de carvão mineral ou uso de usinas térmicas movidas a este combustível.

Mas, nos últimos anos, sinais emitidos pelo mercado, ambientalistas e pelo mundo político deixaram os moradores da cidade preocupados.

Os primeiros movimentos foram das antigas proprietárias das termelétricas da cidade.

A francesa Engie e a estatal Eletrobras venderam as unidades nos últimos cinco anos como parte de um esforço para “limpar” ou “descarbonizar” seus portfólios de negócios.

Fora do Rio Grande do Sul, o grupo Copel anunciou que paralisaria as atividades de uma usina termelétrica movida a carvão que opera no Paraná pelo mesmo motivo, indicando que alguns atores do mercado de energia já se movimentaram para abdicar desse tipo de fonte de energia.

A preocupação mais imediata em Candiota é com relação ao fim dos contratos de fornecimento de energia da usina Candiota III, previsto para dezembro deste ano.

Sem contrato, a usina terá de paralisar suas atividades. Isso afetaria não apenas os trabalhadores da instalação, mas da mina que abastece suas caldeiras, gerando um efeito dominó na cidade.

A outra preocupação é com relação ao recuo de parte da bancada gaúcha no Congresso em relação a um projeto de lei que previa a manutenção de contratos para as termelétricas de Candiota até 2043, a exemplo do que está previsto para as usinas de Santa Catarina.

O recuo aconteceu justamente após as enchentes que afetaram o Estado neste ano.

“Vimos algumas manifestações dizendo que o problema que tivemos no Rio Grande do Sul foi porque a gente queima carvão em Candiota. Não dá pra conectar as coisas neste sentido”, diz o sindicalista Hermelindo Ferreira.

 

O prefeito Luiz Carlos Folador afirma estar apreensivo tanto com o fim dos contratos de Candiota III quanto com possível repercussão política das enchentes.

“Tanto é que estamos em contato com as autoridades em Brasília para evitar que isso aconteça. Não se pode tomar uma medida de curto, médio e longo prazos por conta de um fenômeno climático”, diz o prefeito.

Procurada, a Âmbar Energia não respondeu aos questionamentos sobre o futuro das suas atividades em Candiota.

Ruas do comércio de Candiota. Segundo a prefeitura do município, 80% da economia local gira em torno das minas e das usinas movidas a carvão mineral da cidade. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

Ruas do comércio de Candiota. Segundo a prefeitura do município, 80% da economia local gira em torno das minas e das usinas movidas a carvão mineral da cidade. — Foto: João da Mata / BBC News Brasil

 

Carvão: queimar ou não queimar?

 

Enquanto a comunidade científica pede o fim o mais rápido possível do uso do carvão mineral, Fernando Luiz Zancan, da ABCS, pede tempo.

“O Brasil firmou um compromisso de ter emissões zero em 2050. Então, nosso prazo é 2050”, diz Zancan à BBC News Brasil.

 

Ele afirma que o Brasil ainda não estaria preparado para abrir mão da geração de eletricidade movida a carvão mineral.

Por um lado, diz ele, isso colocaria em risco a segurança do sistema elétrico brasileiro, porque usinas hidrelétricas, eólicas e solares dependem de fatores climáticos.

As principais usinas brasileiras são interligadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Isso permite que energia produzida em uma determinada região possa ser distribuída para outras, evitando sobrecargas.

Algumas termelétricas operam como uma espécie de “usina de reserva” para momentos em que as hidrelétricas enfrentam escassez de água.

“Temos que diversificar as fontes para dar segurança ao sistema. Hidrelétrica, solar e eólica não fornecem isso”, defende Zancan.

 

“Quando houve um apagão de agosto do ano passado, a região Sul ficou 15 minutos sem energia e o Nordeste ficou seis horas. Isso aconteceu porque, no Sul, você tem usinas que giram em alta velocidade e puderam ser acionadas para equilibrar o sistema.”

Por outro lado, ele afirma que o fim abrupto da utilização do carvão mineral geraria um grande impacto social nas regiões que dependem dessa economia, especialmente após a tragédia que afetou o Rio Grande do Sul neste ano.

“Se não houver recontratação das usinas, vai acabar o setor. O patrimônio mineral nunca foi tão importante como agora, após as enchentes. O Rio Grande do Sul vai ter que olhar para o patrimônio mineral que ele tem para se reerguer”, diz.

 

Segundo Zancan, o problema das mudanças climáticas não seria a queima do carvão, mas a liberação dos gases do efeito estufa para a atmosfera.

“A questão não é acabar com o carvão. É acabar com sua emissão. Para isso, precisamos reinventar a indústria, e é isso que a gente está promovendo”, diz.

Ele defende um conjunto de soluções que passa por duas ideias em geral. A primeira é utilizar reações químicas para capturar as emissões de CO₂ da queima do carvão evitando que elas cheguem à atmosfera.

Segundo Zancan, essa tecnologia já existe desde os anos 1930 e vem sendo aperfeiçoada.

A segunda passaria pela reinserção dos gases liberados pelo carvão mineral no solo.

Para Juliano Araújo, diretor do Instituto Arayara, organização que atua na área de desenvolvimento sustentável, os argumentos de Zancan não fazem sentido ambientalmente.

“Não existe carbono sustentável. As usinas a carvão representam 1,5% da matriz elétrica nacional e isso pode ser facilmente substituído por outras fontes energéticas muito mais baratas e mais seguras”, diz Araújo.

 

Ele também refuta o argumento de que as usinas termelétricas a carvão mineral podem ser uma solução para momentos de escassez hídrica.

“Essas usinas são grandes consumidoras de água, uma vez que precisam dela para gerar vapor. Ou seja, nos momentos de crise hídrica, essas termelétricas competem por água potável porque elas drenam esse recurso das bacias hidrográficas onde estão localizadas”, afirma.

Para Araújo, do ponto de vista econômico, as usinas também não se justificariam.

“Se considerarmos as 12 mil pessoas que trabalham direta ou indiretamente na região de Candiota em função do carvão mineral e pegarmos tudo o que se pagou em subsídios para a energia elétrica produzida lá, daria para aposentar todos esses trabalhadores e ainda sobraria recursos para os municípios”, diz.

 

Felipe Barcellos, do IEMA, contesta a ideia de que o Brasil precisaria da energia a carvão para ter segurança energética.

“Quando olhamos para o Brasil como um todo, não se justifica [usar o carvão]. A porcentagem de geração via usinas a carvão é muito baixa, e já temos outras alternativas que podem suprir e dar essa diversificação energética que o Brasil precisa”, afirma.

De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 2018 a abril de 2024, foram destinados R$ 5,53 bilhões em subsídios para a geração de eletricidade por meio de carvão mineral e óleo diesel. Na plataforma de dados da agência, não é possível separar as duas categorias.

Questionado sobre a necessidade de manter usinas a carvão mineral na matriz elétrica brasileira, o ONS, disse, por meio de nota que o acionamento das usinas térmicas é feito por “diversos fatores” e que a decisão é tomada por meio de “modelos matemáticos de otimização energética”.

O ONS disse ainda que a “energia térmica é fundamental na segurança da operação regular do sistema, além de uma garantia de suprimento energético em períodos de carga mais elevada e/ou escassez de geração pelas demais fontes”.

Indagado sobre os subsídios pagos ao setor carbonífero, o MME afirmou que, conforme a legislação, a previsão é que eles sejam pagos até 2027.

Futuro incerto

 

Em meio à indefinição sobre o futuro de Candiota, os moradores parecem ter chegado a uma conclusão.

“Acho que a cidade ficou dependente demais do carvão”, diz Rosaurea Castañeda Greco, do Clube de Mães de Candiota.

 

“A gente fica com medo de que se não tiver uma transição justa, termine toda a atividade nas usinas e nas minas e acabem os empregos que restam.”

O prefeito da cidade minimiza a dependência da cidade em relação ao carvão.

“Estamos trabalhando há muito tempo na transição energética justa, buscando diversificação. Temos a chegada da vitivinicultura (vinhos), o plantio de olivais, a produção de hortaliças e de outras alternativas que possam gerar novos empregos”, afirma Folador.

Ele diz que a cidade também está buscando alternativas em outras fontes de energia.

“Não é que sejamos dependentes [do carvão]. Mas é uma riqueza que a gente tem e temos que extraí-la com sustentabilidade”, diz Folador.

 

“Nosso município está migrando para ter um parque de energia fotovoltaica (solar) de 75 MW. Estamos migrando gradativamente para que a gente possa melhorar.”

O sindicalista Hermelindo Ferreira critica os que são contrários à indústria do carvão na região.

“Quem defende o fim do carvão não apresenta proposta. Quando você pergunta qual é a alternativa para quem trabalha e se sustenta com o carvão, a gente pergunta: ‘É botar a mochila nas costas e ir embora para outro lugar?'”, indaga.

A empresária Gil Melo resume, com apreensão, o sentimento da cidade que escolheu para chamar de casa.

“Não somos contra o planeta e nem a favor do aquecimento global. O carvão é o que temos hoje, e nos apegamos ao que temos.”

 

Fonte: G1

 

Racismo ambiental: O lado perverso dos desastres naturais para populações vulnerabilizadas

Racismo ambiental: O lado perverso dos desastres naturais para populações vulnerabilizadas

Racismo ambiental. O termo, ainda controverso, é cada dia mais utilizado desde que os últimos eventos ambientais vêm acometendo as cidades brasileiras e, em especial, no sul do país.

A questão esbarra no nível de precariedade em que a maioria das pessoas atingidas pelas catástrofes viviam – em pleno Brasil do século 21.

Para muitos dos atingidos, essa não foi a primeira e muito provavelmente não será a última tragédia que os atingirá sem aviso prévio. E, em grande medida, todos têm ciência disso. A história e os prognósticos confirmam.

A grande falácia dita aos quatro cantos por diferentes atores sociais é que a tragédia não escolhe raça e classe porque a classe média também foi atingida – inclusive, em áreas consideradas privilegiadas. No entanto, a proporção da devastação atinge em cheio a população preta e pobre das cidades e isso tem nome: racismo ambiental. 

O racismo ambiental agrava as consequências sobre as populações negras, tradicionais e socialmente vulnerabilizadas, já que, por exemplo, viver em uma casa de madeira fina, sem estrutura, sem planejamento de engenharia e com telhados de zinco expõe de forma brutal essas pessoas que, por estarem vivendo em condições já precarizadas, ficam mais suscetíveis a todo tipo de violação de direitos, assim como quem habita locais em áreas fragilmente aterradas, beira de rio, encostas e áreas de risco que, de modo geral sofre cotidianamente com essa exposição. 

A conclusão é visível já que se o terreno não é seguro e a estrutura construída sobre ele também não é, o risco é maior.

Outra questão é a exposição a doenças em larga escala pela ausência de um sistema de saneamento e atendimento escasso por conta do inchaço do Sistema de Saúde Pública. Temos, portanto, pessoas mais vulneráveis a condições extremas nas situações de emergências climáticas, quando o direito à vida e a capacidade de se garantir a integridade física em uma situação de inundação fica ainda mais difícil. 

O Instituto Arayara vem alertando sobre os riscos de eventos como estes serem cada vez mais frequentes, como também realizando estudos que apontam para soluções para uma transição energética justa e que leva em consideração os direitos humanos, e empoderando comunidades com educação ambiental e soluções de geração de energia limpa e acessível para as pessoas, como por exemplo a instalação de painéis solares nas comunidades –  que poluiria menos e tornaria mais barata a energia consumida por essas populações.

As soluções devem também ser preventivas, tornando as cidades mais resilientes e mais capazes financeira e socialmente, já que as populações se encontram em condições sobremaneira dificultadas por um misto de falta de informação, direcionamento e assistência insuficientes, aumentando substancialmente a tragédia e os impactos que ultrapassam a chuva em si.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos anos 2000, mais da metade da população vivia sem rede de coleta de esgoto; em 2010, esse contingente populacional passou para 47,2% e, em 2022, para 37,5%, o que indica que a desigualdade social se vê desde o acesso ao saneamento básico – ou à falta dele. O racismo ambiental está exatamente no abandono, na exclusão, na marginalidade e na segregação de quem precisa viver na periferia, sem qualquer estrutura sólida e equipamentos urbanos. 

O fato que precisa ser visibilizado é que as casas que foram levadas ou totalmente destruídas são as mais frágeis, e grande parte das pessoas em acolhimento não contam com uma rede de apoio com estrutura e recursos financeiros. As consequências de décadas de desprezo ambiental cobraram a conta dos projetos de desenvolvimento, sobretudo imobiliários, que devastaram biomas em todo o país. Resultado: sofrimento coletivo, muito mais latente para pessoas ambientalmente expostas, sobretudo pretos, pobres, mulheres, indígenas e quilombolas.

Leia mais sobre o assunto. Acesse o artigo sobre Racismo Ambiental.

Artigo de Opinião | O Racismo Ambiental na crise climática do Rio Grande do Sul

Artigo de Opinião | O Racismo Ambiental na crise climática do Rio Grande do Sul

Por Paôla Manfredini Romão Bonfim, Heloisa Sandiego e George de Cássia Mendes.

No decorrer da história brasileira, áreas como ambiental, humana, social e o espaço de manifestação cultural foram sistematicamente negligenciadas no desenvolvimento energético nacional. A exclusão não se restringe apenas ao setor de energia, mas reflete as diretrizes predominantes que moldaram o crescimento e desenvolvimento do país.

Diante desse contexto, precisamos falar do caso das inundações no Rio Grande do Sul. 

O estado enfrenta uma série de desafios decorrentes das mudanças climáticas, que afetam diretamente as comunidades tradicionais e aquelas mais vulneráveis, como os assentamentos rurais ou favelas urbanas.

São inúmeras as famílias quilombolas, as economicamente vulneráveis ou de minorias políticas enfrentando problemas de comunicação parcial ou inexistente, sem acesso a alimentos, água e energia. A extensão das áreas afetadas e a profundidade dos impactos evidenciam a urgência da assistência emergencial, mas enaltece a necessidade de abordar questões estruturais subjacentes, como o racismo ambiental e a ausência de medidas preventivas na proteção dessas pessoas, historicamente menosprezadas.

IMPACTOS ÀS COMUNIDADES VULNERÁVEIS DO RS

Considerando que mais de 93% do território estadual sofre com as recentes inundações, um levantamento estatístico evidencia a presença de 27 territórios quilombolas, 199 assentamentos e 223 favelas atingidas em diferentes níveis.

Mapa 1: Cidades afetadas pelas inundações com indicação dos Territórios Quilombolas, Assentamentos, Favelas e Comunidades Urbanas.

No início das enchentes, a notícia vinculada aos territórios quilombolas dada CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) reportava que cerca de 850 famílias haviam sido diretamente afetadas e outras 1.300 indiretamente

Hoje, os dados revelam que todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram impactadas pelas chuvas e enchentes que assolam o estado e em torno de 15 quilombos estão totalmente isolados pela ação das chuvas no estado. Essas famílias estão sem acesso a alimentos, água e energia e vias de acesso severamente comprometidas ou inexistentes. A falta de comunicação também prejudica a solicitação de ajuda e a coordenação dos esforços de socorro.

É o que acontece no Território Quilombola Areal Luiz Guaranha, Quilombo dos Alpes, Família Silva e Família Fidelix – todos em Porto Alegre; e no Território Chácara das Rosas, em Canoas; e Rincão dos Negros, em Rio Pardo; e o Quilombo Vila do Salgueiro, no município General Câmara. 

Neste cenário, é fundamental ressaltar que os efeitos da devastação ambiental têm historicamente atingido predominantemente as comunidades periféricas, em particular a população negra, em virtude do racismo estrutural enraizado na sociedade brasileira.

RACISMO AMBIENTAL

O racismo ambiental, e por conseguinte também climático, decorrente da degradação ambiental imposta pela lógica mercadológica e capitalista de exploração, e a subsequente exposição dessas populações ao risco de desastres, incide com maior frequência nesses espaços, onde se encontram as pessoas mais vulneráveis, seja por questões de renda, educação, cor, gênero ou raça. 

Segundo o professor americano Robert Bullard (2002), o racismo ambiental

se refere a políticas, práticas ou diretrizes ambientais que afetam diferentemente ou de forma desvantajosa (seja intencionalmente ou não) indivíduos, grupos ou comunidades com base na cor ou raça, podendo ser reforçadas por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares.

Nessa perspectiva, é preciso ampliar a abordagem do conceito de Racismo Ambiental também para incluir os povos indígenas, que há muito tempo têm enfrentado restrições em seu direito à terra, com invasões flagrantes em seus territórios demarcados, resultando em uma série de violações, traduzidos em conflitos e impactos ambientais em virtude da implantação de empreendimentos predatórios.

Aqui, também importa mencionar outra terminologia relacionada à temática socioambiental, o chamado “ecologismo dos pobres”. Trata-se de uma corrente cuja “ética nasce de uma demanda por justiça social contemporânea entre os humanos”. Seu maior referencial é o catalão Joan Martínez Alier (2018), que afirma: 

Sob a bandeira da luta contra o “racismo ambiental” (termo introduzido pela primeira vez pelo reverendo Benjamin Chavis), segmentos de baixa renda, membros da classe trabalhadora e grupos de pessoas de cor fundaram o movimento pela justiça ambiental, conectando os problemas ecológicos com a iniquidade racial e de gênero e também com a pobreza.

Destacamos então, que a ocupação de áreas de risco, propensas a desastres, são especialmente efetuadas pelos mais pobres. No entanto, quando essas áreas são ocupadas pelas elites, são promovidas condições seguras de habitação por meio de investimentos públicos e privados em infraestrutura.

Para além de identificarmos os grupos alvo do racismo ambiental, se faz necessário reconhecermos também o contingente populacional afetado. No Brasil, a catástrofe climática afeta uma parcela significativa de municípios e, consequentemente, dessa população fragilizada. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), com base em estudos do IBGE de 2022, constatou que 821 municípios do país apresentam risco crítico de desastres naturais, com 2 milhões de brasileiros e brasileiras vivendo em áreas de urgente remoção, número que pode passar dos 3 milhões nos próximos anos.

Assim, o poder público está ciente das áreas de risco, bem como do fato de que nelas residem principalmente pessoas negras, mulheres, crianças e pobres, todos vulneráveis aos desastres. Essas situações de risco não surgem apenas devido à falta de planejamento, mas também são resultado da ausência ou inadequação de políticas públicas eficazes para garantir o direito à moradia digna para a população negra, para as politicamente minoritárias e periféricas.

São essas as pessoas que mais sofrem e estão sujeitas aos efeitos devastadores da crise climática, sendo desproporcionalmente afetadas pela devastação do meio ambiente, enquanto as estratégias de desenvolvimento governamentais frequentemente falham em abordar essas questões de maneira eficaz.

A REAÇÃO DAS AUTORIDADES

Para lidar com a catástrofe, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) está atuando para monitorar e prestar assistência às comunidades quilombolas, ciganas e de matriz africana. A ministra Anielle Franco destacou que o MIR está envolvido em uma ação coletiva e emergencial buscando levantar informações detalhadas sobre essas populações afetadas. O Ministério lançou uma nota oficial sobre a atuação da pasta, comunicando o envio de cestas básicas e outros itens de primeira necessidade, além de exaltar que o momento é de união, onde “não cabem desavenças políticas”.

Já o INCRA divulgou a criação de um grupo de trabalho para atender assentados e quilombolas afetados por enchentes, através da Portaria nº 481, de 6 de maio de 2024.

O GT tem como objetivo verificar os impactos e levantar os danos causados. Vai propor, ainda, medidas e ações articuladas que permitam ao Incra adotar iniciativas a fim de garantir a regularidade dos serviços prestados na região e preservar os direitos dos beneficiários das políticas públicas de competência da autarquia.

No que diz respeito aos assentamentos, um dos impactos mais graves ocorreu sobre as lavouras de arroz orgânico e a produção de hortigranjeiros. Apenas na Grande Porto Alegre são mais de 420 famílias assentadas que perderam suas casas, a produção e as vias de acesso para recebimento de qualquer tipo de auxílio. O propósito do INCRA é identificar e trabalhar nos projetos de recomposição das estradas e de recuperação das perdas produtivas por meio de créditos do governo federal.

Até o momento, a Fundação Palmares não se manifestou oficialmente sobre a calamidade no Rio Grande do Sul.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças climáticas são uma realidade incontestável, portanto, é fundamental garantir como política de Estado, a inclusão ativa das populações mais vulneráveis aos efeitos da crise em todas as etapas dos debates, na promoção de linhas de crédito e financiamento e implementação de medidas e estratégias de adaptação aos novos desafios ambientais.

Isso engloba ribeirinhos, povos indígenas e quilombolas, além de pescadores artesanais, extrativistas e outras comunidades tradicionais ou em situação de vulnerabilidade econômica, respeitando os princípios de democratização dos processos decisórios e promovendo a participação e a redistribuição do controle socioeconômico.

Esses objetivos podem ser alcançados por meio de programas de formação e de capacitação pensados e executados para atender às demandas particulares dessas comunidades. 

Além disso, é essencial estabelecer parcerias sólidas com a sociedade civil e conduzir processos de consultas efetivos, em que as opiniões e decisões sejam verdadeiramente consideradas pelo Estado e pelos empreendedores, durante todas as etapas do planejamento e execução de projetos energéticos.

Trata-se, portanto, não mais do que cumprir o que determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Contudo, é necessário que isso ocorra não apenas durante a etapa de licenciamento ambiental, evitando transferir essa responsabilidade exclusivamente para o setor privado; mas muito antes, no momento em que o Estado define as áreas para exploração energética, especialmente agora, quando toda a sociedade demanda pela implantação de energias renováveis o mais rapidamente possível.

Assim, é fundamental reconhecer que as políticas públicas devem ser desenvolvidas e executadas tendo como fundamento os direitos humanos e com ênfase no combate ao racismo ambiental, especialmente em direção a uma adaptação climática justa. Isso porque a crise climática também é social, com impactos diretos sobre as minorias políticas. A população negra já sofre os principais impactos da fome, violência e do preconceito, nos ambientes urbanos; enquanto os povos quilombolas, comunidades tradicionais e indígenas de área rural, são acometidas pelas violações de direitos pessoais e territoriais em atos de invasão e barbárie contínuos.

A histórica desigualdade territorial evidencia os vícios racistas do nosso país. Desta feita, os planos nacionais, setoriais e territoriais devem dar prioridade à promoção da equidade climática, visando reduzir as disparidades sociais já tão evidentes no Brasil.

O suporte para as comunidades tradicionais afetadas precisa começar do básico sim, na assistência emergencial para alimentação, moradia e condições de subsistência. Mas nunca estagnar nesse ponto. Quando a calamidade cessar, o apoio psicológico e os meios de retomada das expressões culturais precisam ser garantidos em ações de longa duração.

Assim, a questão se torna muito mais ampla do que meramente transitar para uma nova matriz energética – ainda que o ato seja imperativo, para dirimir os impactos das mudanças climáticas. Trata-se de ampliar o debate, considerando verdadeiramente os interesses e opiniões dos mais afetados pela crise presente, respeitando seus modos de vida, suas manifestações culturais e cosmovisões, bem como protegendo verdadeiramente as áreas sensíveis e de preservação ambiental que clamam por socorro nesses tempos sombrios.

Líder Quilombola Maria Bernadete Pacífico: Uma Vida de Luta e Inspiração Tragicamente Ceifada

Líder Quilombola Maria Bernadete Pacífico: Uma Vida de Luta e Inspiração Tragicamente Ceifada

A estimada liderança da comunidade quilombola, Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos de idade, foi brutalmente assassinada a tiros durante a noite do passado dia 17, na área metropolitana de Salvador. Ocorreu que indivíduos armados invadiram o terreiro de Candomblé que ela liderava, resultando nesse terrível crime.

A fatalidade foi prontamente reportada por residentes próximos que testemunharam o ato de invasão. Mãe Bernadete era notória por sua proteção e promoção da cultura das comunidades quilombolas. Além de desempenhar o papel de coordenadora nacional na Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), ela exercia também a posição de ialorixá, sendo uma eminente líder religiosa na comunidade quilombola Pitanga dos Palmares.

Seu papel como secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, no período de 2009 a 2016, na cidade de Simões Filho, onde localizava-se o terreiro, é também notável. Em 2017, em reconhecimento às suas contribuições, ela foi agraciada com o título de Cidadã Simõesfilhense pela Câmara de Vereadores.

À frente da comunidade quilombola de Pitanga dos Palmares, Mãe Bernadete desempenhava um papel vital na gestão de uma associação composta por mais de 120 agricultores, os quais cultivavam e comercializavam produtos como farinha para vatapá, bem como frutas e vegetais. Contudo, apesar da certificação obtida em 2004, o processo de titulação da comunidade, que abriga aproximadamente 290 famílias, ainda não havia sido concluído.

A trajetória da líder religiosa foi também marcada pela perda de seu filho, Flávio dos Santos, conhecido como Binho do Quilombo. Ela buscava por justiça após o assassinato do filho em 2017, ocorrido também nas proximidades do quilombo, perpetrado por indivíduos armados.

No mês de julho deste ano, Mãe Bernadete participou de um encontro na comunidade de Quingoma, em Salvador, com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber. Durante este encontro, ela corajosamente trouxe à tona ameaças e atos de violência enfrentados pela comunidade quilombola. Ela expressou profundas preocupações sobre o nível de negligência demonstrado pelas autoridades, particularmente quando se tratava da população negra e afrodescendente. Comovida pela situação, ela afirmou: “Acredito que quando chega ao ponto de morte… é porque a indignação já atingiu níveis insuportáveis. O descaso das autoridades… Especialmente quando se trata do povo negro, do povo preto. Para que você tenha uma ideia… até hoje, desconheço o desfecho do caso do assassinato do meu filho”.

A Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), por meio de uma declaração, também compartilhou seu profundo pesar pela perda da Mãe Bernadete. “Sua dedicação incansável na preservação da cultura, espiritualidade e história de sua comunidade será eternamente recordada por todos nós… Sentiremos profundamente a sua ausência. Seu espírito inspirador e suas palavras de orientação continuarão a nos guiar, assim como as futuras gerações”.