Na última quinta-feira, a audiência pública sobre o licenciamento da Mina do Cerro, em Cachoeira do Sul (RS), trouxe à tona uma série de questionamentos sobre os potenciais impactos ambientais e sociais deste projeto de mineração de carvão.
O processo administrativo, identificado pelo nº 22-0567/21-2, foi aberto junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luís Roessler (FEPAM-RS) e trata do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) da Copelmi Mineração Ltda., empresa que busca garantir a continuidade da extração de carvão para atender clientes estratégicos, como a Braskem e o setor termelétrico, conforme informado pelo empreendedor.
O Instituto Internacional Arayara, maior ONG de litigância ambiental e climática da América Latina, acompanhou a audiência e expressou uma série de preocupações sobre o projeto. “Destacamos a necessidade de uma avaliação mais rigorosa dos potenciais impactos ambientais e sociais da mina, principalmente devido à proximidade de comunidades indígenas e quilombolas que podem ser afetadas”, afirmou o diretor-presidente da Arayara, Juliano Bueno de Araújo.
A Mina do Cerro visa o abastecimento de carvão mineral ao Polo Petroquímico de Triunfo, onde o insumo ainda é utilizado como combustível. Dados do relatório de sustentabilidade de 2023 da Braskem indicam que aproximadamente 3% da energia consumida pela empresa no Brasil provém do carvão, utilizado exclusivamente nesse pólo petroquímico. Segundo Araújo, essa dependência do carvão representa um entrave para as metas de descarbonização da Braskem e contribui para o aumento das emissões de gases de efeito estufa, em um contexto no qual o Brasil se compromete a reduzir sua pegada de carbono.
Lacunas e omissões no EIA-RIMA
Durante a audiência pública, o Instituto Arayara observou omissões significativas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), especialmente quanto à proximidade e aos potenciais impactos sobre as comunidades tradicionais da região e que não foram destacados na Audiência Pública quando apresentados os impactos socioambientais do empreendimento. Embora o estudo reconheça a presença das aldeias indígenas Tekoa Guabiju e Tekoa Araxaty (a 11 km e 22 km do empreendimento, respectivamente) e da Terra Indígena Irapuá (a cerca de 11 km), o documento não detalha os riscos e as possíveis consequências para essas populações. O mesmo se aplica a comunidades quilombolas, como Cambará e São Sebastião/Rincão do Irapuanzinho, localizadas a cerca de 15,5 km e 16 km da área de mineração.
Ainda que essas áreas estejam além dos 8 km de distância exigidos pela Portaria Interministerial nº 60/2015 para a obrigatoriedade de medidas de proteção, a ARAYARA considera que os possíveis impactos culturais e ambientais sobre as comunidades próximas tornam a questão relevante e preocupante e que a COPELMI Mineração e a empresa de consultoria ambiental deveria ter entrevistado estas comunidades e colocado estas informações no EIA-Rima. “Projetos desse porte precisam considerar todos os efeitos indiretos sobre o entorno, especialmente em se tratando de territórios tradicionais e ecossistemas frágeis”, argumentou Araújo.
Ação Formal e Pedidos de Esclarecimentos
Em resposta às lacunas identificadas, o Instituto Internacional Arayara se compromete a formalizar, até o dia 7 de novembro, um ofício com questionamentos detalhados à FEPAM-RS, por meio do email informado para questionamentos nesta etapa de licenciamento ambiental prévio. A instituição solicitará esclarecimentos sobre os riscos potenciais à saúde e à qualidade de vida das comunidades locais, além de informações detalhadas sobre as medidas de mitigação de poluentes previstas pelo projeto.
Confira a transmissão da audiência pública:
“A Mina do Cerro representa um passo para trás nas políticas de descarbonização e na luta contra a crise climática. Precisamos de garantias de que os impactos sejam minimizados e de que as comunidades envolvidas sejam ouvidas”, destacou Araújo.
A Arayara também chama atenção para a análise de precipitação do EIA-RIMA, que inclui apenas uma série histórica de 1961 a 2018, ignorando os eventos climáticos extremos de 2023 e 2024 em Cachoeira do Sul, quando decretos de calamidade pública foram emitidos. A ausência desses dados recentes compromete a precisão da avaliação dos impactos climáticos na área do empreendimento, especialmente para interpretar adequadamente os riscos de precipitação e inundações na região da mina de carvão.
Além disso, vale destacar que já se passaram mais de seis meses desde a maior tragédia climática que atingiu o estado do Rio Grande do Sul. De acordo com a Defesa Civil Estadual, o evento afetou mais de 2,3 milhões de pessoas, com chuvas superiores a 800 milímetros em mais de 60% do estado. Como resultado, mais de 55.813 pessoas foram abrigadas, 581.638 ficaram desalojadas, 806 ficaram feridas, e houve 42 desaparecidos e 172 óbitos. A gravidade desses números evidencia a necessidade de uma análise climática atualizada e abrangente no licenciamento ambiental do projeto.
Responsabilidade Ambiental e Social
Em tempos de crise climática, a ARAYARA enfatiza que a transição para fontes de energia menos poluentes é essencial, e que a pressão por um desenvolvimento sustentável deve pautar a atuação das empresas e das autoridades licenciadoras.
“Essa manifestação pública reforça a importância de garantir que o desenvolvimento econômico esteja alinhado com a sustentabilidade e o respeito aos direitos das comunidades tradicionais”, concluiu Araújo.
O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), imbuído de sua competência legal para “editar atos normativos internos”, emitiu, no dia 22/4, a Instrução Normativa nº 9/2020, que altera profundamente o regime de emissão do documento chamado “Declaração de Reconhecimento de Limites”. Até então, o documento tinha a finalidade de fornecer, aos proprietários de imóveis rurais, a mera certificação de que foram respeitados os limites com os imóveis vizinhos onde vivem indígenas. Agora, a Funai certificará que os limites de imóveis e até mesmo de posses (ocupações sem escritura pública) não incidem apenas no caso de Terras Indígenas (TIs) homologadas por decreto do presidente da República.
O grande problema é que, de acordo com dados da própria Funai, existem hoje 237 processos de demarcação de TIs pendentes de homologação por decreto, a última fase de um complexo processo que passa por estudos técnicos, aprovação do presidente da Funai, contestação administrativa e análise e aprovação pelo Ministro da Justiça. Só então, o processo segue para a homologação presidencial. Esse trâmite é longo e demorado. Há processos iniciados em 1982 que ainda não foram finalizados e casos em que o processo de demarcação até hoje não foi aberto.
Além disso, a IN determina que apenas as terras homologadas deverão constar no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef). O Sigef é uma base de dados eletrônica do Incra que reúne as informações oficiais sobre os limites dos imóveis rurais. Quando os imóveis não estão sobrepostos a áreas privadas, unidades de conservação ou TIs, a terra é cadastrada no sistema e o interessado obtém uma certidão, de forma eletrônica e automática. Sem esse documento, não é possível desmembrar, transferir, comercializar ou dar a terra em garantia para conseguir empréstimos bancários.
Em março do ano passado, o Incra chegou a enviar minuta de IN para a Funai, sugerindo que o órgão indigenista retirasse as terras indígenas não homologadas do Sigef. Na época, o então presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro de Freitas, foi contra e aprovou uma informação técnica e um parecer que alertavam sobre a grave insegurança jurídica da medida. Quatro dias depois, ele foi demitido.
De acordo com o parecer aprovado por Freitas, “não parece consistente que mediante a edição de norma administrativa de contorno evidentemente mais restritivo e de alcance administrativo limitado, se pretenda modificar toda a prática administrativa ora observada no segmento e que, destaque-se, decorre de lei, com evidentes prejuízos aos interesses dos povos indígenas que porventura não lograram alcançar a fase administrativa de homologação e regularização de seus territórios, e cuja ocupação, por mais tradicional que se apresente, haveria de ser magicamente desconsiderada pelo Incra para o efeito de análise das possíveis superposições faticamente existentes nas áreas sob análise.”
Em consequência da IN nº 9/2020, mais de 237 terras indígenas pendentes de homologação, poderão ser vendidas, loteadas, desmembradas e invadidas. Os invasores poderão obter o certificado expedido pela Funai onde constará que a área invadida não é TI. Depois, poderá pedir a legalização da invasão no Incra, o que se dá por intermédio de cadastro autodeclaratório, já que as regras para isso foram afrouxadas pela Medida Provisória nº 910/2019, a “MP da grilagem”, em trâmite no Congresso Nacional.
Pretensos ocupantes também poderão licenciar qualquer tipo de obra ou atividade, como, por exemplo, desmatamento e venda de madeira. Tudo isso, à revelia e sem a participação dos índios, já que essas terras não estarão no Sigef e o interessado terá um documento expedido pela Funai garantindo que os limites de seu “imóvel” não está em TI homologada.
A gravidade da IN nº 9/2020 é tamanha que a “Declaração de Reconhecimento de Limites da propriedade privada” poderá ser emitida até mesmo em TIs com a presença de índios isolados, já que algumas contam apenas com portaria de interdição da Funai, cuja finalidade é restringir o uso de terceiros e garantir o direito de não contato dos indígenas.
O que define uma TI, no entanto, não é a fase do processo de demarcação, já que se trata de procedimento administrativo declaratório, ou seja, não é o decreto de homologação ou qualquer outro ato que “cria” a área. O processo apenas confirma uma situação fática preexistente. O que define uma TI é a existência de índios, que fazem dela a base material para sua sobrevivência física e cultural.
O falecido ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Menezes Direito, responsável pela elaboração das condicionantes que nortearam o julgamento do famoso caso TI Raposa Serra do Sol, afirmou: “não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição.”
Além disso, o Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973) determina e o STF já reconheceu que os direitos dos índios sobre suas terras independem de demarcação. A IN, todavia, ignora tudo isso. Segundo texto com cunho discursivo estranhamente incluso como um dos artigos, “não cabe à FUNAI produzir documentos que restrinjam a posse de imóveis privados em face de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas”. Ora, o que não cabe à Funai é ignorar os direitos indígenas previstos na Constituição.
A Constituição garante aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras, rios e lagos nelas existentes. A Carta Magna não tergiversa sobre a fase do processo de demarcação. É cristalina em afirmar que compete à União demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens existentes nas terras indígenas. Também classifica como nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras. São justamente esses atos que a IN nº 9/2020 pretende autorizar. Ainda, pela Constituição, as terras indígenas são consideradas inalienáveis e indisponíveis.
O presidente da Funai, sob o subterfúgio de “editar atos normativos internos”, decidiu, unilateralmente, revogar as garantias fundamentais dos índios previstas na Constituição Federal para chancelar títulos, posses e invasões incidentes em terras indígenas. Com isso legitima a violência e incentiva conflitos que custam a vida dos índios. Se continuar nessa toada, a FUNAI será transformada ao mesmo tempo em subsede de cartório de registro de “imóveis” privados e funerária indígena.
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