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Nota de repúdio: Arayara se posiciona frente aos ataques sofridos por Guaranis Kaiowá (MS)

Nota de repúdio: Arayara se posiciona frente aos ataques sofridos por Guaranis Kaiowá (MS)

Na tarde do último domingo (14), fazendeiros armados atacaram uma comunidade Guarani Kaiowá em Douradina, no Mato Grosso do Sul. Segundo os indígenas, dezenas de caminhonetes com pistoleiros cercaram a área, localizada na Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, onde pelo menos dois indígenas foram baleados. O ataque ocorreu em represália à retomada de uma área invadida pelos latifúndios, dentro do território ancestral já oficialmente reconhecido, delimitado e identificado, mas com a sua homologação estagnada desde 2011.

Na segunda-feira (15), outro ataque foi realizado a cerca de 110 km do local daquele ocorrido no domingo. Os crimes se destacam pela similaridade, uma vez que a segunda ocorrência também sucedeu em território indígena com pendências demarcatórias (na TI Amambaipeguá I), contou com a mesma estratégia de ataque, e resultou em uma indígena ferida.

Em nota, a organização Aty Guasu e os conselheiros das comunidades Itay, Guyra Kamby’i, Gaaroa’ka e Tajasu Iguá, afirmaram que os fazendeiros prometem um massacre, o que também ocorreu em 2015. Os indígenas acionaram o Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul (DPGE-MS), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), órgãos de segurança pública do estado e organizações de direitos humanos.

Violações aos indígenas do Mato Grosso do Sul

Às vésperas desses ataques, a Cacique Valdelice Veron retornava de São Paulo, onde esteve acompanhando o processo contra os mandantes do assassinato de seu pai, o Cacique Marcos Veron, espancado e morto em uma retomada em 2003. Em uma mobilização, ocorrida neste ano, Valdelice relata que mais de 20 de seus familiares foram mortos na TI Taquara, no Mato Grosso do Sul, e aqueles que restaram, inclusive ela, seguem sendo perseguidos pelos fazendeiros.

As violações de direito que afligem a Cacique e sua família também recaem sobre todo o povo Guarani Kaiowá, cujo histórico repleto de violência desencadeou o genocídio que se perpetua e é explícito em crimes como os que ocorreram nesta semana. Os incessantes ataques e ameaças fazem com que os indígenas sigam em sua luta permanente, na qual a morte é uma constante.

Perseguições, violência e massacres abrangem quase a totalidade das Terras Indígenas do Brasil, deixando seus habitantes em situação de extrema vulnerabilidade. O caso dos Yanomami ficou mundialmente conhecido; no entanto, sua condição é comparável à dos povos do Mato Grosso do Sul. A situação se agrava pela invisibilidade dos povos desse estado, ocultando altas taxas de mortalidade por assassinato, suicídio e inanição.

O socorro clamado pelos indígenas é silenciado na região, onde tal violência já é naturalizada. Frente a diversos desses crimes, os órgãos públicos permanecem inertes ou aderem à versão dos opressores, resultando na impunidade que os legitima.

Marco Temporal e a invisibilidade de direitos 

A criminalidade também encontra respaldo na aprovação da Lei 14.701/2023, que ficou conhecida como Marco Temporal, a qual fere os direitos dos povos e a Constituição Federal brasileira.

Com isso, entende-se que a demarcação das Terras Indígenas é um fator determinante para mudar essa realidade, mas apenas isso não basta para garantir que os territórios sejam a base para a vida e cultura dos povos indígenas, como determina a Constituição Federal. Também se faz necessário o desenvolvimento de alternativas para vida digna e para a convivência pacífica entre indígenas e não indígenas, onde o agronegócio não se sobreponha às vidas humanas.

O Instituto Internacional ARAYARA se solidariza ao povo Guarani Kaiowá e se coloca ao lado dos indígenas, na guerra entre comunidades e indústrias. Ao mesmo tempo, reconhecemos a responsabilidade do Estado sobre essa violência, ao qual cabe a obrigação de tomar as devidas medidas para assegurar a proteção dos povos indígenas do Brasil.

Artigo de Opinião | A crise climática no RS e os impactos aos povos indígenas

Artigo de Opinião | A crise climática no RS e os impactos aos povos indígenas

Por Paôla Manfredini Romão Bonfim, Luíza Machado e George de Cássia Mendes.

Diante da catástrofe no Rio Grande do Sul, onde o estado enfrenta uma série de desafios decorrentes das mudanças climáticas, encontramos um cenário que afeta direta e tragicamente as comunidades mais vulneráveis, como é o caso dos povos indígenas.

Com um mapeamento que revela a presença de 52 terras indígenas (29 demarcadas e outras 23 ainda em fase de estudo) e uma inundação de mais 93% do território estadual, torna-se evidente a extensão dos impactos sobre os povos originários.

Aldeias completamente isoladas, com comunicação parcial ou inexistente, sem acesso a alimentos, água e energia. As áreas afetadas abrangem diversas regiões do estado, trazendo à tona a urgência da assistência emergencial para os povos indígenas, agora também refugiados climáticos.

Este cenário não só evidencia a vulnerabilidade das comunidades indígenas frente às mudanças climáticas, mas também a necessidade de respostas governamentais mais contundentes, além de sublinhar a importância de incorporar seus conhecimentos tradicionais na formulação de estratégias de adaptação e resiliência. 

IMPACTOS AOS POVOS ORIGINÁRIOS DO RS

Segundo dados da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) divulgados em 7 de maio de 2024, são 1.902 indígenas em 29 aldeias com comunicação parcial ou inexistente. Existem 4.870 indígenas de 43 aldeias residentes em áreas com ineficiente ou nenhum acesso. São 4.972 indígenas de 16 aldeias sofrendo com o impacto nos serviços de saúde do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena). Outros 3.700 indígenas de 32 aldeias com pouco ou nenhum acesso à energia elétrica. Mais 10.469 indígenas de 49 aldeias com acesso parcial ou nenhum a água potável. E ainda, 911 indígenas de 15 aldeias com necessidade imediata de evacuação.

Destaca-se a situação dos povos Guarani Mbya, Kaingang, Xokleng e Charrua, cujas casas foram destruídas, forçando-os a abandonar suas aldeias e buscar abrigo em locais temporários.

Nesse caso em específico, a intervenção humana ganha requintes de crueldade, dado que há notícias de que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), vinculado ao Governo Federal, demoliu o acampamento Guarani Pekuruty, em Eldorado do Sul (RS), como parte de um conflito territorial em prol da duplicação da BR-290. Durante a ação, foram destruídas habitações, a escola indígena e outras construções, enquanto a comunidade era evacuada para um abrigo temporário em uma escola do município.

Segundo informações do Coordenador da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), Kretan Kaingang, a Comissão de Terra Guarani entrou com uma Ação Civil Pública junto ao Ministério Público Federal e segue aguardando um retorno do órgão.

As áreas afetadas abrangem diferentes regiões do estado, incluindo Sul, Central, Serra, Litoral, Dos Vales e Metropolitana. A falta de comunicação prejudica a solicitação de ajuda e a coordenação dos esforços de socorro.

Mapa 1: Cidades afetadas pelas inundações com indicação das Terras Indígenas.

Mapa 1: Cidades afetadas pelas inundações com indicação das Terras Indígenas.

A RESPOSTA GOVERNAMENTAL

Para lidar com a catástrofe, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) enviou a Porto Alegre o secretário nacional de Direitos Territoriais Indígenas, Marcos Kaingang. O objetivo da incursão foi desenvolver ações articuladas, entre governo estadual e federal, de resgate e assistência aos povos indígenas, oferecendo abrigos provisórios e kits emergenciais. No entanto, o secretário reconhece que o apoio está muito aquém do que o contexto exige e que o número exato de indígenas afetados ainda é incerto. 

O que se sabe é que aldeias inteiras foram completamente inundadas e que existem diversas regiões isoladas que carecem de itens básicos de higiene, alimento, água potável, roupas e cobertores. É o que ocorre nas áreas do interior do estado, especialmente no norte, que também foram as mais duramente afetadas pelo desastre e que concentram o maior contingente populacional indígena. 

O MPI segue nas suas tentativas de articulação com a Força Aérea Brasileira (FAB) e com o Ministério da Defesa para organizar ações nessas regiões, além de solicitar ao governo federal um crédito extraordinário para esse fim.

A presidente da FUNAI, Joênia Wapichana, também foi para o sul e determinou que os indígenas afetados sejam incluídos nos planos de trabalho da Fundação. Joênia afirma que a FUNAI está trabalhando para garantir o acesso dos indígenas aos auxílios governamentais e ressalta a importância de se desenvolver políticas públicas específicas para as comunidades indígenas repararem os danos, considerando especificidades de contextos urbanos e rurais.

Entre as ações propostas em 14 de maio pelo MPI, estão inclusas a distribuição de cestas básicas quinzenais a 9 mil famílias indígenas; doações de água potável, agasalhos e kits de higiene feminina; e a construção de Plano de Trabalho do MPI com apoio emergencial para:

  • Reconstrução de casas e estradas de acesso;
  • Ações voltadas ao saneamento básico;
  • Recuperação de áreas de plantio;
  • Auxílio de bolsa emergencial para o setor cultural;
  • Ações no PAC Calamidade para os povos originários.

Desta feita, é reconhecida a mobilização dos setores indigenistas do país frente à tragédia no Rio Grande do Sul, mas também é evidente que o momento exige muito mais do que o governo vem oferecendo a essa temática, no contexto catastrófico e fora dele. Enquanto a FUNAI e o MPI totalizam dois representantes enviados, que se integraram aos trabalhos dos funcionários do sul, as Forças Armadas, Bombeiros e Defesa Civil contam com mais de 14 mil pessoas enviadas para atender toda a população, além de centenas de profissionais de outros setores, como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Força Nacional.

Sabe-se que a tragédia flagelou quase a totalidade do estado e que, para a sua reconstrução e reparação, o apoio desses diversos setores e dessas milhares de pessoas é fundamental. A questão é que esses setores têm capacidade, em termos de recursos humanos e financeiros, para prover tal suporte, mas o setor indigenista não, deixando os povos afetados sujeitos ao que outros, porventura, possam prover, sem foco às suas verdadeiras necessidades.

São as próprias organizações indígenas que estão lutando para cobrir o vácuo deixado pelo Estado, para atender as especificidades da sua realidade e que o contexto exige. Ainda de acordo com informações de Kretã Kaingang, a ArpinSul e a APIB entraram com uma ação junto a 6° Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (que trata da temática indígena), exigindo que o governo crie uma força tarefa para atender aos povos afetados.

No momento estão sendo realizadas articulações com a Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência da República, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social, FUNAI, Secretaria da Saúde Indígena (Sesai) e Defesa Civil.

O que se pretende, para além da ajuda efetiva no Rio Grande do Sul, é a construção de um protocolo de remoção ou de atendimento aos povos indígenas no caso de epidemias e catástrofes, inclusive com apoio à saúde mental e psicossocial, considerando as inúmeras pressões que esses povos já sofrem em seus territórios – como as indústrias da madeira, da mineração, do petróleo e gás, a atividade de grilagem, de posseiros e tantos outros que invadem as terras indígenas para exploração dos recursos naturais.

Mas, apesar dos esforços, segundo Kretã, a ajuda humanitária realmente efetiva para o auxílio dos povos indígenas afetados está vindo pela mobilização de uma “vakinha” organizada pela ArpinSul. As poucas comunidades que conseguiram ser evacuadas estão sendo atendidas com esses recursos.

No entanto, a realidade é que não se consegue chegar na grande maioria dos territórios afetados. Segundo o Relatório da FUNAI , atualizado no último dia 06 de maio, mais de 600 famílias ainda carecem de apoio, seja com alojamento, água, alimento, material de higiene, cobertores e roupas. O quadro se agrava uma vez que se sabe que esse número é subestimado. Com as comunicações cortadas pela falta de energia, e sem vias de acesso (salvo se for por helicóptero), ninguém consegue informar a realidade desses povos. Se conseguiram escapar, como estão de saúde, alimentação, se suas moradias foram destruídas – são todas perguntas sem respostas até o momento.

Ainda que com diferentes níveis de atuação, a resposta governamental se mostra insuficiente diante do cenário de terra arrasada no estado. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse novo contexto, em que as mudanças climáticas já são uma realidade, é crucial garantir, enquanto política de Estado, a participação efetiva dos indivíduos mais vulneráveis aos impactos da crise nos processos de discussão, financiamento e implementação de medidas e estratégias de adaptação aos novos parâmetros ambientais.

É preciso compreender que os povos indígenas são particularmente vulneráveis às mudanças climáticas devido à sua forte dependência e relação com o meio ambiente. Agora, eles se encontram na qualidade de refugiados climáticos, pois aqueles que já foram evacuados das zonas de inundação se deparam com um cenário de destruição dos seus meios de subsistência, moradias inabitáveis e ainda a quebra do vínculo cultural e espiritual com seu ecossistema local.

Apesar das imensas adversidades, o caminho ainda reside e resiste na incorporação dos conhecimentos desses povos ancestrais para uma adaptação climática eficiente. O reconhecimento e a valorização dessas práticas podem fornecer soluções sustentáveis e eficazes, auxiliando na recuperação e na mitigação dos impactos evidenciados.

Nesse sentido, sistemas tradicionais de manejo de água, agricultura de policultivo integrada a sistemas florestais, que aumentam a biodiversidade e a absorção da água pelo solo, o monitoramento do comportamento dos animais e padrões climáticos, o uso de materiais locais, o respeito ao meio ambiente e seus locais sagrados na conservação de recursos podem oferecer soluções longevas.

Para essas e tantas outras alternativas de sobrevivência nesses tempos extremos, a força, a sabedoria, a resiliência dos povos originários precisa ser ouvida. Mediante o crescente movimento entre os povos indígenas de reivindicação dos seus direitos territoriais, a fim de obter reconhecimento legal, a política pública precisa garantir a proteção e a autonomia na gestão dos verdadeiros guardiões das florestas, dos mangues, dos rios e dos mares.

Somente através de uma abordagem colaborativa e sensível às particularidades culturais indígenas é possível mitigar os impactos das mudanças climáticas trazendo benefícios para toda a sociedade.

Arayara e Arpinsul fomentam debate sobre combustíveis fósseis e os impactos às populações indígenas do Brasil no ATL 2024

Arayara e Arpinsul fomentam debate sobre combustíveis fósseis e os impactos às populações indígenas do Brasil no ATL 2024

O Acampamento Terra Livre deste ano acontece entre 22 e 26 de abril, sob o tema: “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”.

O evento é organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas sete organizações regionais de base, como a ArpinSul – parceira do Instituto Internacional Arayara.

A 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) acontece nesta semana, entre 22 e 26 de abril, na Fundação Nacional das Artes (Funarte) em Brasília. Cerca de 8 mil indígenas do Brasil são esperados no evento, a maior celebração do “Abril indígena”.

O tema deste ano, “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”, questiona a tese do Marco Temporal e enfatiza a luta pelas demarcações das terras indígenas. Na Fundação Nacional dos Indígenas (Funai) constam 736 Terras Indígenas registradas e cerca de 490 pedidos de análise.

ATL 2024 e os combustíveis fósseis

Em duas décadas de ATLs, o movimento indigenista no Brasil se organiza na capital federal para cobrar a demarcação de terras, a fiscalização das já demarcadas, além de reivindicar direitos civis, como o amplo acesso à saúde, à educação e à assistência social.

No #ATL2024, o Instituto Internacional Arayara participa de atividades promovidas nas tendas das organizações regionais que debatem o tema dos combustíveis fósseis e os impactos às populações indígenas do Brasil.

Em entrevista à ARAYARA.org, Kretã Kaigang, da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul), relembrou os impactos do último leilão de blocos de exploração de petróleo e gás promovido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP): “No ano passado, em dezembro, na Oferta Permanente, 5 terras indígenas foram afetadas no leilão da ANP que ofertou mais de 600 blocos de exploração”.

Kaigang aponta que outras terras indígenas seguem ameaçadas nesse processo: “40% das Terras Indígenas ainda estão ameaçadas por esses blocos. É importante que a gente comece a se preocupar, pois muitos dos povos ameaçados são povos isolados, e muitos desses territórios ainda não tem um processo demarcatório e assim ficam vulneráveis à exploração desse tipo”.

Os eventos deste ano vão desde mesas de debate e exibição de filmes até atos de manifestação cobrando políticas públicas. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no início do acampamento será divulgada uma carta com as reivindicações do movimento.

Confira a programação completa do Acampamento Terra Livre 2024 aqui.

Assista ao recado do Kretã Kaigang, da ArpinSul, sobre o ATL 2024:

Funai edita medida que permite ocupação e até venda de áreas em Terras Indígenas

Funai edita medida que permite ocupação e até venda de áreas em Terras Indígenas

O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), imbuído de sua competência legal para “editar atos normativos internos”, emitiu, no dia 22/4, a Instrução Normativa nº 9/2020, que altera profundamente o regime de emissão do documento chamado “Declaração de Reconhecimento de Limites”. Até então, o documento tinha a finalidade de fornecer, aos proprietários de imóveis rurais, a mera certificação de que foram respeitados os limites com os imóveis vizinhos onde vivem indígenas. Agora, a Funai certificará que os limites de imóveis e até mesmo de posses (ocupações sem escritura pública) não incidem apenas no caso de Terras Indígenas (TIs) homologadas por decreto do presidente da República.

O grande problema é que, de acordo com dados da própria Funai, existem hoje 237 processos de demarcação de TIs pendentes de homologação por decreto, a última fase de um complexo processo que passa por estudos técnicos, aprovação do presidente da Funai, contestação administrativa e análise e aprovação pelo Ministro da Justiça. Só então, o processo segue para a homologação presidencial. Esse trâmite é longo e demorado. Há processos iniciados em 1982 que ainda não foram finalizados e casos em que o processo de demarcação até hoje não foi aberto.

Além disso, a IN determina que apenas as terras homologadas deverão constar no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef). O Sigef é uma base de dados eletrônica do Incra que reúne as informações oficiais sobre os limites dos imóveis rurais. Quando os imóveis não estão sobrepostos a áreas privadas, unidades de conservação ou TIs, a terra é cadastrada no sistema e o interessado obtém uma certidão, de forma eletrônica e automática. Sem esse documento, não é possível desmembrar, transferir, comercializar ou dar a terra em garantia para conseguir empréstimos bancários.

Em março do ano passado, o Incra chegou a enviar minuta de IN para a Funai, sugerindo que o órgão indigenista retirasse as terras indígenas não homologadas do Sigef. Na época, o então presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro de Freitas, foi contra e aprovou uma informação técnica e um parecer que alertavam sobre a grave insegurança jurídica da medida. Quatro dias depois, ele foi demitido.

De acordo com o parecer aprovado por Freitas, “não parece consistente que mediante a edição de norma administrativa de contorno evidentemente mais restritivo e de alcance administrativo limitado, se pretenda modificar toda a prática administrativa ora observada no segmento e que, destaque-se, decorre de lei, com evidentes prejuízos aos interesses dos povos indígenas que porventura não lograram alcançar a fase administrativa de homologação e regularização de seus territórios, e cuja ocupação, por mais tradicional que se apresente, haveria de ser magicamente desconsiderada pelo Incra para o efeito de análise das possíveis superposições faticamente existentes nas áreas sob análise.”

Em consequência da IN nº 9/2020, mais de 237 terras indígenas pendentes de homologação, poderão ser vendidas, loteadas, desmembradas e invadidas. Os invasores poderão obter o certificado expedido pela Funai onde constará que a área invadida não é TI. Depois, poderá pedir a legalização da invasão no Incra, o que se dá por intermédio de cadastro autodeclaratório, já que as regras para isso foram afrouxadas pela Medida Provisória nº 910/2019, a “MP da grilagem”, em trâmite no Congresso Nacional.

Pretensos ocupantes também poderão licenciar qualquer tipo de obra ou atividade, como, por exemplo, desmatamento e venda de madeira. Tudo isso, à revelia e sem a participação dos índios, já que essas terras não estarão no Sigef e o interessado terá um documento expedido pela Funai garantindo que os limites de seu “imóvel” não está em TI homologada.

A gravidade da IN nº 9/2020 é tamanha que a “Declaração de Reconhecimento de Limites da propriedade privada” poderá ser emitida até mesmo em TIs com a presença de índios isolados, já que algumas contam apenas com portaria de interdição da Funai, cuja finalidade é restringir o uso de terceiros e garantir o direito de não contato dos indígenas.

O que define uma TI, no entanto, não é a fase do processo de demarcação, já que se trata de procedimento administrativo declaratório, ou seja, não é o decreto de homologação ou qualquer outro ato que “cria” a área. O processo apenas confirma uma situação fática preexistente. O que define uma TI é a existência de índios, que fazem dela a base material para sua sobrevivência física e cultural.

O falecido ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Menezes Direito, responsável pela elaboração das condicionantes que nortearam o julgamento do famoso caso TI Raposa Serra do Sol, afirmou: “não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição.”

Além disso, o Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973) determina e o STF já reconheceu que os direitos dos índios sobre suas terras independem de demarcação. A IN, todavia, ignora tudo isso. Segundo texto com cunho discursivo estranhamente incluso como um dos artigos, “não cabe à FUNAI produzir documentos que restrinjam a posse de imóveis privados em face de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas”. Ora, o que não cabe à Funai é ignorar os direitos indígenas previstos na Constituição.

A Constituição garante aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como a posse permanente e o usufruto exclusivo das terras, rios e lagos nelas existentes. A Carta Magna não tergiversa sobre a fase do processo de demarcação. É cristalina em afirmar que compete à União demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens existentes nas terras indígenas. Também classifica como nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras. São justamente esses atos que a IN nº 9/2020 pretende autorizar. Ainda, pela Constituição, as terras indígenas são consideradas inalienáveis e indisponíveis.

O presidente da Funai, sob o subterfúgio de “editar atos normativos internos”, decidiu, unilateralmente, revogar as garantias fundamentais dos índios previstas na Constituição Federal para chancelar títulos, posses e invasões incidentes em terras indígenas. Com isso legitima a violência e incentiva conflitos que custam a vida dos índios. Se continuar nessa toada, a FUNAI será transformada ao mesmo tempo em subsede de cartório de registro de “imóveis” privados e funerária indígena.

Fonte: Socioambiental

Foto: Desmatamento causado por invasão de grileiros no interior da Terra Indígena Cachoeira Seca (PA) | © Lilo Clareto / ISA

Funai atropela regimento e libera acesso a índios isolados por causa de coronavírus

Funai atropela regimento e libera acesso a índios isolados por causa de coronavírus

Decisão ignora o que está previsto no processo de contato com os povos isolados

Fundação Nacional do Índio  (Funai) atropelou o próprio estatuto e autorizou que suas coordenações regionais possam fazer contato direto com povos indígenas isolados na floresta, desde que entendam ser necessário, por causa da pandemia do coronavírus.

A decisão ignora frontalmente o que está previsto no processo de contato com os povos isolados. Por lei, é a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGiirc) que discute, estuda e decide sobre a necessidade ou não de contato com esses povos. São ações extremamente complexas, por envolver acesso a regiões remotas e, principalmente, por colocar em risco a saúde desses povos indígenas sem convivência com não índios.

A Funai tem hoje 11 frentes de proteção aos isolados em todo o País, que executam as políticas e decisões da coordenação-geral. Já no âmbito regional, há 39 coordenações.

A portaria publicada na terça pelo presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, afirma que esses povos seguirão sem contato, mas que esse comando “pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado e deve ser autorizada pela CR (coordenação regional)”. 

A portaria publicada pelo presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, determina que “ficam suspensas todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas”, mas adiciona que a esse comando “pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado e deve ser autorizada pela CR (coordenação regional) por ato”.

A portaria define ainda que o contato entre agentes da Funai, bem com a entrada de civis em terras indígenas, estão “restritas ao essencial de modo a prevenir a expansão da epidemia”.

Hoje, há 107 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal, área que abrange nove Estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. A maior presença de povos isolados do Brasil se dá no Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, onde já foram registradas 16 referências desses grupos. A população total da terra oscila entre 3,8 mil e 5,5 mil pessoas, sem incluir as estimativas da população de índios isolados. 

Procurada, a Funai não se manifestou sobre o assunto até a publicação desta reportagem. 

Fonte: Estadão