Rualdo Menegat fala sobre as contradições da mina Guaíba e os riscos impostos à população
Um dos mais reconhecidos geólogos do mundo, Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituto de Geociências da UFRGS, concedeu entrevista ao Observatório do Carvão e explicou por que a Mina Guaíba não pode sair do papel. Os argumentos do professor são irrefutáveis e precisam ser levados à população, pois são os moradores da região metropolitana de Porto Alegre os principais atingidos pelos males que a exploração do carvão mineral pode gerar. Confira a entrevista:
O Rio Grande do Sul precisa de uma mina de exploração de carvão?
No século XXI ninguém mais quer minas de carvão, ainda mais perto de casa. Trata-se de uma fonte de energia obsoleta e a mais agressiva ao meio ambiente. A Mina Guaíba, por exemplo, pretende se instalar no coração da Região Metropolitana de Porto Alegre, a 16 km do centro da capital, com potencial de impacto negativo à vida e ao patrimônio ambiental, material e cultural de 4,6 milhões de pessoas. Esse projeto oferece um risco tão grande a essa população que não valeria a pena implantá-lo, nem mesmo se o Rio Grande estivesse vivendo uma grave crise energética, que não é o caso. Uma mina de carvão tão próxima de um gigantesco aglomerado urbano e da água que o abastece pode causar sérios danos à saúde de seus habitantes. Então, é contraditório dizer que ela é necessária para fornecer energia à população, quando na verdade ela pode matar os consumidores dessa energia e degradar sua qualidade de vida. O Rio Grande do Sul tem vocação pioneira para inovar fontes de energia, como os parques eólicos. Então porque insistir em fontes de energia dos séculos XVIII e XIX?
Além disso, a exploração de carvão nunca trouxe riqueza para as regiões onde ela é realizada. Em qualquer lugar do mundo, essas minas trazem severos danos ambientais e empobrecem os habitantes locais. Quem quer visitar um lugar degradado pela mineração de carvão? Ninguém. Então, as minas de carvão afugentam as pessoas. Quando o ex-vice-presidente norte americano, Al Gore, visitou a região carbonífera dos Apalaches, nos Estados Unidos, ele disse que se um estrangeiro tivesse feito todo aquele estrago na paisagem, eles teriam que declarar guerra contra eles, tamanha a destruição do ambiente que essa mineração tem causado naquele país.
Porto Alegre e as demais cidades da região metropolitana foram ignoradas no EIA-RIMA da Copelmi. Estas cidades serão impactadas em caso de licenciamento da Mina Guaíba?
Há uma série de enormes contradições no EIA-Rima apresentado pelo minerador. É um documento que não se sustenta tecnicamente. O projeto pretende instalar uma Mina e lançar efluentes contaminados na água que abastece Porto Alegre, Guaíba, Eldorado do Sul e Canoas. O lançamento de efluentes acontecerá a tão somente 20 km dos pontos de captação de água. É lógico que haverá contaminação dessa água, ainda mais quando consideramos que o tempo de funcionamento dessa Mina é de pelo menos 23 anos. Além disso, a exploração de carvão produz muito pó, também com contaminantes, que será espalhado pelo vento sobre nossas cidades. Então é preciso reconhecer que haverá potencial impacto à vida da população da Região Metropolitana. Agora vejam o que propôs o Eia Rima: incluiu como área de influência indireta a região que se situa a 50 km a sul do local onde pretendem instalar a Mina. Essa região está a montante da mina, quer dizer as águas contaminadas da mina não escoarão para lá. Possíveis ventos, claro, poderão levar poeiras contaminadas, mas não água. Então como justificar tecnicamente que uma região distante 50 km da área da pretensa mina e situada a montante do escoamento da água seja considerada área de influência indireta (e de fato é), e a região de Porto Alegre situada a apenas 16 km a jusante do lançamento de efluentes não seja área de influência indireta?
Ora, então podemos perguntar: por que não querem discutir o assunto com a população da Região Metropolitana que justamente ficará com os maiores impactos negativos? Que passará a ser vista como região carbonífera para a qual turista nenhum vai querer visitá-la? Agora vejam que contraditório: os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul ficarão com os impostos, e os metropolitanos, com os prejuízos do impacto e ameaçados por enorme risco de ficarem com a água contaminada. Somente podemos concluir que a exclusão da Região Metropolitana é claramente uma manobra política grosseira, tecnicamente indefensável, própria de quem não quer enfrentar um debate técnico sério sobre o assunto.
Está mais do que evidente que a Mina Guaíba oferecerá severo risco ao abastecimento de água da Região Metropolitana. Para agravar, temos que considerar que Porto Alegre não tem, no momento, reservatórios de emergência caso venha acontecer um acidente industrial na água do Guaíba. Se isso por ventura venha acontecer – esperamos que nunca ocorra – a Capital poderá ficar sem água para abastecer sua população. É um brutal contrassenso colocar a Capital como refém desse empreendimento e sem ganhar nenhum centavo em troca. Isso significaria sitiar a Região Metropolitana.
Estão previstas, segundo a Copelmi, uma média de três explosões por dia na mina. É possível conter o pó (material particulado, que contém partículas muito finas, como as chamadas PM 2,5) dessas explosões? Para onde se deslocará essa poeira e qual seu impacto?
Quando analisamos os mapas da região, podemos mais claramente prever o percurso que faria a água contaminada para rios e aquíferos próximos à atividade de mineração. Diferente do percurso da água, a dispersão de partículas pelo vento pode se dar para todas as direções e alcançam longas distâncias. Veja o caso dos ventos que trouxeram material particulado das queimadas da Austrália para a atmosfera de Porto Alegre, ou das queimadas da Amazônia que obscureceram o céu de São Paulo. O Projeto da pretensa Mina Guaíba prevê a produção de 416 kg/h de material particulado que, ao longo de 23 anos de atividade, resultará em 30 mil toneladas de poeira. Impossível afirmar que esse pó não contaminará o céu das cidades da Região Metropolitana, podendo produzir danos à saúde de 4,6 milhões de habitantes.
O impacto desse pó é enorme. As residências dos bairros próximos ao superporto de Vitória, no Espírito Santo, conhecem muito bem o problema. Diariamente são contaminadas por pó preto que se origina do transporte de carvão dos navios para a área de estoque do porto. Os moradores desses bairros sofrem com aumento de doenças como asma bronquite entre outras. Se o transporte do carvão gera tamanha quantidade de pó, a ponto da sola dos pés ficarem escuras nas residências próximas, imagine ao lado de uma mina que produzirá 166 milhões de toneladas de carvão?
Agora veja, o material particulado possui vários tamanhos, entre os quais partículas muito finas, microscópicas, chamadas de PM 2,5, que ao serem inaladas podem entrar na corrente sanguínea. É uma contaminação que pode ocorrer sem porta de entrada, quer dizer, muito difícil de ser contida. Por isso, é melhor evitá-la.
Esses materiais particulados têm potencial cancerígeno? Quais são esses elementos?
Primeiramente devemos considerar que o carvão mineral não é a mesma coisa de carvão vegetal. Esse carvão que se utiliza nas churrasqueiras é proveniente da queima de galhos e troncos de árvores. O carvão mineral provém da decomposição de vegetais que foram soterrados há muito milhões de anos atrás, passando por vários processos geológicos. Esse carvão é uma espécie de lixão químico. Contém mais de 76 elementos da tabela periódica. Entre eles, encontram-se os chamados de metais pesados, como berilo, cádmio, chumbo, manganês. São esses elementos que poderão estar no pó produzido pela mina de carvão. Os metais pesados são extremamente danosos à saúde humana e poderão causar severos danos, como câncer, pancreíte, e hipertensão. A lista de possíveis doenças é enorme. Os médicos fazem hoje um alerta ao afirmarem categoricamente que essas partículas PM 2,5 matam tanto quanto o fumo. Queremos ter uma mina que produz esse pó ao lado de nossas casas? Contaminando sem cessar a paisagem do pôr do sol do Guaíba?
Para Cristiano Weber, da Copelmi, “objetivo do projeto é viabilizar a política energética do Rio Grande do Sul”. O senhor concorda com isso?
Essa é uma questão interessante. Veja: se para viabilizar certa ‘política energética’ devemos ser reféns de uma mina de carvão com potencial de produzir enormes danos ao meio ambiente, de se fazer presente em nossas casas por meio de pó e água contaminados, então é evidente que essa política está equivocada. Ela é um claro paradoxo. Países como Alemanha e Inglaterra estão eliminando o carvão de suas matrizes energéticas. Estão substituindo por energias renováveis como a eólica e a solar. Estão tratando de tornar mais eficiente o consumo de energia. Essa é a política energética do século XXI: eficiência, diminuição de consumo, fontes renováveis, descentralização de sua produção.
O carvão, portanto, inviabiliza que o Rio Grande avance para patamares superiores das boas políticas energéticas e nos empurra para um passado que de longe já está superado. Além disso, políticas energéticas com base no carvão tenderão a diminuir o valor agregado dos produtos. Aumentará enormemente a tendência dos mercados evitarem produtos que se originem de processos que utilizem energias obsoletas que causam enorme dano ao ambiente e à saúde.
Mais ainda: devemos considerar que o carvão é o principal vilão da atual emergência climática. Porto Alegre e a Região Metropolitana, por se localizarem em terras baixas, poderão sofrer as consequências da elevação do nível do mar e, com ele, também do Guaíba. O uso do carvão não viabiliza nenhuma política energética. Ao contrário, nos traz enormes problemas energéticos. Para fazer frente aos impactos locais, regionais e planetários que seu uso promove, contraditoriamente nos empurra para aumentar o consumo de energia. Algo como a metáfora do cachorro mordendo seu próprio rabo.
Quais são os impactos no meio ambiente da mina?
Uma mina de carvão impacta todos os elementos do meio ambiente: solo, água, ar, fauna, flora e a sociedade. Ela atinge simultaneamente todas as escalas: local, regional e planetária. Ela se constitui na mais agressiva mineração que se tem notícia, de sorte que, na literatura mundial, diz-se que não há mina de carvão limpa. É tecnicamente impossível. No caso da pretensa mina Guaíba, ela afetará três grandes patrimônios que temos na Região Metropolitana: o patrimônio hídrico, representado pela formidável confluência dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí no Lago Guaíba, onde se acumula nada menos de 1 km³ de água doce. Um tesouro que devemos proteger com todas nossas forças. O patrimônio ecológico, representado pelo Parque Estadual do Delta do Jacuí, refúgio da fauna e flora ao lado de nossas grandes cidades. É um santuário ecológico que cumpre importantes funções para a qualidade de vida. Por fim, o patrimônio humano e cultural, representado pelas nossas cidades metropolitanas onde vivem 4,6 milhões de pessoas. É possível existir uma atividade que possa impactar simultaneamente todos esses patrimônios ao mesmo tempo? Sim, uma mina de carvão que pretende se situar a apenas 16 km do centro da Capital.
Vamos aos detalhes. O carvão mineral possui muita quantidade de enxofre, que, quando exposto ao ar livre e à água da chuva, reage produzindo ácidos. A água fica tão ácida que acaba dissolvendo os metais pesados, como Pb, Be, Cd, Mn, Cu, Mg, Hg, entre outros. Assim, esses perigosos contaminantes poderão alcançar a água do Jacuí e chegar aos pontos de abastecimento das cidades metropolitanas. Além disso, esses metais pesados contaminarão as áreas alagadiças onde há plantio de arroz. Veja, o arroz tem a propriedade de ser um acumulador de cádmio. Assim, o arroz produzido nessa região poderá ficar contaminado com cádmio. Também todo santuário do Parque Estadual do Delta do Jacuí ficará contaminado, toda a fauna e flora.
E os impactos humanos?
Os impactos à sociedade também são inúmeros. Primeiro devemos seriamente considerar que essa pretensa mina não se instalará em um lugar vazio. Naquela área há agricultores que produzem grande quantidade de arroz orgânico entre outros produtos agrícolas que abastecem a região metropolitana. Há também inúmeros sítios com belas paisagens, com tica fauna e flora. Para instalar a mina, deverão remover todas as pessoas que tem suas economias baseadas na agricultura. Então a mina para se instalar, irá destruir economias e empregos já existentes. Em segundo lugar, haverá grande impacto à saúde dos moradores de toda a região do entorno da pretensa mina. Nada menos de 4,6 milhões de habitantes. Calcula-se que o impacto na saúde de uma mina de carvão seja de 9,5 dólares por tonelada. No caso do projeto da mina Guaíba, serão explorados 166 milhões de toneladas de carvão. Então o impacto na saúde será extremamente elevado. Quem vai paga esse custo? Poderá o já lotado sistema de saúde da região metropolitana suportar essa demanda? Evidente que não. Sequer o EIA-Rima analisou seriamente o impacto na saúde. Por fim, haverá um impacto econômico em Porto Alegre. Na medida em que se acumulam os problemas ambientais e de saúde, as pessoas irão sair de Porto Alegre e tampouco os turistas vão querer visitá-la.
Ora, Porto Alegre é uma cidade de serviços, com seu próprio charme, capaz de ser atrativa. Não por acaso por aqui aconteceram jogos da copa e anualmente se realizam inúmeros congressos e convenções, atraindo milhares de pessoas. Porto Alegre é também um dos mais importantes centros de tratamento de saúde da América o Sul. Quem vai querer visitar uma cidade impactada pela mineração de carvão? Ninguém. Então haverá impacto na economia de Porto Alegre. Mas, os impostos da mineração ficarão nos municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul. Quem vai pagar os prejuízos que essa Mina causará na Região Metropolitana?
Se o senhor pudesse fazer um alerta ao governador, qual seria?
Senhor governador. A mina Guaíba é um contra senso em todos os sentidos. É economicamente inviável, porque não poderá pagar os prejuízos à saúde, ao ambiente e ao patrimônio dos 4,6 milhões de moradores da região metropolitana. É socialmente injusta, pois afetará diretamente uma área com indígenas e agricultores e fará com que a geração de nossos filhos e netos tenha que arcar com um passivo ambiental sem retorno. É ambientalmente condenável, deteriorando nosso patrimônio hídrico e ecológico, representado pelo sistema do delta do Jacuí e lago Guaíba e colocará o Rio Grande no mapa dos que impactam o clima planetário.
Senhor governador: Lembre-se que o Guaíba é o destino dos porto-alegrenses e metropolitanos. Nossos organismos são compostos por 70% de água, esta que bebemos do Guaíba. Nós somos o Guaíba. O que acontecer ao Guaíba irá acontecer conosco.
Senhor governador: não seja refém de uma situação que tua geração não criou. Olhe para frente, para os problemas do século XXI, que exigem energias limpas, água e ar saudáveis, agricultura ecológica. Não vá para a história como o governador que permitiu que a capital e a região metropolitana fossem sitiadas pelos coronéis do carvão.
Rualdo Menegat é professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituto de Geociências da UFRGS, geólogo, Mestre em Geociências (UFRGS), Doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem (UFRGS), Doutor Honoris Causa (UPAB, Peru). Assessor científico da National Geographic Brasil, membro da Cátedra da UNESCO/Unitwin – Foro Latino-Americano de Ciências Ambientais, Membro Honorário do Fórum Nacional dos Cursos de Geologia, membro da International Commission on History of Geological Sciences (IUGS) e Presidente da Sessão Brasileira da International Association for Geoethics.