A jornalista Amelia Gonzalez, que escreve sobre sustentabilidade e debate temas ligados a economia, meio ambiente e sociedade, escreveu, em sua coluna no G1, um importante relato sobre a COP25. Para ela, a Carta Climática foi um o acontecimento que deu sentido a reunião da cúpula do Clima, em Madri. Confira o que ela disse sobre a Carta Climática.
Um ponto alto das manifestações paralelas protagonizadas pela sociedade civil longe dos grandes encontros de líderes aconteceu na Cúpula Indígena da COP25 (Minga). A carta climática que foi entregue pelas lideranças indígenas às autoridades da COP25 foi reproduzida no site da organização 350.org, movimento global de pessoas que trabalham para mudar o padrão de consumo dos combustíveis fósseis no mundo.
Na carta que os indígenas das Américas, Caribe e Antilhas também entregarão, no Brasil, ao Ministério do Meio Ambiente e ao Ministério Público Federal, a maior reivindicação é de que sejam ouvidos. Simples assim. São povos originários, estão há muito tempo lidando com a natureza de forma intrínseca. O mínimo que os líderes deveriam fazer, num momento de crise climática como o que estamos vivendo, seria ouvi-los.
É preciso enfatizar que há um instrumento internacional que rege as condições de vida e trabalho dos indígenas, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que vem sendo recorrentemente menosprezada pelos donos do poder. Nele está enfatizado que os indígenas precisam ser consultados e participar sobre quaisquer uso e gestão de seus territórios.
Além de serem ouvidos, os indígenas querem que seja dado um basta à “criminalização, perseguição, prisão, desaparecimento e assassinato dos líderes e autoridades tradicionais por proteger e defender os territórios indígenas. Pedem que os Estados e Organismos Internacionais de Direitos Humanos e/ou Ambientais investiguem os casos de forma transparente e responsável”.
Faz todo sentido esta reivindicação com tintas tão fortes. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, aqui no Brasil, há uma situação dramática para os líderes indígenas. Em pelo menos onze anos não se via tantos líderes indígenas assassinados em conflitos no campo como agora. Foram sete mortes em 2019, contra 2 mortes em 2018. Os dados deste ano ainda são preliminares, já que o balanço final só será feito em abril do próximo ano, mas conseguem mostrar o tamanho do problema.
Ainda ontem, a organização Greenpeace divulgou outros números que ilustram bem o que vem acontecendo em territórios que não têm os holofotes do mundo. Enquanto presidentes xingam a garota que mais tem levado, globalmente, mensagens sobre a necessidade de se rever paradigmas de consumo e produção, no campo a falta de respeito às terras indígenas aumenta.
Segundo a organização, a Terra Indígena Ituna-Itatá, área protegida por lei no Pará, teve 94% do território autodeclarado por produtores a partir de Cadastros Ambientais Rurais (CAR), segundo levantamento do Greenpeace. Para a organização ambiental, os mais de 200 registros mostram que o território estaria sendo ocupado por grileiros que se autodenominam donos de cada pedaço de terra.
“Nós sabemos que somos protetores e muitas vezes nos encontramos ou somos vítimas de conflito (geralmente com brancos) por causa do território, mas não porque queremos um pedaço de terra. Mas porque são áreas únicas que têm floresta, árvore em pé, água limpa e que o calor não é de 40 graus C, porque existe um cuidado para a conservação. Estamos preservando para o mundo inteiro. Se nós cruzássemos os braços e deixássemos como está, não existiria mais nada”, diz Andreia Takua Fernandes, coordenadora do Programa Indígena da 350.org America Latina.
A carta dos indígenas faz críticas ao mercado de carbono, chamado por eles de “mercantilização da natureza”:
“São apenas soluções neocolonialistas que trazem conflitos dentro de nossos povos. Vemos muitos representantes de Estados considerando apenas o lucro mercantil e financeiro, sem levar em conta a importância da vida. Por esta razão, entendemos que eles são cúmplices de toda esta destruição. Se o petróleo, o gás, os minerais e o carvão estão nas profundezas da terra, é porque a Mãe Natureza os deixou lá enterrados, trazê-los para o nosso ambiente é contradizer a sua sabedoria”, escrevem eles.
Já que os líderes eleitos pelo povo estão falhando em tomar decisões que afetem o estado atual das mudanças climáticas, em prol da qualidade de vida, o momento exige reflexões de todos. O convite dos indígenas reflete uma disposição que, pelo menos em teoria, abrange um esforço positivo no sentido de união de todos por um bem comum. Eles terminam assim a carta que dá o tom não oficial, governamental, ao encontro das cúpulas que termina hoje, mas que é carregada de simbologia respeitosa ao momento de crise que vivemos:
“Finalmente, fazemos um apelo à consciência e à solidariedade, que é o momento de unir todos os esforços do mundo e pôr de lado todas as nossas diferenças, étnicas, religiosas, políticas, sociais, amorosas à vida que todos somos, nossas futuras gerações não podem herdar um planeta doente, devemos curá-la. Depende de nós”.
Imagine todos os povos do mundo, de todos os continentes, reunidos através de representantes para buscar um objetivo comum. Imagine que todos saibam dialogar, conciliar interesses, ouvir, respeitar, ceder, avançar. Imagine que essa reunião de diferentes povos resulte uma carta de intenções, de pedidos, de exigências e de compromisso com o futuro e com o planeta. Parece impossível. Mas, para os povos indígenas, isso é realidade. E a COP25 foi o palco desse acontecimento inédito e inspirador.
A carta foi construída em processo plural e coletivo por mais de um ano, quando mais de 400 aldeias foram visitadas e ouvidas em ação liderada pelo Instituto Arayara em parceria com 350.org Indígena e COESUS. Do processo de escuta, resultou o primeiro rascunho da Carta Climática dos Povos Indígenas. O documento foi discutido e aprofundado por aproximadamente 150 indígenas de forma presencial em Madri, durante a Cúpula Indígena da COP-25 (MINGA), evento paralelo à Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima (COP-25) oficial, que começou no último dia 2 e termina no dia 13.
O documento histórico foi entregue em 10/12, em Madri, a Andres Landerretche, coordenador da Presidência da COP25, e a Gonzalo Muñoz, ‘champion` da COP25. O momento foi simbólico e emocionante, pois levou ao mundo um pouco dos rituais e da diversidade dos povos originários aos corredores da COP. A carta será entregue, ainda, a diversas autoridades de diversos países. O seu recado é forte, contundente e generoso: pede justiça e proteção aos povos originários, que fazem a defesa incansável do planeta em que brancos e não-brancos vivem, em que humanos e não-humanos vivem. A carta não é voltada apenas aos povos indígenas, mas a todos aqueles que vivem na Terra e dependem da Mãe Natureza para sobreviver.
“Foi um momento histórico tanto para o processo das negociações climáticas globais quanto ao processo indígena na COP. Foi a primeira vez que um grupo indígena de diferentes partes do mundo se reuniu de forma autônoma e independente. Uma das demandas da carta pede que este espaço seja reconhecido pela ONU como interlocutor desses povos. Para mim, o mais relevante é que houve um processo de reversão do centro de poder, que é influenciado por poluidores, pela indústria fóssil, por desmatadores e governos ditatoriais para um processo de empoderamento dos povos indígenas, com elevação dessas vozes. Esperamos que este processo seja fortalecido nos próximos anos”, afirma Nicole, diretora da 350.org América Latina.
Confira a íntegra da carta:
Nós, Autoridades Tradicionais de diferentes povos indígenas de todas as partes do mundo que compõem a Minga Indígena COP25, somos os protetores, protetoras, guardiões e guardiãs da vida, vivemos e convivemos nos territórios mais biodiversos do planeta, a água em todas as suas formas naturais, rios, ar, florestas, selvas, desertos, áreas úmidas, manguezais, montanhas, mares e oceanos.
Estes elementos da natureza estão diretamente ligados à nossa espiritualidade, bem como à nossa sobrevivência, aos nossos alimentos tradicionais e aos nossos medicamentos sagrados. Estamos aqui para fazer eco da nossa voz em todas as partes do mundo. Que saibam que existem povos indígenas trabalhando para bem viver e que estamos defendendo a vida, a natureza e a humanidade, indígenas ou não.
A terra e o território são essenciais para assegurar a continuidade dos seres humanos e das suas sociedades. É o sustento e o equilíbrio climático sem os quais os seres vivos, independentemente da sua origem, cor e cultura, deixariam de existir. Os seres humanos e não humanos dependem do equilíbrio entre o material e o espiritual. Desde os mais simples e humildes até aos que estão sob controlo político, todos, sem exceção, dependem deste sistema que agora está desequilibrado.
O sistema patriarcal, capitalista e colonialista nos trouxe para esta crise climática. Vemos muitos representantes de Estados considerando apenas o lucro mercantil e financeiro, sem levar em conta a importância da vida. Por esta razão, entendemos que eles são cúmplices de toda esta destruição. Se o petróleo, o gás, os minerais e o carvão estão nas profundezas da terra, é porque a Mãe Natureza os deixou lá enterrados, trazê-los para o nosso ambiente é contradizer a sua sabedoria.
A participação plena e efetiva para o consentimento livre, prévio e informado não deve ser entendida apenas como uma obrigação dos Estados, mas como um direito a ser implementado pelos próprios povos e nações indígenas, de acordo com seus costumes e tradições, respeitando sua organização política, social e territorial, de acordo com a Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Os protocolos de consulta comunitária devem ser vinculantes e respeitados pelos Estados para qualquer ação relacionada com os nossos territórios, o nosso modo de vida e os nossos povos.
Por isso, recomendamos:
Por fim à criminalização, perseguição, prisão, desaparecimento e assassinato de nossos líderes e autoridades tradicionais por proteger e defender nosso território.
Aos Estados e Organismos Internacionais de Direitos Humanos e/ou Ambientais, para que investiguem juntos e de forma transparente e responsável os assassinatos e responsabilizem os autores intelectuais e materiais desses assassinatos. Além disso, que os Estados garantam a segurança e a proteção das lideranças indígenas que se encontrem em situação de ameaça.
Rejeitar a mercantilização da natureza uma vez que as terras e os territórios são inestimáveis. Soluções Baseadas na Natureza (NBS), Emissões Reduzidas do Desmatamento (REDD+) e outros programas de compensação não são soluções reais para crises climáticas. São apenas soluções neocolonialistas que trazem conflitos dentro dos nossos povos.
Que a Mãe Terra seja reconhecida e declarada como um sujeito de direitos, porque para nós os efeitos da crise climática nada mais é do que o grito de socorro da Terra.
Projetar e adotar medidas reais para proteger nossa Mãe Terra, deixando os combustíveis fósseis no chão, preservando nossas águas, não queimando nossas florestas, e não explorando nossos territórios através da mineração e atividades extrativistas. Todos os esforços para a geração de energias renováveis não convencionais devem ser orientados para a geração para consumo básico e na escala das comunidades e não priorizando o extrativismo colonialista das transnacionais.
Que a participação efetiva seja um direito, reconhecendo as lideranças, autoridades guardiãs dos territórios indígenas que hoje representam os espaços mais biodiversos e reservas de água do mundo.
Proteger os territórios dos povos não-contatados em isolamento voluntário e dos não reconhecidos, respeitando assim a liberdade de trânsito em seus territórios ancestrais.
Oficializar a Minga Indígena nos espaços estabelecidos da COP como interlocutor válido dos povos indígenas. Observa-se uma folclorização e uma invisibilidade de nós mesmos e dos nossos conhecimentos nos espaços de diálogo existentes, sendo estes insuficientes para enfrentar os desafios que enfrentamos a nível planetários. É por isso que pedimos que a UNFCCC reconheça e apoie a Minga como um órgão de seguimento da voz indígena no mundo. Como espaço de participação complementar, livre e efetiva.
Que os países da América Latina ratifiquem o Acordo de Escazú.
Finalmente, fazemos um apelo à consciência e à solidariedade, que é o momento de unir todos os esforços do mundo e pôr de lado todas as nossas diferenças, étnicas, religiosas, políticas, sociais, amorosas à vida que todos somos, nossas futuras gerações não podem herdar um planeta doente, devemos curá-la. Depende de nós.
A delegação da Arayara, do Observatório do Petróleo e Gás e a 350.org está em Madri para a participação da COP-25. A partir de hoje (5), eles iniciam as atividades que promoverão na Espanha. Como demanda principal, as instituições pedem que as vozes das pessoas mais impactadas pelas mudanças climáticas estejam no centro da tomada de decisão de como a sociedade conterá o aquecimento global.
“Os mais impactados são comunidades indígenas, ribeirinhas e pescadores artesanais. Todas estas pessoas têm uma relação de defensores climáticos e ao mesmo tempo dependem mais diretamente do meio ambiente para sua sobrevivência; e não os poluidores, que integram a indústria fóssil. Por isso, estamos levando como convidadas algumas vozes indígenas da região para serem ouvidas. Esta é a nossa prioridade”, destaca Nicole Oliveira, diretora da 350.org.
Entre as atividades promovidas pela Arayara, estão o lançamento do documentário que conta um pouco da construção da Carta Climática dos Povos Indígenas que será finalizada e apresentada na COP; a exposição #MarSemPetróleo, com fotos do vazamento de óleo que acontece na costa brasileira e sobre as ações da Arayara e 350.org para combater a exploração dos combustíveis fósseis.
Confira, a seguir, a programação:
Exposição #MarSemPetróleo Quando: dias 5, 10 e 11/12 Onde: Brazil Action Hub O que: Vamos escancarar para o mundo as imagens do maior vazamento de petróleo do Brasil Realização: 350.org, Observatório do Petróleo e Gás, e Instituto Internacional Arayara
Expo Carta Indígena Quando: Dias 6 e 7/12 Onde: Estande 14 – Green Zone O que: Conheça a visão indígena sobre as mudanças climáticas e suas demandas como centro da discussão Realização: 350.org e Instituto Internacional Arayara
Diálogos Climáticos com Indígenas Quando: Dia 7/12 Onde: Booth 14 Green Zone O que: Conversa aberta com indígenas sobre as mudanças climáticas Realização: 350.org e Instituto Internacional Arayara
Vozes indígenas – Carta climática e clamor dos povos tradicionais da América Latina Quando: Dia 11/12 – Das 12:00 às 13:45h Onde: Carpa Escenario / Cumbre de los pueblos (PORT/ESP) Realização: 350.org e Instituto Internacional Arayara
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