Um dos livros mais lidos no mundo recentemente – Como as democracias morrem –, dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, aborda uma realidade dura, mas que precisa ser discutida: o risco a que estão expostas as democracias (sejam recentes ou não). Os professores falam de personagens recentes, como Donald Trump, e sua relação com a ascensão de Hitler e Mussolini nos anos 1930, a atual onda populista de extrema-direita na Europa, as ditaduras militares da América Latina dos anos 1970 e outro exemplos.
O que o livro não traz, mas poderia sem dúvida ser um capítulo relevante da obra, é o papel da indústria petrolífera no processo de corrosão das democracias. A Guiana é o mais recente exemplo do alto poder destrutivo da indústria fóssil.
O pequeno e pobre país da América Latina foi alçado a futura grande potência econômica mundial por sua bacia petrolífera. O tradicional desenho de futuro promissor e riqueza para o povo da Guiana foi traçado. Mas não parece ter durado muito. A promissora riqueza gerou fortes tensões nas eleições presidenciais, realizadas no começo de março. Dois grupos tradicionalmente inimigos disputam o poder de uma nação que tem, segundo o FMI, uma projeção de crescimento de seu PIB em 85%. O PIB brasileiro, em 2019, cresceu 1,1%. Não há resultado oficial das eleições e os dois lados se declaram vitoriosos. A população está dividida. E a descoberta de 8 bilhões de barris de petróleo só faz aprofundar essa divisão.
O que os guianenses estão chamando de “a era do petróleo” pode se transformar no seu pior pesadelo: o fim de uma frágil e recente democracia; e o fim de diferentes setores da economia que até então são os maiores geradores de emprego e renda.
A conta não fecha. Ainda mais se for colocado na balança a emissão de carbono promovida pela exploração dos combustíveis fósseis. Em tempos de emergência climática, fica realmente difícil acreditar no milagre do petróleo.
A divisão entre negros e descendentes de indianos, acirrada pelos bilhões prometidos pela Exxon, só tem um resultado previsível: a desestabilização da democracia local e, quem sabe, até mesmo sua morte.
“Petroditaduras”
Diretora do Instituto ARAYARA, entidade que atua fortemente pedindo que a indústria fóssil deixe o petróleo, o gás e o carvão no chão, Nicole Oliveira fala sobre os danos dessa indústria à democracia. “O petróleo historicamente corrói democracias, promove a corrupção e se esconde sob um falso e frágil argumento desenvolvimentista. Não há real desenvolvimento onde existe exploração de petróleo, pelo contrário, há muita isenção fiscal e incentivo do poder público. Mas à sociedade volta muito pouco ou quase nada em investimento em áreas essenciais como saúde, educação e infraestrutura”, afirmou.
Oliveira prossegue: “os defensores da indústria petrolífera afirmam que o petróleo vai salvar a sociedade. Pergunto: qual país foi salvo por este combustível fóssil?”. Para ela, o que existe é a “maldição do ouro negro”.
Ela vai além e cita exemplos de países que enfrentam graves problemas decorrentes do petróleo. Como o Brasil, que protagonizou o maior caso de corrupção do mundo e que tinha a Petrobras no centro desse escândalo.
Já Venezuela e Arábia Saudita, duas nações que têm no petróleo sua maior fonte de “desenvolvimento, são, para Oliveira, duas “petroditaduras” que defendem e exaltam a falsa premissa desenvolvimentista do petróleo. “Cada uma a seu modo, talvez pelos continentes em que se situam, Venezuela e Arábia Saudita são duas petroditaduras porque ao defenderem o petróleo, criminalizam os defensores da democracia e ferem diariamente os direitos humanos. Não é apenas uma questão de emergência climática – que já seria o suficiente para frearmos essa indústria –, mas uma questão de defesa de princípios básicos como o direito à vida e à democracia. Por isso nos solidarizamos com o povo da Guiana”, enfatizou Nicole Oliveira.
Leia, a seguir, a íntegra da carta:
Declaração de solidariedade com o povo da Guiana
Nós, as organizações abaixo assinadas de direitos humanos, ambientais e democráticas, estamos escrevendo para expressar nossa solidariedade com o povo da Guiana, manifestando nosso total apoio ao Estado de direito na Guiana; a integridade do processo eleitoral; liberdade de expressão e associação sem medo de represálias; e o direito a um ambiente seguro e saudável. Observamos com crescente preocupação que o processo de tabulação de votos nas eleições de 2 de março testemunhou uma onda acelerada de irregularidades processuais, discrepâncias inexplicáveis, ameaças contra observadores imparciais e a declaração prematura do partido no poder como vencedor nesta eleição vital.
Aplaudimos os membros da comunidade internacional, incluindo a Comunidade do Caribe, Organização dos Estados Americanos, países da Comunidade das Nações, e os representantes conjuntos dos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e União Europeia que convidaram todas as partes a:
· Respeitar o processo democrático;
· Evitar declarar um resultado até que todos os votos sejam devidamente tabulados de acordo com a lei aplicável; e
· Trabalhar juntos para garantir uma transição pacífica de poder.
Concordamos e endossamos a declaração conjunta de observadores internacionais no processo eleitoral de que a tabulação dos votos nas eleições permanece incompleta e deve ser concluída em total conformidade com a lei da Guiana e com total transparência aos observadores internacionais, à comunidade internacional e à Guiana. Sem essas etapas, a legitimidade do processo eleitoral é altamente questionável.
Vitalmente, exortamos todos os envolvidos a trabalharem com agilidade para acalmar as tensões crescentes, evitar mais violências e garantir a segurança de todo o povo da Guiana, e prestar especial atenção à situação dos defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, que muitas vezes são alvo durante períodos de turbulência social e política.
Nesse cenário de preocupação global pela legitimidade do processo eleitoral e pelo bem-estar do povo guianense, notamos o silêncio ensurdecedor do setor que mais exacerbou as recentes tensões políticas no país – a indústria do petróleo. Esse silêncio em um momento de profunda crise nacional fornece fortes evidências de que as empresas de petróleo estão mais preocupadas com o futuro do petróleo da Guiana do que com o futuro da nação e com as pessoas que possuem esse petróleo.
Convidamos a ExxonMobil e outras empresas de petróleo que operam na Guiana a seguirem o exemplo da comunidade internacional e declarar clara e inequivocamente que eles somente conduzirão negócios com um governo legalmente instalado.
Estamos ainda preocupados que esse silêncio se estenda ao Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais – privadas e públicas – que estão financiando a abertura da Guiana como a mais nova fronteira extrativista e promovendo ativamente a transição do país de um sumidouro de carbono global para uma grande novo emissor de carbono. Como trabalha com os advogados da Exxon para reescrever as leis que governarão a extração de petróleo no país, o Banco Mundial não assumiu posição pública sobre a agitação política de que a extração está exacerbando. Apelamos ao Banco Mundial, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento e a todos os outros órgãos financeiros para que se juntem à comunidade internacional pedindo uma tabulação justa e transparente dos votos e a instalação do governo eleito legitimamente e democraticamente
A corrida para transformar a Guiana no mais novo estado petroestatístico contribuiu para uma situação política que ameaça os direitos humanos e a democracia, corre o risco de recompensar a corrupção e a repressão e traz as características reconhecíveis demais da maldição do petróleo. Essa maldição será agravada se a perfuração em águas profundas mal regulada e de alto risco na zona econômica exclusiva da Guiana desencadear uma explosão de poço. Um grande derramamento de óleo nas águas da Guiana colocaria em risco o meio ambiente marinho, a segurança alimentar e a indústria vital do turismo, tanto para a própria Guiana quanto para os países vizinhos do Caribe. E o petróleo gerado exacerbará a crise climática que já ameaça comunidades em todo o país, região e mundo.
Também pedimos à indústria do petróleo e ao setor financeiro que reconheçam que a Guiana pode nunca perceber a riqueza do petróleo necessária para superar esses riscos. Observamos com ironia que, mesmo que a promessa de riquezas incontáveis ponha em risco a democracia da Guiana, os principais produtores de petróleo do mundo acabam de se comprometer a inundar os mercados globais com petróleo muito mais barato do que o que a Guiana pode produzir economicamente, exacerbando ainda mais o risco de que a Guiana preso ao ciclo de dependência e empobrecimento que atormenta países ricos em petróleo há décadas. À medida que os mercados financeiros e de energia globais se afastam dos combustíveis fósseis com uma velocidade cada vez maior, os riscos de que a Guiana fique sobrecarregada com dívidas massivas e ativos de petróleo ociosos apenas aumentarão.
O fracasso em reconhecer esses riscos e a iminente transformação que enfrenta a indústria do petróleo e a economia fóssil contribuíram para a crise atual. As pessoas na Guiana estão trabalhando para garantir que seu país possa enfrentar essa crise e avançar para um futuro mais pacífico, estável, sustentável e democrático. Nossas organizações têm a honra de se juntar à comunidade internacional em seu apoio a esse esforço e ao povo guianense.
Está na hora da indústria do petróleo e da comunidade financeira global fazerem o mesmo.