“É difícil interromper algo que parece estar funcionando”, afirmou a ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva, durante a palestra magna “Emergência Climática: o desafio da transformação ecológica”.
Ela acrescentou: “A humanidade encontrou uma forma de gerar grande quantidade de energia para quase 10 bilhões de pessoas, mas essa fonte está destruindo as condições que permitiram o surgimento da vida, ao elevar a temperatura da Terra”.
A declaração, feita no segundo dia da 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente (5ª CNMA), realizada em Brasília, de 6 a 9 de maio, reforça uma das pautas centrais da Conferência — e que deve integrar o Plano Clima e os debates da COP30: a transição energética, do uso de combustíveis fósseis, como o petróleo, para fontes renováveis, como a energia eólica. A ministra também destacou: “Não basta triplicar a energia renovável, não basta duplicar a eficiência energética, é preciso promover a transição para o fim do uso de combustíveis fósseis. Isso não é mágica; é investimento, ciência, tecnologia e persistência”.
Em seguida, Marina pareceu recuar em seu debate ao defender que essa mudança ocorra de forma justa e planejada. Um dia antes, na cerimônia de abertura do evento, ela já havia discursado em tom de cautela: “Precisamos de uma matriz energética sustentável e de um país socialmente justo e ambientado”.
A postura oscilante da ministra e da própria 5ª CNMA — que, ao mesmo tempo em que defende o fim do uso de combustíveis fósseis, ressalta sua importância econômica — ganha ainda mais destaque diante dos últimos acontecimentos no setor. Afinal, o governo discute a ampliação da produção de petróleo em novas fronteiras, enxergando a Bacia da Foz do Amazonas como a principal promessa para o futuro da exploração petrolífera no país.
O documento-base da 5ª CNMA, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente, reconhece que “é no setor de energia que o aquecimento global impõe uma decisão difícil ao Brasil”. O país é o nono maior produtor de petróleo do mundo e essa produção movimenta grande parte da economia brasileira. Em paralelo, o documento da Conferência também admite que “a ciência e as negociações mundiais para deter o aquecimento global já deixaram claro que o planeta precisa reduzir a produção e o consumo de combustíveis fósseis, como petróleo, gás e carvão”.
A Agência Internacional de Energia, em seu relatório mundial de 2023, concluiu que, para alcançar a estabilidade do regime climático, a produção e o consumo de combustíveis fósseis devem diminuir até 2030. No entanto, a mesma publicação da 5ª CNMA projeta um aumento da produção de óleo e gás no Brasil para além desse mesmo período.
A Bacia do Foz do Amazonas
O Bloco 59 da Foz do Amazonas é uma área marítima localizada na Margem Equatorial Brasileira, que abrange parte do litoral norte do país. A região está situada a cerca de 160 km da costa do Amapá e a aproximadamente a mesma distância, em linha reta, da foz do Rio Amazonas — área onde o rio deságua no oceano Atlântico. A Foz do Amazonas tem características complexas, combinando estuário (com mistura de água doce e salgada) e múltiplos canais.
É justamente nessa região, rica em biodiversidade, que há potencial para a existência de reservatórios de petróleo. Em maio de 2023, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) negou a licença de exploração da área pela Petrobras, apontando uma série de inconsistências técnicas para garantir uma operação segura — entre elas, deficiências no Plano de Proteção à Fauna.
Em fevereiro de 2025 ano, técnicos do Ibama voltaram a recomendar a negativa da licença à estatal, alegando que as modificações propostas não foram suficientes para mitigar os riscos ambientais já identificados. Em resposta, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, fez uma declaração polêmica: “O que não dá é pra ficar nesse lenga-lenga. O Ibama é um órgão do governo parecendo que é um órgão contra o governo.”
Durante a 5ª CNMA, o superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, Rogério Rocco, defendeu a posição técnica do órgão em entrevista ao Portal EPSJV. “A discussão se o Ibama é contra ou a favor do petróleo não acontece dentro do Ibama, porque essa é uma decisão do Conselho de Política Energética da Presidência da República, não do Ibama”, afirmou. Ele acrescentou que, no campo do licenciamento ambiental, o órgão ainda aguarda que a Petrobras comprove sua capacidade de atender emergências em até duas horas — exigência que, segundo ele, a estatal ainda não conseguiu cumprir.
Enquanto Lula reafirma publicamente a confiança na capacidade técnica e ambiental da Petrobras, Rogério alerta que a atividade petrolífera, embora de grande relevância econômica, representa alto risco ambiental. “Temos históricos e inúmeros acidentes com petróleo em todo o litoral brasileiro”, completou.
Dados recentes da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) reforçam essa preocupação: em 2024, o país bateu recorde de acidentes na exploração de petróleo no mar. Foram registrados 731 incidentes em alguma etapa da atividade, o equivalente a uma média de dois por dia.
“Se o Ibama, que é o órgão responsável, diz que a exploração não está apta, o governo não pode impor uma política sobre isso, diante da periculosidade da região”, ressaltou Sara Ribeiro, consultora do Instituto Internacional Arayara, organização da sociedade civil que também monitora o caso.
Desafios estruturais
“A região da Foz do Amazonas apresenta grande dificuldade estrutural”, afirmou Rogério. Segundo o superintendente do Ibama, entre os desafios estão as marés, que sobem e descem diariamente, e a profundidade da área, fatores que podem dificultar ou até impedir o deslocamento de embarcações. “Portanto, a dificuldade de se implantar uma atividade nessa região está justamente na necessidade de infraestrutura adequada para viabilizar seu funcionamento”, explicou.
Sara também chama atenção para as fortes correntes marítimas da região, e alerta para problemas já observados em outras áreas da Margem Equatorial. “No Rio Grande do Norte, várias plataformas já estão degradadas, emitindo gases como o metano de forma descontrolada. O Instituto esteve lá com câmeras ‘flare’, específicas para detectar esses gases invisíveis”. Ela alerta: “Se ali, onde as condições marítimas são mais calmas, já há uma má administração dessas plataformas antigas, o que se pode esperar da exploração na parte amazônica da Margem Equatorial?”.
Impactos na vida e na biodiversidade
A exploração de petróleo na Foz do Amazonas pode trazer graves consequências para o meio ambiente e para as populações locais. “Toda a bioeconomia da pesca pode sofrer um impacto absurdo com a intensa circulação de aviões, helicópteros, embarcações — enfim, um grande volume de transporte que vai assustar todos os animais”, alerta Sara Ribeiro, que acrescenta: “Os peixes estarão em perigo, assim como toda a biodiversidade, incluindo o recife amazônico, que acaba de ser descoberto”.
Indígena do povo Anacé da Japuara e delegado na 5ª CNMA pela Associação dos Velhos Troncos do Povo Anacé, Mariano Anacé ressalta que a exploração do petróleo na Foz do Amazonas é impactante para o meio ambiente e as pessoas. “Tudo está interligado, se acabar com o meio ambiente, a vida das pessoas também acaba, e assim também a vida na terra”, disse.
Mariano sente na pele os efeitos da exploração do meio ambiente e das terras de seu povo. Desde a década de 1990, os Anacé enfrentam os impactos provocados pelo Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), no Ceará. “Temos lutado contra esse grande empreendimento, esse monstro que tenta devorar nosso território, poluindo o ar, as águas e a terra”, denuncia.
Apesar das controvérsias da 5ª CNMA, Mariano reforça o desejo de que o encontro sirva para fortalecer a luta pela preservação da biodiversidade. Mais do que uma demanda individual, ele ressalta a importância de dar visibilidade às vozes indígenas: “A gente quer ser ouvido, quer igualdade, quer que nossos territórios sejam protegidos”.
Fonte: Fiocruz
Foto: reprodução/ Fiocruz/ Erika Farias