Ato popular, falhas de segurança e ação judicial paralisam processo de licenciamento da termelétrica que ameaça o Rio Melchior e pode agravar a crise hídrica no DF.
A audiência pública para apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) da Usina Termelétrica (UTE) Brasília, prevista para a última terça-feira (17), foi oficialmente suspensa pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A decisão foi tomada após intensa mobilização popular no Centro Cultural de Samambaia, no Distrito Federal, onde o evento chegou a ser iniciado.
Mais de 400 pessoas lotaram o auditório e protestaram com palavras de ordem como “Xô Termelétrica” e “Salve o Rio Melchior”, rejeitando a instalação do empreendimento. Além dos impactos ambientais apontados, os manifestantes denunciaram o risco de remoção da Escola Classe Guariroba, que atende cerca de 560 alunos e está localizada na área destinada à usina.
O gerente de Transição Energética da ARAYARA, John Wurdig, explica que a organização havia protocolado uma denúncia técnica alertando para irregularidades no local da audiência. Entre os problemas apontados estavam a ausência de alvará emitido pelo Corpo de Bombeiros, falhas graves no sistema de combate a incêndios — como a inexistência de extintores, mangueiras danificadas e amarradas com fitas plásticas — além da falta de sinalização adequada de emergência. Todas essas falhas representam descumprimento de normas técnicas obrigatórias e colocam em risco a segurança dos participantes.
“Mesmo diante dos alertas, a empresa responsável, Termo Norte Energia, apresentou apenas uma declaração genérica da Secretaria de Cultura do DF, sem validade para fins de segurança”, pontuou Wurdig. A situação levou o Ibama a suspender a audiência às 19h45, conforme registrado em ata oficial.
O que diz a ata de reunião do IBAMA
Conforme registrado em ata oficial do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o evento foi iniciado às 19h10, mas foi interrompido às 19h45 devido à intensa manifestação de moradores e ativistas contrários ao projeto.
Durante a apresentação do órgão ambiental, manifestantes gritaram palavras de ordem como “Fora Termelétrica”, “Xô Termelétrica” e “Salve o Rio Melchior”, além de críticas à possível remoção de uma escola da região.
Diante do alto nível de ruído e da inviabilidade de prosseguir com os trabalhos, a mesa diretora da audiência — composta por técnicos e coordenadores do Ibama — decidiu suspender a reunião por falta de condições mínimas para sua realização.
A audiência pública integra o processo de licenciamento da UTE Brasília, de responsabilidade da empresa Termonorte, conforme previsto pelas resoluções do Conama nº 01/1986 e nº 09/1987.
Licenciamento sob contestação
A UTE Brasília é um projeto movido a gás natural com capacidade de 1.470 MW, prevista para ser instalada em área sensível de Samambaia, próxima ao rio Melchior — um curso d’água já degradado e classificado como Classe IV, o pior nível de qualidade hídrica. A mobilização popular, reunida na campanha #XôTermelétrica, se intensificou nas Regiões Administrativas de Samambaia, Recanto das Emas, Ceilândia e Sol Nascente.
Vitórias judiciais e precedentes ambientais
Além da suspensão da audiência, o Instituto ARAYARA obteve recentemente outra vitória no campo jurídico: a Agência Reguladora de Águas do Distrito Federal (ADASA) suspendeu as outorgas hídricas do projeto, após Ação Civil Pública ajuizada pela organização.
“A suspensão da outorga é um marco histórico na litigância climática no Brasil. Mostra que é possível frear projetos fósseis com base técnica, jurídica e mobilização social”, afirma Juliano Bueno de Araújo, diretor técnico da ARAYARA. Segundo ele, o caso da UTE Brasília poderá servir de precedente para barrar outros empreendimentos semelhantes em áreas urbanas e ambientalmente vulneráveis.
Em março deste ano, a 9ª Vara Federal Cível do DF também já havia determinado o adiamento da primeira audiência pública sobre o projeto, reforçando a fragilidade legal do processo de licenciamento.
Crise hídrica e racismo ambiental
Para o diretor técnico da ARAYARA, Juliano Bueno de Araújo, o projeto da UTE Brasília representa não apenas um risco ambiental, mas também um caso emblemático de injustiça socioambiental. A região afetada concentra populações vulnerabilizadas e já sofre com os efeitos do maior período de estiagem da história local — 167 dias sem chuva em 2024.
“A instalação de uma termelétrica em pleno Cerrado, às margens de um rio degradado, retirando uma escola pública para dar lugar à queima de gás, é o retrato do racismo ambiental. A sociedade de Samambaia deu seu recado: não aceitará retrocessos em nome de uma falsa modernização energética”, conclui Araújo.