Com modelo atual, grandes indústrias pagam menos de um centavo por 1 mil litros de água
Autor: Por Ana Flávia Pilar — São Paulo
Enquanto a água se torna um bem cada vez mais escasso, empresas brasileiras instaladas em bacias hidrográficas usam grande volume desse recurso valioso e pagam muito pouco por isso. A arrecadação pelo uso da água de rios e lagos no Brasil é muito inferior ao que se pratica em países desenvolvidos — e, em muitos casos, nada é cobrado.
Um estudo feito pelo Instituto Internacional Arayara, ao qual o GLOBO teve acesso exclusivo, mostra que o país poderia arrecadar até R$ 12 bilhões por ano pelo uso da água por empreendimentos industriais, agrícolas e de infraestrutura, mas, na prática, fica com uma pequena fração disso.
Levantamento do GLOBO identificou que as outorgas concedidas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) permitem a captação de até 22,4 trilhões de litros por ano em bacias interestaduais, de competência da União, o equivalente a quase 9 milhões de piscinas olímpicas.
Desse total, dois terços vão para irrigação no agronegócio. Em seguida, vêm indústrias, como a têxtil, a siderúrgica e a de celulose, com 14,5%. No ano passado, todo esse volume de água rendeu ao governo federal apenas R$ 133 milhões.
Na média, um metro cúbico (ou 1.000 litros) de água custa menos de um centavo (R$ 0,0062) para grandes negócios. O cálculo exclui captações para consumo humano e abastecimento público. Para comparação, um consumidor doméstico em São Paulo paga R$ 37,96 por até dez metros cúbicos de água.
No nível estadual, em que faltam dados precisos sobre o volume total consumido por empresas, apenas seis unidades da federação faziam alguma cobrança em 2023 pelo uso comercial de mananciais que ficam dentro de seus limites: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Paraíba e Paraná. Juntos, eles arrecadaram R$ 384,2 milhões no ano passado.
Em 2024, Goiás, Rio Grande do Norte e Sergipe começaram a aplicar esse tipo de taxa. No Espírito Santo, a cobrança também começou, mas só na Bacia do Rio Jucu.
Ao comparar os dados do Brasil com esse tipo de cobrança em França, Espanha, EUA, Austrália, Inglaterra e Chile, com metodologia desenvolvida em 2012 a pedido da Unesco, o Arayara estima que o Brasil exporte 204 trilhões de litros de água por ano por meio de produtos, principalmente agrícolas, perdendo apenas para os americanos. Se o país seguisse o padrão de cobrança dos países comparados, teria arrecadado em 2023 quase R$ 12 bilhões, diz o estudo
As dez empresas que mais consomem água no Brasil têm autorização para captar 1,62 trilhão de litros ao ano. Os pagamentos variam, mas têm em comum o baixo custo. Em uma de suas outorgas, no Rio Doce, a fabricante de papel e celulose Suzano, por exemplo, captou 97 bilhões de litros entre janeiro e outubro deste ano ao custo de R$ 0,06 por metro cúbico.
A siderúrgica Gerdau consumiu 927 milhões de litros no período em uma outorga no Rio Paraíba do Sul. Paga R$ 0,023 por metro cúbico.
Taxas maiores poderiam estimular a economia de água nas empresas e reforçar ações de recuperação e preservação de áreas de mananciais, o destino estabelecido para a arrecadação da ANA. E não faltam motivos. Levantamento do MapBiomas Águas, com dados de 2023, aponta queda de 1,5% na área coberta por água no território nacional, em comparação com a média entre 1985 e 2023.
A situação é mais alarmante no caso dos corpos hídricos naturais (como rios e lagos), que encolheram 30,8% — ou 6,3 milhões de hectares — em relação a 1985. Seis das doze principais bacias hidrográficas do país registraram níveis abaixo da média histórica no último ano.
Seca no São Francisco
O Rio São Francisco, que nasce na Serra da Canastra, em Minas, e deságua na divisa entre Sergipe e Alagoas, teve uma redução superior a 60% na vazão em certos trechos, segundo estudo da Universidade Federal de Alagoas. Mas sua bacia é a que concentra a maior quantidade de outorgas. São 8.328 autorizações de captação de água por negócios que consomem 11,6 trilhões de litros por ano.
A produtora de grãos e algodão Santa Colomba é a empresa que mais consome água no Brasil. Ela tem 14 outorgas que lhe permitem retirar 307 bilhões de litros por ano em dois rios da região do São Francisco. A Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) vem em seguida. Na mesma bacia, tem 22 autorizações para captar 213 bilhões de litros por ano.
O que dizem as empresas
A Suzano disse ter direito de uso, por meio de outorgas, de 565 milhões de metros cúbicos de água, mas utiliza efetivamente 66% devido a processos internos para aumentar a eficiência no consumo. Do montante captado, cerca de 85% são recirculados no processo produtivo antes de serem tratados e devolvidos ao ambiente. A companhia tem como meta reduzir em 15% a água captada nas operações industriais até 2030.
A Gerdau informou que não poderia comentar porque na ocasião seus executivos estavam no período de silêncio que antecede a divulgação do balanço financeiro. A Santa Colomba não respondeu.
A Eletrobras, controladora da Chesf, informou que seu uso de água está em conformidade com as exigências legais. Segundo a empresa, somente em 2023, suas hidrelétricas pagaram mais de R$ 206 milhões em compensação financeira por uso de recursos hídricos, conforme definido em lei.
Faltam comitês, inclusive na Amazônia
A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) estabelece que a cobrança sobre o uso da água deve financiar ações de recuperação de bacias, incentivo a investimentos em despoluição, conscientização do usuário sobre o valor desse recurso e promoção de tecnologias limpas e que reduzam o consumo. A arrecadação deve ser aplicada na mesma bacia de onde sai a água, financiando entidades locais e projetos que garantam a perenidade dos corpos hídricos.
No entanto, a cobrança só pode ser estabelecida pelos Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs), compostos por representantes do setor público, da sociedade civil e dos usuários (ou seja, as empresas). Os CBHs podem ser estaduais ou interestaduais, mas a maior parte das bacias do país ainda não tem um, o que impede a cobrança pelo uso da água.
Segundo a ANA, atualmente, há 10 CBHs interestaduais. Cobram pelo recurso os complexos hidrográficos de Paraíba do Sul, Piracicaba-Jundiaí, São Francisco, Doce, Paranaíba, Verde Grande e Grande. As de Parnaíba, Piranhas-Açu e Paranapanema têm comitês, mas ainda não cobram pela água. Outras grandes bacias do país, como a Amazônica, Atlântico Sul e as dos rios Uruguai e Paraguai sequer têm CBH. Só da Região Hidrográfica Amazônica, empresas somam autorizações para tirar 1 bilhão de litros de água por ano sem pagar nada.
— Em bacias urbanas, especialmente nas capitais, a sociedade civil é representada nos CBHs por ONGs, universidades, sindicatos. Quando a bacia tem finalidade agrícola, a maior parte vem do setor rural — diz Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica, apontando que representantes de grupos industriais e do agronegócio frequentemente integram os CBHs e ajudam a decidir como é feita a cobrança pelo uso da água.
Consumo humano deve ser prioridade
Ainda conforme a PNRH, o consumo humano e de animais deve ser priorizado em momentos de escassez de água, o que nem sempre acontece. Especialistas destacam que, na concessão das outorgas, não é levada em conta a resiliência do corpo hídrico. Boa parte das autorizações tem validade longa, de até 30 anos.
— Em uma situação de seca, o que ocorre com as outorgas? Elas são revisadas? Isso só acontece quando a água acaba? Não existe um plano preventivo? — questiona Malu.
O Complexo Industrial e Portuário de Pecém (CIPP), no Ceará, tem como principal fonte de água a mesma que abastece a população da Região Metropolitana de Fortaleza. O Açude Sítios Novos, construído em 1999 pelo governo estadual para abastecer o CIPP, secou em 2016.
Desde então, parte do fluxo para as indústrias vem do Reservatório Castanhão, que recebe água do São Francisco por meio de um projeto de integração de bacias. As outorgas concedidas a três empresas no CIPP totalizavam 2.509 litros por segundo em 2017, o que equivaleu a 216,8 milhões de litros de água por dia num ano em que o estado viveu uma seca histórica. Os dados são de uma nota técnica daquele ano, do professor Alexandre Araújo Costa, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
— Para atrair grandes empresas para o complexo, o governo cearense oferece, entre outras coisas, água a um custo muito acessível. Mas é a mesma que seria tratada para o consumo humano — diz Jader Santos, professor do Departamento de Geografia da UFC.
Procurados, ANA e governo do Ceará não retornaram.
Juliano Bueno, que integra o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, avalia que a estrutura legal de captação de água no país está obsoleta há pelo menos 20 anos. Segundo ele, há concessões que prevalecem sobre o abastecimento da população mesmo em bacias sob estresse hídrico.
— Por ter bastante água, o país não tinha cuidados, mas esse tempo acabou e entramos num novo cenário. Os grandes usuários, que desperdiçam muita água, vão precisar de investimentos tecnológicos para economizar esse recurso e redesenhar seus negócios. A água garantidamente vai ficar mais cara para todos — diz.
Colaborou Rafael Garcia
Foto: Custódio Coimbra/ O Globo