“É visível que, quando a população é de outra classe e de outra cor do que quando a população é vulnerável, negra, pobre e rural, essas barragens não são construídas”
Completados neste 25 de janeiro dois anos do rompimento da barragem da megaempresa Vale em Brumadinho (MG), não há qualquer pessoa cumprindo pena pela morte de pelo menos 270 almas e outras 11 que continuam desaparecidas em meio à lama de rejeitos da mineração.
Na sexta-feira, 22, representantes da Vale S/A e do governo de Minas mais uma vez debateram o valor da multa devida ao governo de Minas Gerais pelo desastre cujos efeitos ainda permanecerão por um bom tempo, enquanto moradores impactados – nenhum acordo foi fechado.
As populações impactadas ainda buscam reparações, cíveis e criminais e exigem a manutenção do auxílio emergencial e indenizações que a Vale foi obrigada a pagar.
Mesmo a semântica ajuda pouco. Representantes da Justiça, do governo do Estado de Minas e a imprensa variam na suavidade com que tratam as centenas de mortes derivadas do crime corporativo praticado pela Vale em Brumadinho.
Ora chamado de desastre, em outras vezes, de tragédia e na maioria das vezes pelo nome técnico de “rompimento da barragem”, o “fenômeno”, por assim dizer, recebe do professor Luiz Wanderlei, uma classificação mais direta e precisa.
É uma tragédia que sobrevive nas pessoas, é um desastre ambiental e social permanente que continua se reproduzindo diariamente e, sobretudo, é um crime, devido à uma diversidade de ilegalidades e crimes ambientais e sociais”, afirma Wanderey, que dá aulas de geografia na Universidades Federal Fluminense e do Estado do Rio de Janeiro e integra o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
Para ajudar a manter viva a lembrança que alimenta a luta por justiça, Arayara vai trazer até a sexta-feira (29) uma série de entrevistas com vários representantes das populações impactadas pela tragédia ou de autoridades que também procuram fazer justiça – e cujas estórias não devem ser soterradas sob a lama do esquecimento.
A primeira das entrevista é esta que segue e que está na íntegra aqui. Trata da opção econômica que o Brasil fez pela mineração para exportação, que tem seu epicentro nos estados de Minas Gerais e do Pará, e que é a responsável por fenômenos do tipo Brumadinho.
“O rompimento de barragens é algo do modus operandu da mineração em escala global. Sobretudo, na periferia global, no Sul Global, onde o Brasil se inclui”, explica Wanderley, ao definir a posição do País na geopolítica global da mineração.
Ele também integra outra organização dedicada ao tema do modelo mineral brasileiro, suas consequências para a economia, seus impactos sociais e ambientais, as estratégias dos grandes grupos econômicos que atuam na mineração.
Trata-se do grupo de pesquisa acadêmica Poemas (Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade), que investiga o comportamento das grandes corporações de mineração, suas estratégias nos mercados local, nacional e global, e as relações dos desastres com planos das corporações s frente aos preços, concorrentes, os Estados e as comunidades locais que são atingidas.
“Esse é um modelo que não visa a extrair minério para o desenvolvimento nacional”, conclui. “No contexto após 2011, com os preços do minério de ferro caindo, a mineradoras passam a produzir numa velocidade maior para compensar as perdas da queda do valor do minério, sobretudo para quebrar seus competidores menores e ganhar e fazer monopólio de mercado”, diz Wanderley, que planeja lançar, em 2021 o Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil.
Ele é pragmático quanto à capacidade de o estado brasileiro controlar as megacorporações da área mineral.
Do ponto de vista institucionalizado, essas corporações dominam todos os campos. Elas estão totalmente dentro do Estado. Elas são o Estado. Seja pela concepção do próprio Estado. Gestores privados saem da gestão privada e vão para a gestão pública onde implementam uma perspectiva privada. Posteriormente eles voltam para a gestão privada, com informações privilegiadas e contatos nos Ministérios e Secretarias, e flexibilizando licenciamentos. Hoje não existe um mecanismo de controle”.
Wanderley e seu grupo se dedicam também a estudar – e chegaram a produzir um relatório sobre o assunto – a legislação que regulamenta a segurança das barragens e, nesse aspecto, destaca que, também no campo da mineração, o racismo que caracteriza a sociedade brasileira se expressa de forma bruta.
“O racismo se agrava quando se olha o perfil populacional dos mais vulneráveis por essas barragens e os que mais sofrem com os desastres, de Brumadinho e Mariana. Uma percentagem significativa dos atingidos era de pessoas negras. Isso é algo que se repete no modelo mineral brasileiro, que é racista desde a sua origem colonial e reproduz sob outras formas. Na forma da violência de muitos desses indivíduos , e também nas remoções de famílias e nas desapropriações irregulares de indivíduos que estão abaixo de barragens”, afirma.
“É visível que (quando) a população é de outra classe e de outra cor, essas barragens não são construíras ou construídas com muitas outra compensações que não quando a população é vulnerável, negra, pobre e rural”, completa.
Porém, o professor se mostra mais otimista quando o assunto é a organização da sociedade civil. “Do ponto de vista local, das comunidades, existe uma resistência que vem surgindo na última década. Surgiram movimentos críticos à mineração , entre os quais o Comitê , o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração, o Movimento dos Atingidos por Barragens e Justiça nos Trilhos, organizações governamentais e outros movimentos sociais. Mas, a força dessas mineradoras nos municípios é altíssima, frente aos prefeitos, à massa da população que é manipulada com promessas fictícias de emprego, renda, melhoria das condições de vida , desenvolvimento”.
A entrevista completa você pode ouvir aqui: