O ano de 2020 foi um marco histórico para a ação climática, tanto pelas conquistas como pelos desafios.
Começando pelos últimos, 2020 será lembrado como o ano em que pela primeira vez não foi realizada a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC), em função das restrições necessárias para conter a pandemia da covid-19.
A 26a COP foi adiada para o final deste ano que se inicia, e será realizada em Glasgow, Escócia. Também foi em 2020 que o segundo maior emissor de gases de efeito estufa, os EUA, saíram oficialmente do Acordo de Paris, com a formalização da denúncia do Acordo pelo presidente Donald Trump, que se encontra em fim de mandato.
No lado das conquistas, 2020 também deixou sua marca. No apagar das luzes, na Cúpula da Ambição Climática, diversos líderes se reuniram para apresentar metas mais ambiciosas de redução de emissões.
Mais de 120 países já assumiram ou estão em vias de se comprometer com metas de neutralidade de emissões até a metade do século XXI.
Países como Reino Unido assumiram metas específicas, como a de não financiar mais projetos de combustíveis fósseis no exterior e de proibir a venda de veículos a combustão até 2030.
Apesar dos anúncios animadores, os desafios ainda são gigantes. Nesta década, a transição a uma economia de baixo carbono precisa virar uma realidade, e isso precisa ocorrer de modo acelerado. É nesse contexto que a litigância climática também adquiriu novas proporções em 2020. Novas ações e decisões fizeram com que a judicialização climática tenha assumido uma posição de destaque no conjunto de estratégias e ferramentas utilizadas para garantir a efetividade da governança climática nos níveis global, nacional e local.
A litigância climática no mundo: retrospectiva 2020 e casos relevantes para 2021
Comecemos por um olhar internacional, mais especificamente pelo continente europeu. A Europa é hoje um dos principais campos de batalha da litigância climática, com ações de grande repercussão recém-decididas ou em vias de serem apreciadas por órgãos judiciais e administrativos domésticos ou regionais.
Se em 2019 o ano se encerrou com uma decisão amplamente favorável ao clima nas cortes europeias – o emblemático caso Urgenda vs. Holanda -, em 2020 a última decisão de peso proferida por uma corte suprema na região lamentavelmente não teve o mesmo desfecho.
No caso Greenpeace Nordic vs. Noruega, a corte constitucional norueguesa rejeitou o pedido de um grupo de jovens e de ONGs para suspender a autorização para exploração de petróleo e gás no Ártico pelo seu potencial para agravar a mudança do clima. A corte do país escandinavo entendeu que o direito constitucional ao meio ambiente saudável não podia ser invocado para obstar a concessão de licenças para projetos dessa natureza.
Em uma outra decisão de 2020, dessa vez na Irlanda, a corte constitucional também deu uma interpretação restritiva ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, afirmando que ele não poderia servir de fundamento jurídico para impor obrigações ao governo sobre mudanças climáticas. Mesmo assim, a corte irlandesa, em ação movida pela ONG Friends of the Irish Environment, ordenou que o governo refizesse o seu plano nacional sobre mudanças climáticas por este não atender a requisitos legais, como a especificidade das ações pretendidas de mitigação e adaptação.
Para 2021, um caso a ser olhado de perto é a ação movida por 6 jovens portugueses em face de 33 países europeus perante a Corte Europeia de Direitos Humanos. A Corte deu prosseguimento à ação e pediu que os países apresentem suas razões, um andamento que foi interpretado como favorável ao pleito inicial dos jovens.
É relevante, ainda, observar o andamento de ações na França e no Reino Unido. Na primeira, uma decisão do Conselho de Estado, órgão mais alto para assuntos de direito público, ordenou que o governo francês explique em 3 meses como pretende honrar com as metas de redução de emissões inseridas em legislação nacional até 2030. A depender da resposta do governo, novas medidas poderão ser tomadas pelo órgão, ou novas portas poderão ser abertas para futuros litígios.
No Reino Unido, a organização Plan B Earth, uma das autoras do importante litígio sobre a construção da terceira pista de pouso do aeroporto de Heathrow, um dos mais importantes precedentes sobre a compatibilidade de licenças para projetos e planos de infraestrutura com compromissos climáticos, afirmou que planeja levar o caso a instâncias da União Europeia (como a própria Corte Europeia de Direitos Humanos), após decisão da corte suprema do país que reverteu uma decisão de tribunal inferior inicialmente favorável ao clima.
Nos EUA, país com o maior número de casos climáticos no mundo, as ações que pedem a responsabilização das empresas da indústria de combustíveis fósseis por suas emissões históricas seguem seu caminho tortuoso neste ano de 2021. Dentre elas, a que possivelmente terá relevante impacto será a ação Baltimore vs. BP et al, em que a suprema corte dos EUA analisará questões procedimentais relativas à competência para o julgamento dessas ações. A indústria tenta transferi-las para o judiciário federal, visto como menos rigoroso quanto à responsabilidade civil das empresas pelo aquecimento global. Dezenas de outras ações sobre a validade de licenças para projetos poluentes estão pendentes de julgamento.
Sob o novo mandato do presidente-eleito Joe Biden, é esperado que haja importantes movimentações no tabuleiro do xadrez das ações judiciais dos EUA. Isto já ficou claro com a desistência por parte da GM de figurar como parte interveniente em ação movida pela Union of Concerned Scientists em face do governo dos EUA sobre a competência dos estados para adotar padrões de emissão veicular.
Por outro lado, à medida em que Biden coloque novamente em vigor regras que foram desregulamentadas por Trump, como a própria eficiência de motores de veículos e emissões por termelétricas, é possível que ações impetradas por empresas que se sintam afetadas venham a se tornar mais frequentes.
Para fechar o panorama internacional, ações climáticas em outras jurisdições como o Canadá e a Austrália também ditarão as tendências para 2021 e, em alguns casos, até mesmo para a década. É o caso da inovadora ação movida por uma jovem em face do governo australiano, alegando que este tem falhado com seus deveres fiduciários e com o dever de informar os detentores de títulos do tesouro australiano sobre os riscos que os papéis carregam dado o potencial impacto financeiro das mudanças climáticas sobre a rentabilidade dos ativos.
Recentemente, o autor de uma ação em face de um fundo de pensão australiano, Mark McVeigh, selou um acordo pelo qual o fundo se comprometeu a mensurar, monitorar e reportar sua pegada de carbono, em linha com a Task-Force on Climate-related Disclosures (TCFD). No Canadá, a corte suprema está pendente de decidir em caso emblemático sobre a constitucionalidade de legislação local sobre precificação de carbono.
Os casos canadense e australianos indicam que a litigância sobre os deveres jurídicos de administradores, gestores de ativos de terceiros e conselheiros de companhias tenderão a se tornar mais frequentes, na esteira da intensificação do ativismo por parte de acionistas para que empresas e governos sejam mais aderentes a planos de descarbonização e de sustentabilidade. As ações judiciais iniciadas por acionistas (shareholder lawsuits) questionando decisões e políticas corporativas já são realidade em países como Polônia, África do Sul e Austrália.
O ano da virada: litigância climática no Brasil em 2020 e expectativas para 2021
O ano de 2020 foi especialmente histórico no envolvimento do judiciário com as questões climáticas no Brasil. Foi o ano em que a mudança do clima chegou ao Supremo Tribunal Federal brasileiro, em pelo menos 3 ações paradigmáticas: a ação do Fundo Amazônia, a ação do Fundo Clima e a ação sobre o PPCDAm (Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia).
As duas primeiras ações foram conduzidas de modo bastante democrático pelo STF, com a realização de audiências públicas marcadas pelo caráter participativo e plural. Na audiência do Fundo Clima, realizada em setembro de 2020, estiveram presentes alguns dos maiores expoentes da ciência climática brasileira, assim como empresários de renome, ambientalistas reconhecidos em suas áreas e economistas de prestígio. Além disso, representantes do governo puderam fazer suas explanações ao relator, Ministro Luís Roberto Barroso.
Na ação do Fundo Amazônia, houve um debate com caráter marcadamente técnico sobre as políticas de monitoramento e controle do desmatamento, com explicações detalhadas sobre os sistemas oficiais de sensoriamento remoto e estudos sobre sobre rastreamento de cadeias produtivas quanto à sua pegada ambiental e climática.
Assim como nas duas primeiras ações, a ADPF sobre o PPCDAm foi impetrada por partidos políticos, um grupo de atores que tem levado ao STF as principais ações recentes sobre a condução da política ambiental pelo atual governo. Nessa ação em específico, uma dezena de organizações independentes da sociedade civil endossou o pedido, que contempla a obrigação de que o governo reduza o desmatamento ao índice estipulado na Política Nacional sobre Mudança do Clima (80% em relação a 2005), uma possível moratória do desmatamento e a criação de um comitê independente para acompanhar, por meio de indicadores e dados acessíveis, as políticas do governo nessa área crucial para os objetivos climáticos do Brasil.
É esperado que as primeiras decisões em cada uma dessas ações sejam proferidas em 2021. Há, neste momento, um grau de incerteza sobre o tipo de provimento judicial que será ofertado pelo STF, mas as audiências públicas sinalizaram que a corte está atenta ao caráter estrutural dos problemas que acometem a governança ambiental e climática brasileira, e que qualquer decisão terá uma forte âncora normativa na própria Constituição e nos precedentes mais importantes no mundo em matéria climática, como o caso Futuras Gerações vs. Colômbia, o caso Leghari vs. Paquistão e o já mencionado caso Urgenda.
Em 2020, uma outra corte superior, o Superior Tribunal de Justiça, também proferiu suas primeiras decisões diretamente relacionadas à mudança climática, em ação movida pelo Ministério Público em face de companhias aéreas pelas emissões dos pousos e decolagens no aeroporto de Guarulhos (SP) e em ação movida pela Associação das Distribuidoras de Combustíveis em face do programa RenovaBio (Política Nacional de Biocombustíveis). No primeiro caso, o STJ manteve decisões de instâncias inferiores e julgou que as emissões dos pousos e decolagens são lícitas, apesar de ainda caber recurso de tal decisão. Na segunda ação, o STJ manteve a cassação de liminar que suspendia os prazos do cronograma de aquisição de Créditos de Descarbonização (CBios) pelas distribuidoras.
As decisões do STF e do STJ, tanto as tomadas como as pendentes, apontam para algumas tendências.
A primeira é a reafirmação, no Brasil, de tendência global de judicialização da omissão governamental em clima como uma falha que deve, em tese, ser conhecida e provida pelos tribunais por afetar os deveres do Estado em matéria de proteção dos direitos fundamentais.
A segunda é a possibilidade de que a litigância se diversifique cada vez mais para enfrentar não apenas temas constitucionais, mas também aspectos de direito civil (responsabilidade civil) e empresarial, com potenciais releituras de conceitos arraigados do direito privado (como lícito versus ilícito; dano versus impacto; previsível versus não previsível).
A terceira é a diversificação não somente dos aspectos substantivos, mas também das avenidas procedimentais e dos atores – esta, aliás, uma característica já diferenciadora da litigância climática no Brasil dado o peso do Ministério Público e dos partidos políticos. O destaque, nesse sentido, são as ações com atores privados corporativos figurando no polo ativo, como é o caso da ação do RenovaBio.
Além dessas, importante ressaltar que o Brasil ainda possui uma riqueza de ações que tramitam em esferas judiciais inferiores que, em 2021, poderão ter desfecho ou mesmo ser replicadas, como é o caso das ações que questionam a inserção do componente climático nos estudos de impacto ambiental de projetos como exploração de minas (ex.: caso da Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul) e instalação de outras infraestruturas de combustíveis fósseis (como a geração de energia por fontes tradicionais).
De outro lado, ações que tratem questões ambientais domésticas sob um viés internacional – ou melhor, transnacional – também são esperadas, como se pode ver pela notificação enviada ao grupo Casino em 2020 por não tomar medidas necessárias para excluir de sua cadeia de abastecimento os fornecedores ligados ao desmatamento ilegal na Amazônia e Cerrado, sob pena de ser acionada judicialmente na França pela Lei de Vigilância. Ações dessa natureza podem ser impulsionadas pelo crescente número de leis sobre devida diligência na cadeia de suprimentos em países europeus.
Para 2021, portanto, governos e empresas serão cada vez mais compelidos, pela via judicial e extrajudicial, a assumir compromissos mais ambiciosos e a efetivar os já assumidos para a consecução dos objetivos do Acordo de Paris. Relacionando regulação econômica, direitos humanos, fluxos financeiros, cadeias de suprimento globais e impactos globais de projetos locais, os litígios climáticos seguirão aparando arestas na governança climática da década de 2020.
Caio Borges é Coordinator – Law and Climate Program no Instituto Clima e Sociedade (iCS). Leia o original aqui.