Entrevistada pelo Instituto Internacional Arayara, a bióloga responsável Biofábrica de Corais, Maria Gabriela Moreno Ávila, explica fenômeno que ameaça a vida marinha na costa brasileira
A Conferência das Partes (COP) da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB) ocorre a cada dois anos, constituindo o principal fórum internacional para promover a cooperação em prol da conservação e do uso sustentável da biodiversidade.
Esta edição do evento é a primeira após a adoção do Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, firmado na COP15 em dezembro de 2022. Esse acordo global estabelece um plano de ação para que os 196 países signatários avancem em metas nacionais, visando deter e reverter a perda de biodiversidade até 2030. Entre os compromissos propostos pela ONU estão:
– Proteger ao menos 30% das áreas terrestres, marinhas e costeiras do planeta;
– Restaurar ao menos 20% dos ecossistemas degradados de água doce, marinhos e terrestres, com foco em ecossistemas prioritários;
– Reduzir pela metade a introdução de espécies invasoras conhecidas ou com potencial de ameaça;
– Diminuir em 50% a perda de nutrientes e em dois terços o uso de produtos químicos prejudiciais à biodiversidade, em especial pesticidas, além de erradicar o despejo de resíduos plásticos no meio ambiente;
– Mitigar o impacto das mudanças climáticas na biodiversidade e fomentar soluções baseadas na natureza e em ecossistemas para adaptação e resiliência;
– Elevar em 200 bilhões de dólares os fluxos financeiros internacionais destinados aos países em desenvolvimento.
Ecossistemas marinhos em risco
As discussões da COP16 destacam a urgente necessidade de ações coordenadas para mitigar o aquecimento global e proteger ecossistemas marinhos frágeis, vitais tanto para a biodiversidade quanto para as comunidades que dependem deles.
Entre os temas centrais está o aquecimento dos oceanos, provocado pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa, que causa impactos devastadores sobre os recifes de corais. O fenômeno do branqueamento, um dos sinais mais alarmantes das mudanças climáticas e da degradação dos ecossistemas marinhos, ameaça a sobrevivência desses corais, essenciais para a saúde dos oceanos.
De acordo com dados da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e UOL, o aumento recorde da temperatura do oceano em 2024 causou uma destruição sem precedentes nos corais da costa de Alagoas. Cientistas da UFAL relataram a morte de mais de 90% das comunidades de corais, consequência direta das mudanças climáticas e do fenômeno El Niño. A temperatura da água atingiu 34°C, ultrapassando o limite de tolerância dos corais, como o coral-de-fogo e o coral-couve-flor, exclusivos do Brasil.
Buscando reverter esse cenário, no litoral de Ipojuca (PE), a Biofábrica de Corais começou a atuar em 2017 na recuperação dos recifes de Porto de Galinhas. Com autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Startup lidera um projeto de restauração inovador, coordenado pela bióloga María Gabriela Moreno.
Em entrevista para o Instituto Internacional Arayara, a bióloga compartilha sua visão sobre as causas e os impactos do branqueamento dos corais ao longo da costa brasileira e explica como a Biofábrica de Corais trabalha para restaurar esses recifes, essenciais para a biodiversidade e a resiliência das comunidades costeiras.
ARAYARA – Você poderia explicar o que é o branqueamento dos corais e por que isso acontece?
Maria Gabriela – O branqueamento de corais é um fenômeno que ocorre quando o coral, que é um animal marinho, expulsa microalgas chamadas zooxantelas, que vivem no interior de seu tecido. Essas algas são muito importantes para a sobrevivência dos corais, pois fornecem a maior parte da energia que eles precisam por meio da fotossíntese. Elas também são responsáveis pela cor característica desses organismos. Sem essas microalgas, os corais perdem essa coloração e ficam brancos. É por isso que o fenômeno é conhecido como branqueamento de corais. Se o estresse ambiental persistir, os corais podem morrer, pois ficam enfraquecidos pela falta de energia e nutrientes que as zooxantelas fornecem.
ARAYARA – Há décadas está acontecendo o fenômeno de branqueamento dos corais e pesquisadores brasileiros achavam que isso estava longe de acontecer no Brasil. Mas, o que mudou para esse cenário se transformar desta maneira?
Maria Gabriela – Os recifes de corais do Brasil eram considerados um refúgio contra o aquecimento global e menos suscetíveis ao branqueamento, pois as costas brasileiras se caracterizam por águas muito turvas, devido ao sedimento trazido pelas correntes oceânicas do rio Orinoco e do rio Amazonas. Isso criava uma barreira biogeográfica e um alto endemismo no país. A alta turbidez causada pela sedimentação reduzia a irradiância solar, ajudando a amortecer o aumento da temperatura do mar. No entanto, nas últimas décadas, o branqueamento de corais tornou-se uma preocupação global e passou a afetar os corais em todo o mundo, inclusive no Brasil. O aumento da temperatura superou as metas globais e se manteve por períodos mais longos, afetando até águas mais profundas e provocando o branqueamento em regiões anteriormente menos impactadas.
ARAYARA – Quais as principais causas do branqueamento dos corais?
Maria Gabriela – As principais causas do branqueamento dos corais estão relacionadas às mudanças climáticas, sendo o aquecimento global e o aumento da temperatura dos oceanos os fatores mais significativos. Quando a temperatura do mar sobe, as zooxantelas, microalgas que vivem no tecido do coral, começam a produzir substâncias tóxicas para o coral, que, em resposta, as expulsa, resultando no branqueamento.
Outra causa importante é a acidificação dos oceanos, que ocorre devido ao aumento da concentração de dióxido de carbono (CO₂) absorvido pelos mares, tornando a água mais ácida. Isso afeta a formação do esqueleto de carbonato dos corais, enfraquecendo-os e tornando-os mais vulneráveis ao branqueamento.
Além disso, a poluição também pode desencadear o branqueamento. Poluentes como pesticidas, esgotos e sedimentos causam estresse nos corais, levando à perda das zooxantelas. Alterações na qualidade da água, como mudanças na salinidade, também contribuem para esse processo.
ARAYARA – Qual o impacto da poluição e da exploração de petróleo na região sobre esse processo?
Maria Gabriela – O aumento da poluição costeira e o desmatamento próximo aos recifes de corais podem contribuir para o aumento de sedimentos e da carga de nutrientes na água do mar, afetando a qualidade da água e causando estresse nos corais. Altas concentrações de nutrientes, como nitrogênio e fósforo, provocam a proliferação de algas em um processo conhecido como eutrofização. As algas competem com os corais por luz e espaço, o que impede as zooxantelas – algas simbióticas que vivem no tecido dos corais – de realizar a fotossíntese, enfraquecendo os corais e tornando-os mais suscetíveis ao branqueamento.
Além disso, a exploração de petróleo pode gerar impactos diretos e indiretos sobre os corais. Um derramamento de petróleo é extremamente perigoso, pois o óleo pode sufocá-los ao se depositar sobre eles, impedindo também que suas zooxantelas façam fotossíntese, o que resulta em branqueamento. Os compostos tóxicos presentes no petróleo afetam a saúde dos corais e podem danificar seus tecidos.
A combinação de poluição, exploração de petróleo e aquecimento global torna os corais menos resistentes às variações de temperatura. Um coral que já está sob estresse – causado por qualquer uma dessas razões – terá menos capacidade de se adaptar a temperaturas elevadas e de se recuperar de eventos de branqueamento. A longo prazo, isso pode levar à morte desses ecossistemas.
ARAYARA – A acidificação dos oceanos tem relação direta com esse processo? Mas e o que causa a acidificação?
Maria Gabriela – Como mencionei anteriormente, a principal causa do branqueamento dos corais é o aumento da temperatura, mas essa não é a única ameaça que eles enfrentam, nem o único fator que contribui para esse fenômeno. Existem outros fatores que atuam sinergicamente, prejudicando a saúde desses ecossistemas. Um exemplo é o aumento da acidificação dos oceanos, causada pelas emissões de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO₂).
O que acontece? Os oceanos são grandes absorvedores de CO₂ e, à medida que as emissões aumentam, eles absorvem mais desse gás, o que afeta sua química. Isso reduz a quantidade de carbonato de cálcio disponível, o principal composto utilizado pelos corais para formar seus esqueletos calcários. Com menos carbonato de cálcio disponível, os esqueletos dos corais se tornam mais fracos, deixando essas estruturas mais vulneráveis ao branqueamento e a outras doenças.
ARAYARA – Você acredita que as metas globais de redução de emissões podem impactar diretamente esse fenômeno?
Maria Gabriela – Olha, eu acredito que sim. Essas metas foram criadas justamente para mitigar o impacto das mudanças climáticas sobre o ambiente. Então é muito importante respeitar e cumprir os compromissos internacionais como o Acordo de Paris para limitar esse aumento da temperatura a 2 ºC . Então, para isso é necessário fazer a transição para energias renováveis, como a solar ou a energia hídrica, e para isso é necessário que o Estado invista em tecnologias e criem políticas que promovam esse uso eficiente em todo o setor, tanto industrial como residencial. Então, eu acho que esse é um caminho longo, com muitos obstáculos, mas é possível reduzir esse aumento de temperatura e reduzir o impacto que está tendo em emissão de gás e efeito de estufa sobre os recifes de coral.
ARAYARA – Quais são as principais consequências do branqueamento dos corais para a biodiversidade marinha no Brasil?
Maria Gabriela – A principal consequência será a perda de habitats para muitas espécies que dependem desse ecossistema para proteção e alimentação. Essa perda de habitat reduzirá a disponibilidade de nichos ecológicos, levando ao declínio de diversas espécies que vivem exclusivamente nesses locais. Além disso, haverá um impacto significativo nas espécies endêmicas, aquelas que só existem nessas áreas específicas, como no Brasil. O país é caracterizado por ter mais de 49% de espécies endêmicas, que são especialmente vulneráveis ao branqueamento.
Um exemplo disso é o coral Mussismilia hispida, que já foi uma das espécies mais abundantes, mas hoje é uma das mais vulneráveis ao branqueamento, além de ser uma das principais formadoras de recifes no Nordeste. Atualmente, ao mergulhar em Porto de Galinhas, Tamandaré e Maragogi, raramente encontro uma colônia de coral completamente saudável. Desde que cheguei aqui, em 2018, observei cerca de seis colônias gigantes de Mussismilia, mas agora dificilmente encontro mais de uma ou duas, e apenas alguns pólipos vivos em uma dessas colônias. Isso é um claro impacto do branqueamento e da poluição.
Outro fator que também pode influenciar é a proliferação de espécies invasoras, que afeta o equilíbrio ecológico dos recifes. Essas espécies invasoras podem alterar a dinâmica do recife e reduzir ainda mais a biodiversidade, tornando esses ecossistemas menos resilientes a impactos futuros.
ARAYARA – Você acredita que ainda há tempo para salvar os recifes, ou estamos em um ponto de não retorno? Qual é a relação dos combustíveis fósseis com essa história?
Maria Gabriela – Olha, eu acredito que ainda estamos a tempo de salvar os recifes de corais. Se não acreditasse nisso, meu trabalho perderia o sentido, né? A missão da Biofábrica de Corais é restaurar esses ecossistemas, integrando a comunidade no processo de recuperação. Acredito que atividades como a criação de áreas de conservação, a restauração ativa desses ecossistemas, a conscientização e o engajamento da comunidade, além da criação de novas fontes de renda por meio de práticas ecologicamente mais sustentáveis e a redução do uso de combustíveis fósseis, podem ajudar a mitigar os impactos das mudanças climáticas sobre esses ambientes.
ARAYARA – Em termos de soluções, o que pode ser feito para frear ou reverter o branqueamento dos corais?
Maria Gabriela – Bom, eu acho que existem dois tipos de ações que podem ser realizadas: as globais e as locais. Entre as ações globais, discutimos um pouco sobre isso anteriormente. É fundamental cumprir os acordos internacionais para limitar o aumento da temperatura a, no máximo, 1,5 graus Celsius. Para isso, é necessário realizar a transição para energias renováveis e reduzir o uso de combustíveis fósseis.
Em um nível mais local, é importante estabelecer um maior número de zonas de proteção marinha, pois é vital promover programas de restauração ativa e comunitária, diminuir a poluição, conscientizar e educar a população, além de criar fontes de renda mais sustentáveis. Bom, acho que é isso. Por isso, nós trabalhamos nessas frentes locais de mitigação.
ARAYARA – Como funciona a Biofábrica de Corais?
Maria Gabriela – O processo inclui a fragmentação de corais, técnica que estimula seu crescimento e permite sua fixação em bases ecológicas para cultivo nos recifes ou em tanques do Centro de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Nordeste (Cepene), em Tamandaré. Uma vez atingido o tamanho ideal, os corais são reintroduzidos nas áreas degradadas, contribuindo para a preservação dos recifes e o equilíbrio dos ecossistemas marinhos.