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ARAYARA na Mídia: PL da Devastação: razões para o veto

Projeto que afrouxa regras para licenciamento ambiental põe Brasil como um país insustentável em meio à crise climática global

PL 2159/2021, em vias de ser sancionado ou vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, promove mudanças profundas — e perigosas — na legislação ambiental brasileira. As alterações propostas, apesar de apresentadas sob o discurso da “desburocratização”, significam, na prática, um desmonte do sistema de licenciamento ambiental construído ao longo de décadas. Diante da gravidade do conteúdo e das suas implicações para o Estado democrático de Direito, urge que o presidente da República vete integralmente esse projeto.

A Constituição Federal de 1988 consagra o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental de todos e impõe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Essa garantia, expressa no artigo 225, não é apenas um princípio abstrato: trata-se de uma cláusula pétrea, que não pode ser suprimida nem mesmo por emenda constitucional, que dirá por uma legislação ordinária. Portanto, qualquer norma infraconstitucional que fragilize os instrumentos de proteção ambiental, como o licenciamento, é incompatível com a estrutura normativa da Constituição.

O PL 2159 representa um retrocesso institucional inadmissível, contrariando essa cláusula pétrea ao reduzir os mecanismos de controle, participação social e precaução ambiental. O veto integral é, portanto, uma exigência legal e democrática, não só nacional como global.

O texto constitucional não deixa dúvidas: é dever do Estado — incluindo todos os seus Poderes — proteger o meio ambiente. O artigo 225 estabelece essa obrigação de forma categórica. O Congresso Nacional, ao aprovar um projeto que flexibiliza de maneira indiscriminada o licenciamento ambiental, falha em cumprir esse dever constitucional. Cabe, agora, ao Poder Executivo corrigir essa distorção, vetando o projeto em sua totalidade, como um ato de defesa do interesse público e da integridade constitucional.

A Constituição também é clara ao afirmar, no artigo 170, que a ordem econômica deve estar fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, mas sempre observando a defesa do meio ambiente como princípio fundamental. A liberdade econômica, portanto, não pode ser exercida em detrimento da proteção ambiental.

Flexibilizar o licenciamento ambiental, além de inconstitucional, compromete a segurança jurídica e a sustentabilidade dos empreendimentos futuros, criando um cenário de instabilidade institucional que afasta investimentos responsáveis.

Permitir a instalação de empreendimentos sem avaliação adequada de impactos ambientais não atende ao interesse nacional e tampouco à função social da atividade econômica.

Outro ponto gravíssimo do PL 2159 é a invisibilização dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais. O projeto exclui do processo de licenciamento terras indígenas não homologadas e territórios quilombolas não titulados, ignorando que mais de 90% dessas comunidades ainda não têm seus territórios formalmente reconhecidos.

Essa exclusão é frontalmente inconstitucional, ferindo os artigos 215 e 216 da Constituição, que garantem a proteção do patrimônio cultural material e imaterial dos povos tradicionais, bem como a Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil.
A omissão do PL diante desses povos compromete direitos fundamentais, o que, por si só, justifica o veto.

Não bastasse a violação constitucional explícita de interesses coloniais para a continuidade de uma literal exploração do Brasil, sem consideração aos nossos povos e realidades, sem investimentos locais, infraestrutura, reconhecimento cultural e proteção às diversidades e, sobretudo ao meio ambiente.

É importante ressaltar que o discurso do Brasil ao mundo, em todos os mandatos do presidente Lula, sinalizaram a proteção ambiental global e evidenciaram o patrimônio ecológico brasileiro.

Se o presidente não vetar o texto, implicará no caso mais evidente de greenwashing de um Estado Nacional para os demais países. Se, por razões políticas, não for possível o veto integral — que seria o mais coerente com os compromissos de campanha de Lula e com a Constituição —, impõe-se, no mínimo, o veto a cada um dos dispositivos que representam retrocessos flagrantes.

O projeto promove uma ampliação significativa da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), estendendo-a a atividades classificadas como de médio porte e alto risco. Isso abre espaço para o autolicenciamento, enfraquecendo substancialmente os mecanismos de controle estatal, já que permite que empreendimentos se declarem aptos à operação sem uma análise técnica prévia rigorosa.

Além disso, cria-se a figura da Licença Ambiental Única (LAU), que extingue o processo gradual de avaliação, no qual licenças prévia, de instalação e de operação funcionavam como etapas complementares e fiscalizatórias. Com isso, reduz-se drasticamente as garantias de um controle contínuo sobre os impactos ambientais, favorecendo a celeridade do processo em detrimento da cautela ambiental.

Também é instituída a Licença Ambiental Especial (LAE), pensada para viabilizar projetos estratégicos definidos como prioritários pelo governo, mesmo sem uma análise técnica detalhada. Essa medida abre uma brecha perigosa para que interesses políticos se sobreponham aos critérios técnicos e científicos da proteção ambiental.

O texto ainda prevê a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias e para diversas obras de infraestrutura, justamente os setores com histórico mais significativo de impactos ambientais. Ao retirar essas atividades do campo de exigência do licenciamento, compromete-se a capacidade do Estado de prevenir danos socioambientais graves. Vale lembrar o alto uso de recursos hídricos e emissões de carbono pelas atividades agropecuárias, que seguirão desreguladas e livres para danos irreversíveis.

Outro ponto alarmante é a possibilidade de dispensa da elaboração de Estudos de Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), com base em avaliações subjetivas sobre a ausência de impactos relevantes. Isso fragiliza um dos instrumentos mais importantes de avaliação e transparência nas decisões públicas relacionadas ao meio ambiente.

O projeto também delega aos estados e municípios a definição de quais atividades devem ou não ser licenciadas. Essa descentralização, feita sem critérios mínimos e uniformes, cria assimetrias regulatórias, insegurança jurídica e riscos à proteção ambiental, especialmente em regiões com baixa capacidade técnica e institucional.

A proposta reduz ainda a força dos pareceres técnicos de órgãos como a Funai e o Iphan, que deixam de ter caráter vinculante. Com isso, ignora-se o conhecimento acumulado dessas instituições sobre os territórios e populações afetadas, esvaziando sua atuação na defesa de direitos coletivos e de patrimônios culturais e naturais.

Também é excluída a obrigação de considerar territórios indígenas não homologados e comunidades quilombolas ainda não tituladas nos processos de licenciamento, desconsiderando a realidade fundiária e os direitos dessas populações, que continuam vulneráveis aos impactos de empreendimentos.

A participação popular é esvaziada, sendo reduzida à realização de uma audiência pública simbólica, sem garantias de escuta qualificada ou de que as contribuições sejam efetivamente consideradas no processo decisório.

Por fim, o projeto rompe a articulação entre o licenciamento ambiental e a outorga para uso da água e do solo. Essa desvinculação compromete o planejamento integrado de recursos hídricos e coloca em risco o abastecimento humano e a gestão sustentável desses bens públicos.

Vetar o PL 2159/2021 é mais do que um gesto político. É um imperativo jurídico, social e civilizatório. Trata-se de defender a Constituição Federal, garantir a integridade do meio ambiente como direito das presentes e futuras gerações e honrar os compromissos nacionais e internacionais do Brasil com a justiça climática e os direitos dos povos tradicionais.

Não se trata de escolher entre desenvolvimento e meio ambiente — mas sim de escolher um desenvolvimento que respeite a Constituição, os direitos humanos e a vida.

O Brasil não pode retroceder. Vete, presidente Lula.

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Lucas Kannoa

Advogado. Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Pesquisador CNPQ/DHC com o projeto Direitos Humanos como Projeto Político de Sociedade. Professor de Direito na Estácio São Paulo

Fonte: Jota

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