Na véspera do vencimento do prazo legal para a oferta de blocos de exploração de petróleo na Bacia Potiguar – região que integra a cadeia marinha de Fernando de Noronha –, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) pretende realizar o 5º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão. Serão oferecidos 16 setores com 172 blocos, dos quais 16 estão localizados em águas profundas próximas ao arquipélago. A autorização para a operação expira em 18 de junho, e o leilão está previsto para ocorrer no dia 17.
Além da Bacia Potiguar, também serão ofertados blocos exploratórios marítimos nas bacias da Foz do Amazonas, de Santos e de Pelotas, além da Bacia de Parecis, em Rondônia, a única em terra firme incluída no pregão. A iniciativa da ANP ignora a recomendação do Ministério do Meio Ambiente, baseada em parecer técnico assinado pelo Grupo de Trabalho Interinstitucional de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás – que reúne especialistas da pasta, do Ibama e do ICMBio –, que orientou a retirada da Bacia Potiguar do processo. A operação também contraria alertas de cientistas especializados na biodiversidade oceânica da região.iba
Mais de 70 pesquisadores assinaram uma carta aberta contra o leilão na Bacia Potiguar, alegando tratar-se de “uma região de alta relevância ecológica, climática e socioeconômica, reconhecida internacionalmente por sua biodiversidade excepcional e pelos serviços ecossistêmicos que presta à vida marinha, ao equilíbrio do clima e às comunidades humanas do litoral nordestino”. O documento destaca que os blocos ofertados estão inseridos em um dos mais valiosos patrimônios naturais do Brasil – uma área classificada como Marinha Ecológica ou Biologicamente Significante pela Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU. A zona é considerada prioritária para a preservação de corais, golfinhos, tubarões, aves marinhas e espécies endêmicas. Também abriga montes oceânicos que formam um megaecossistema recifal com mais de mil quilômetros de extensão.
Esta é a terceira tentativa de leiloar lotes na região. Nas duas anteriores, não houve interessados
Os cientistas também destacam que a Bacia Potiguar apresenta baixa compatibilidade com a atividade petrolífera e alertam para o fato de que uma possível exploração vai comprometer o turismo de Fernando de Noronha, praticamente única atividade econômica local, e impactar diretamente na pesca artesanal, essencial para a subsistência dos moradores da ilha. “A modelagem nos mostra que um acidente na exploração de petróleo não vai afetar só o arquipélago, mas todo ecossistema composto pela Cadeia Norte do Brasil, conhecida como Bancos do Ceará. O óleo sobe, circula. Parte é mandada para o Norte, contaminando os manguezais ao longo da costa do Maranhão e Pará. Outra parte pode ficar retida na Bacia Potiguar, circulando por anos e causando um impacto socioeconômico irreversível”, salienta o pesquisador Mauro Maida, professor do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal Rural de Pernambuco e uma das maiores referências nos estudos sobre as correntes marinhas e o ecossistema de Noronha.
“A oceanografia é muito complexa. À medida que você vai aprofundando, as correntes no fundo do mar assumem outras direções, alcançam graus diferentes para outros itinerários, com efeitos que podem influenciar na movimentação de qualquer vazamento de óleo. Ou seja, a corrente na superfície é uma e no fundo é outra”, explica Vinícius Nora, gerente de Oceanos e Clima da Arayara Internacional, entidade que ajuizou cinco ações civis públicas contra o leilão do dia 17, uma delas especificamente sobre a oferta em Fernando de Noronha.
Estudos científicos mostram que na superfície, entre zero e 100 metros, a corrente vai do leste ao oeste, enquanto entre 220 e 500 metros, segue o sentido contrário, pegando a subcorrente sul-equatorial, que faz toda conexão entre a Bacia Potiguar e o ecossistema da Cadeia de Fernando de Noronha e o Atol das Rocas. Qualquer acidente que aconteça em uma possível exploração, o óleo vai ser transportado para toda a região – as cenas do derramamento de óleo que atingiu mais de 4 mil quilômetros da costa brasileira em 2019, causado por um único navio petroleiro, dão uma pista desse risco. Além disso, dizem os cientistas, há registros da presença de um grande redemoinho de 180 quilômetro de diâmetro na localidade, capaz de acumular substâncias tóxicas e potencializar os danos ambientais.
Operação. A ANP diz que os blocos estão a 398 quilômetros da costa e não há risco – Imagem: André Ribeiro/Agência Petrobras
“A biodiversidade está toda conectada por baixo, onde está a riqueza que há na cadeia de montanhas submersas e dá sustentabilidade para a pesca e a reprodução de outros ambientes. Quando a gente trabalha com essas modelagens em processos para licenciamento ambiental tem de pensar no pior cenário possível. E ele seria o derramamento de óleo, com vários impactos no ecossistema, que vão desde a extinção de algumas espécies ou a perda de hábitos importantes, até impactos no turismo e na pesca. O óleo pode chegar facilmente às praias de Fernando de Noronha”, destaca Lilian Hangae, chefe do Núcleo de Gestão Integrada do ICMBio de Fernando de Noronha. Em nota, a ANP nega qualquer risco de contaminação, sob a justificativa de que os blocos estão a 398 quilômetros da costa, e garante que os blocos ofertados contam com manifestações conjuntas dos ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente, contradizendo o parecer técnico do MMA, que pede a retirada da Bacia Potiguar do leilão.
Segundo a ANP, após o leilão e antes do início da exploração, as empresas que arrematarem os blocos precisarão de licença ambiental emitida pelos órgãos competentes. “Os contratos são divididos em duas fases: de exploração, na qual as empresas realizam estudos e atividades (como sísmicas, perfuração de poços etc.) para identificar a presença ou não de petróleo e/ou gás e, caso identifique, avaliar se as descobertas são ou não comerciais”, diz a nota, para completar: “Ao final da fase de exploração, a empresa decide se vai devolver o bloco à ANP ou se vai apresentar uma declaração de comercialidade e reter uma área de desenvolvimento, dando início à fase de produção. Após a aprovação do Plano de Desenvolvimento pela ANP, a área de desenvolvimento transforma-se em um campo produtor”. Segundo a ANP, 12 empresas apresentaram declarações de interesse no leilão.
Além da judicialização do pregão por iniciativa da Arayara, existe toda uma mobilização popular e da sociedade científica para a retirada da Bacia Potiguar dos setores ofertados. Há, inclusive, pressão para que o governo federal crie uma Área de Proteção Ambiental (APA) na região onde estão os bancos da Cadeia de Noronha, como forma de reconhecer a importância do megaecossistema recifal oceânico do local. “Estamos falando de uma área biológica de relevância mundial, o que faz a exploração de petróleo em cima dos montes vulcânicos da cadeia marítima de Noronha um completo absurdo”, ressalta Vinícius Nora.
Pesquisadores mobilizam-se para impedir o certame na Bacia Potiguar
Além da Bacia Potiguar, outro setor que levanta preocupação entre os ambientalistas é a oferta de quatro setores da Bacia da Foz do Amazonas, que disponibiliza 47 novos blocos para leilão. Caso sejam arrematados, eles vão se somar ao Bloco 59, leiloado há mais de dez anos e motivo de desavença interna no governo Lula, que aguarda a liberação do Ibama. Embora o próprio presidente e o Ministério de Minas e Energia não cessem de pressionar o Ibama para liberar as pesquisas exploratórias no local, a autorização continua pendente e o órgão negou a licença uma vez.
“O petróleo não é um lago de óleo que fica lá no fundo do mar. Se existir, está encrustado nas rochas. Às vezes, você tem petróleo em um bloco e o do lado não tem. E, mesmo sem ter certeza, eles querem a licença de perfuração na Foz do Amazonas porque, simbolicamente, é a abertura da porteira”, opina Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, que negou, quando foi presidente do Ibama, a exploração de cinco blocos na Foz do Amazonas. “O Bloco 59 tem o processo mais adiantado na Foz do Amazonas. Se o Ibama autorizar a exploração, vai ficar muito complicado rejeitar os outros que virão”, alerta. •
Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O ouro negro vale mais?’
Fonte : Carta Capital
Foto: reprodução/ Carta Capital/ Léo Malafaia/AFP e iStockphoto