Enquanto a perspectiva de exploração de petróleo na região da Foz do Amazonas desperta atenções ao redor do planeta, a oferta de blocos próximos a terras indígenas do Mato Grosso não ganha o mesmo destaque.
Os 21 blocos que vão ser ofertados em leilão pelo governo federal na Bacia do Parecis, no Centro-Oeste brasileiro, estão em uma área ocupada por dezenas de povos indígenas. No entanto, nenhum deles foi consultado sobre o processo.
Os riscos relacionados à indústria do petróleo se somam a outras ameaças já enfrentadas pelas comunidades, como a construção de hidrelétricas e a invasão de garimpeiros.
Possíveis impactos incluem o afluxo de trabalhadores na fase de pesquisa, e emissões de gases tóxicos e contaminação de rios em caso de exploração. A floresta tropical é a fronteira mais promissora para o setor petrolífero, abrigando um quinto das reservas recém-descobertas no mundo entre 2022 e 2024.
Veja as ideias-chave
Em 17 de junho, cinco meses antes do Brasil sediar a COP 30, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) vai ofertar 332 áreas a empresas interessadas em prospectar petróleo e gás no país. A atenção da mídia e da sociedade civil está concentrada em 47 dessas áreas, localizadas na chamada Margem Equatorial, onde fica o bloco de exploração FZA-M-59.
Localizado a 175 quilômetros da costa do Amapá e operado pela Petrobras, o FZA-M-59 está no centro de uma queda de braço. De um lado, políticos pressionam a favor da exploração – com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. De outro, ambientalistas e técnicos do Ibama apontam tremendos riscos relacionados a um projeto que pode ameaçar a vida selvagem no entorno da foz do Rio Amazonas, a costa atlântica e o bioma de países vizinhos.
Agentes do Ibama negavam o licenciamento à Petrobras por motivos técnicos, citando um alto risco de vazamento de óleo em uma área conhecida por suas fortes correntes marítimas. De acordo com estudos da própria empresa estatal, em caso de acidente, as manchas poderiam atingir oito países da América do Sul e do Caribe. No Brasil, isso significaria um desastre ambiental para os recém-descobertos recifes de coral da Amazônia e para o maior cinturão de manguezais do mundo. Também há chance de futuros riscos a territórios indígenas e comunidades de pesca artesanal no Amapá.
Após meses de intensa pressão, o Ibama está a um passo de aprovar o licenciamento da Petrobras. Segundo ambientalistas, a licença seria estendida para a exploração em outros 34 blocos já concedidos a empresas petrolíferas na mesma zona costeira, além de impulsionar o interesse do mercado nas 47 áreas que a ANP vai ofertar em junho.
Nos últimos anos, a floresta tropical se tornou a fronteira mais promissora para a indústria de combustíveis fósseis, segundo dados do Global Energy Monitor analisados pelo InfoAmazonia. Quase um quinto das reservas recém-identificadas de petróleo e gás no mundo entre 2022 e 2024 está na região amazônica, principalmente na costa norte da América do Sul, na Guiana e no Suriname – um total de 5,3 bilhões dos 25 bilhões de barris detectados.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva trava uma queda de braço com agentes ambientais para destravar a extração de petróleo na costa norte da Amazônia. Foto: Ricardo Stuckert/PR
No entanto, mais ao sul da Amazônia brasileira, essas ameaças estão passando despercebidas. “Não tivemos nenhuma informação sobre isso”, Tereza Cristina Kezonazokero, da Terra Indígena Pareci, disse à Mongabay em uma mensagem. Seu território no oeste do Mato Grosso está a apenas 10 quilômetros de um dos 21 blocos que a ANP vai ofertar no leilão de junho, na chamada Bacia do Parecis. “Estamos em busca de informações para nos organizar, para não sermos surpreendidos como já aconteceu tantas vezes”, diz.
A bacia como um todo tem 352.724 km² e está sobreposta a 41 territórios indígenas. De acordo com uma pesquisa do Instituto Internacional Arayara, uma ONG que luta contra o avanço dos combustíveis fósseis em todo o mundo, quatro dos blocos oferecidos pela ANP estão a menos de 10 quilômetros de terras indígenas – a chamada área de influência direta. Dois desses lugares, Ponte de Pedra e Estação Parecis, estão totalmente cercados pelas áreas de prospecção de petróleo e gás. “Os territórios estão literalmente ilhados”, disse em entrevista o diretor técnico do Instituto, Juliano Bueno de Araújo. No final de maio, a organização entrou com duas ações judiciais pedindo que os blocos fossem removidos do leilão.
Por e-mail, a ANP declarou que todos os blocos do Parecis “distam, no mínimo, 10 quilômetros de terras indígenas e unidades de conservação” e que sua inclusão no leilão foi aprovada pelos Ministérios de Minas e Energia e do Meio Ambiente. A agência acrescentou que não é responsável por consultar as comunidades originárias e que todas as atividades realizadas pelas empresas exigem “licenciamento pelos órgãos ambientais competentes.” Leia a resposta completa da ANP.
Os combustíveis fósseis representam uma nova ameaça em uma área que já sofre intensa pressão do agronegócio. Os municípios da Bacia do Parecis, como Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde, são conhecidos como campeões do setor no Brasil por suas plantações de soja, milho e algodão. Para facilitar a exportação de grãos, o lobby da agroindústria pressiona a favor da construção de projetos como a Ferrogrão, uma ferrovia até o Rio Tapajós que afetaria pelo menos seis territórios indígenas.
As invasões de garimpeiros e madeireiros ilegais também aumentaram nos últimos anos, segundo Sebastião Carlos Moreira, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). “A situação dos indígenas no Mato Grosso é extremamente desafiadora”, disse o representante, em entrevista. “É algo que se agrava porque há facções criminosas operando essas invasões.”
Grupos indígenas temem acúmulo de riscos ambientais
Marta Tipuici Manoki vive na Terra Indígena Irantxe, localizada a pouco mais de 1000 quilômetros de um dos blocos de exploração. Ela está especialmente preocupada com a Bacia do Rio Juruena, que abrange 29 municípios e 23 territórios indígenas. O local já é afetado pela contaminação por agrotóxicos e pelos danos associados ao número crescente de usinas hidrelétricas. Até janeiro de 2024, 180 projetos de geração de energia tinham a área como destino, segundo a Operação Amazônia Nativa (OPAN).
Borboletas sobrevoam o Rio Juruena, no Mato Grosso. Lideranças indígenas da região estão preocupadas com os impactos das prospecções de petróleo e gás. Foto: Fernando Lessa/TNC
“Já temos muitos problemas referentes ao rio e às águas, porque muitas usinas foram construídas [nessa região]”, disse Manoki. Ela faz parte da Rede Juruena Vivo, iniciativa que defende a proteção da bacia. “Agora, temos essa questão dos empreendimentos de exploração de gás e petróleo, que é uma coisa muita nova. A gente não está nem conseguindo pensar em ações para este tema porque são muitas demandas. Não damos conta.”
Em 2024, algo semelhante levou a Justiça Federal no Amazonas a suspender, de forma temporária, os contratos em seis áreas de exploração. Os blocos, arrematados em licitação da ANP pelas empresas brasileiras Atem Distribuidora e Eneva SA, afetariam seis territórios indígenas e 11 áreas protegidas, segundo o Ministério Público do Amazonas (MPF-AM).
A juíza Mara Elisa Andrade concluiu que o governo federal deveria ter ouvido as comunidades indígenas antes de oferecer as áreas às respectivas empresas. “A homologação da concessão e a formalização das concessões, por si só, já autorizariam a captação de investimentos, inclusive no mercado financeiro, diminuindo as possibilidades de que tais comunidades, quando e se consultadas, possam ser efetivamente consideradas na tomada de decisão”, disse a magistrada na decisão judicial.
A medida foi anulada em novembro de 2024, e o caso seguia em andamento até a publicação desta reportagem. Segundo a ANP, as empresas já assinaram contratos relativos a todos os blocos, com exceção do AM-T-133, que permanece vetado pela Justiça.
Ponto de encontro das águas do Rio Amazonas e do Atlântico, uma região rica em biodiversidade que pode ser afetada por vazamentos de petróleo de blocos que a Petrobras pretende explorar no oceano. Foto: Fernanda Ligabue / Greenpeace
Uma fronteira exploratória
Estudos para confirmar a presença de petróleo e gás na Bacia do Parecis começaram no final dos anos 1980, quando um relatório da Petrobras classificou a área como “atrativa para a pesquisa de hidrocarbonetos.” Na década seguinte, a estatal perfurou dois poços e concluiu que eram “secos sem indícios”, mas detectou, no entanto, a presença de gás natural ligado às rochas do reservatório.
A Petrobras aprofundou seus estudos a partir de 2008, quando arrematou seis blocos na Bacia do Parecis em um leilão da ANP. Nos anos seguintes, a empresa devolveu todos eles à agência. Em 2016, um vídeo que mostrava trabalhadores da empresa analisando um óleo escuro, que diziam ser petróleo, gerou um burburinho sobre as descobertas na área. A companhia, no entanto, negaria a informação naquele mesmo ano.
Em 2022, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) concluiu ser possível encontrar combustíveis fósseis na bacia. Mesmo assim, disseram que “não há na literatura dados publicados que comprovem cabalmente a existência de um sistema petrolífero ativo.”
Rogério Roque Rubert, professor de geociências da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), disse que Parecis é o que especialistas chamam de “fronteira petrolífera.” “Há evidências de óleo e há evidências de gás. Mas, para transformar isso em uma acumulação comercial, muita pesquisa ainda é necessária. É uma aposta em um projeto de longo prazo.”
Caiubi Kuhn, geólogo da UFMT, disse à reportagem que, historicamente, o Brasil concentra a exploração de petróleo e gás em regiões de costa – as chamadas plataformas continentais. “Essas continuam sendo as áreas mais atrativas”, disse. No entanto, a Bacia do Parecis pode se tornar mais interessante no futuro, graças ao crescimento econômico da região e à atual dependência do gás vindo da Bolívia. “São municípios onde há um grande crescimento do agronegócio e talvez, futuramente, isso possa ser um fator atrativo para a extração de gás.”
A produção de petróleo ocorre desde os anos 1980 em Coari, no Amazonas, mas a população não colheu os benefícios prometidos pela indústria de combustíveis fósseis. Foto: Agência Petrobras/Geraldo Falcão
A ANP ofertou as áreas da Bacia do Parecis às empresas pela segunda vez em 2013, quando nenhuma petroleira havia demonstrado interesse pelos blocos. Em 2021, eles foram incluídos na oferta permanente da agência. Isso significa que as firmas de petróleo e gás poderiam manifestar interesse por essas áreas a qualquer momento e, em seguida, aguardar sua inclusão na próxima oferta pública. A presença dos blocos da Bacia do Parecis no leilão deste mês de junho significa que já são observados por várias empresas, diz Araújo, do Instituto Arayara.
“Segundo informações de bastidores, pelo menos 12 empresas petroleiras sinalizaram o interesse sobre as áreas. Na minha opinião, haverá uma competição por esses blocos.”
A área pode ter se tornado mais atraente depois que a ANP recortou os blocos, de modo que não se sobreponham diretamente aos territórios indígenas. Isso pode aumentar a segurança jurídica das companhias. “Na cabeça de algumas empresas que não quiseram participar dos certames anteriores, o risco, agora, foi reduzido”, disse Araújo.
O representante acredita que os sinais claros do presidente Lula a favor do setor, inclusive em áreas ambientais sensíveis como a foz do Rio Amazonas, também foram lidos como um aceno positivo. “Houve uma sinalização nítida do Ministério de Minas Energia e da Casa Civil de que o Brasil quer expandir as suas fronteiras de exploração de hidrocarbonetos. O mercado de capitais, investidores e petroleiras perceberam essa sinalização e essa oportunidade.”
Várias esponjas-do-mar, uma estrela-do-mar-cesto e um peixe-esquilo encontrados no Recife Amazônico, a poucos quilômetros dos locais onde as empresas petrolíferas pretendem perfurar em busca de petróleo. Foto: Greenpeace.
Impactos de curto e longo prazo
Segundo a ANP, 30 empresas estão aptas a participar do leilão de junho. As corporações que eventualmente arrematarem as áreas da Bacia do Parecis seriam obrigadas a realizar estudos por alguns anos para avaliar a viabilidade comercial dos blocos. Segundo Rubert, isso inclui a presença de funcionários, veículos e maquinário na área, com a execução de testes que incluem pequenas explosões e perfurações de até 25 centímetros de diâmetro. “A atividade de pesquisa em terra não gera muito impacto.”
As empresas podem perfurar diferentes partes do bloco até identificarem um poço de exploração viável. No caso do estado do Amazonas, o MPF-AM diz que essas operações já afetariam as comunidades indígenas. “(…) desde o momento dos primeiros estudos e perfurações, são notórios os impactos para as comunidades indígenas e tradicionais, que são pressionadas e assediadas pela especulação imobiliária e por invasões. Sem contar os impactos ambientais que geram consequências em seus modos de viver”, diz o procurador nas linhas do processo judicial.
“Já durante a fase de pesquisa, dezenas ou centenas de funcionários são levados para o local, além de equipamentos como macaquinhos mecânicos, caminhões, tratores e helicópteros”, disse Araújo, que tem doutorado em riscos e emergências ambientais e pós-doutorado em pesquisa energética. “Caso haja estradas, isso tudo vai chegar por elas. Do contrário, terão que ser abertas. Então, começam os impactos sobre os territórios indígenas e a biodiversidade.”
Se os poços avançarem para a fase de produção, os danos tendem a ser ainda maiores em função do que é descartado pela indústria. “É feita a queima de gases que geram chuva ácida e materiais particulados que causam doenças cardiorrespiratórias”, diz o especialista.
A produção de petróleo ocorre desde os anos 1980 em Coari, no Amazonas, mas a população não colheu os benefícios prometidos pela indústria de combustíveis fósseis. Foto: Agência Petrobras/Geraldo Falcão.
Rios e águas subterrâneas também podem ser contaminados pela extração do petróleo. “Se não houver cuidado, [é algo que] eventualmente pode acontecer. No entanto, essa operação em terra é bem mais segura do que [a realizada] no ambiente marinho”, disse Rubert.
Mesmo assim, exemplos em outras partes da Amazônia mostram que os efeitos das operações em terra tendem a ser minimizados pela indústria. Em março, uma perícia do MPF-AM concluiu que a Eneva subestimou as consequências de sua planta de gás natural nos municípios de Silves e Itapiranga, no estado do Amazonas. Segundo o documento, a área sujeita à contaminação de recursos hídricos é significativamente maior do que a considerada pela empresa de energia em seus estudos sobre impacto ambiental.
Há paralelos por toda a América do Sul. Um caso recente no Equador, por exemplo, mostra a dificuldade de se controlar os danos uma vez que um acidente acontece: em março, o vazamento de 25.000 barris de petróleo, vindos de um oleoduto, fluiu rio abaixo por mais de 80 quilômetros através do Rio Esmeraldas e seus afluentes em direção ao Oceano Pacífico. Cerca de 750 famílias que viviam da agricultura, pecuária e pesca foram diretamente afetadas. Foi o quarto grande derramamento registrado no país nos últimos cinco anos.
Derramamento de óleo em Esmeraldas, Equador. Imagem cedia por Eduardo Monsalve
Na Colômbia, onde o presidente Gustavo Petro prometeu interromper a extração de petróleo, comunidades indígenas dos territórios Siona e Inga também alegam que suas fontes de água foram contaminadas pela empresa colombiana GeoPark. Segundo o InfoAmazonia, eles são obrigados a conviver com o ruído constante da atividade petrolífera e viram seu acesso a áreas sagradas ser restringido.
Grandes projetos de infraestrutura também podem trazer profundos impactos sociais para pequenas comunidades da Amazônia brasileira. O município de Coari, no estado do Amazonas, convive com a extração de petróleo desde os anos 1980. Segundo o portal UOL, a chegada da indústria dobrou a população local e atraiu “problemas de cidade grande”, como máfias associadas ao tráfico de drogas, por exemplo. No entanto, o tão esperado desenvolvimento econômico não chegou, ao passo que os residentes sofrem com altas taxas de desemprego, falta de saneamento básico, serviços de saúde e educação precários e o súbito aumento nos custos de vida.
“Um prato de comida que antes custava 12 reais agora é vendido por 80 reais”, diz Araújo. “Há um encarecimento e uma competição por serviços públicos que já eram ruins, como hospitais e escolas.”
Imagem do banner: Vazamento de óleo em uma área de cultivo de cacau no Equador.
Foto: reprodução Mongogay/ Amazon Watch
Fonte: Mongabay