A Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE) manifesta surpresa e preocupação com as diretrizes adotadas pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para o Leilão de Reserva de Capacidade (LRCAP) de 2026. Análise técnica das portarias postas em consulta pública indica que, inevitavelmente, o certame resultará em contratações mais caras, menos eficientes e mais poluentes que o esperado. Ao desconsiderar boas práticas regulatórias, tecnologias mais eficientes e conceitos técnicos essenciais, as regras propostas favorecerão grupos econômicos que não atenderiam às exigências de um leilão de reserva de capacidade, mas que no caso presente tendem a ser beneficiados.
Os leilões de reserva de capacidade servem para assegurar capacidade de geração de energia em momentos de maior necessidade do Sistema Interligado Nacional (SIN). Desde 2023, já se aguardava a realização de um LRCAP, pois estudos do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indicavam que a partir de 2026, apesar da abundância de energia disponível, haveria falta de potência no país em determinados meses do ano. Diante o cenário desafiador e do desequilíbrio do setor elétrico, a FNCE torna públicas sua avaliação técnica e contribuições a serem feitas para aprimoramento do certame.
1. Carvão não serve para reserva de capacidade
A reserva de capacidade requer a contratação de fontes que possam ser acionadas e desligadas rapidamente na medida do necessário e em momentos específicos para garantir, com razoabilidade econômica, segurança operativa ao sistema elétrico. Hidrelétricas e térmica a gás flexíveis atendem a esse critério por serem despacháveis (passíveis de controle) e pelos tempos curtos de acionamento e desligamento.
A flexibilidade operativa é um requisito essencial. Uma das formas para avaliar o nível de flexibilidade de uma usina termelétrica é considerar o tempo mínimo em que a usina precisa permanecer gerando quando é acionada (t_on) e tempo mínimo em que a usina necessita permanecer parada após desligada (t_off).
Independentemente de usinas térmicas a carvão já serem inadequadas à reserva de capacidade por suas características operacionais, o MME optou por incluir essa fonte no leilão. As especificações previstas no LRCAP 2026 pedem t-on menor ou igual a 18 horas e t-off menor ou igual a 4 horas. Dados do ONS e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) mostram que as usinas a carvão nacional hoje em operação no Brasil apresentam t-on entre 168 horas e 216 horas e t-off entre 80h e 168 horas, condição impensável para atender às expectativas de flexibilidade operativa.
2. Favorecimento ao carvão mineral em ano de COP 30
Além da inviabilidade técnica, no mesmo ano de realização da COP 30 e diante de todos os esforços para redução das emissões de gases de efeito estufa, causa espanto que o país que deseja ser visto como paraíso das fontes renováveis persista tanto no carvão mineral. Com isso, a iniciativa sabota o alto nível de renovabilidade da matriz elétrica nacional.
Contudo, ao viabilizar a contratação de usinas a carvão, as portarias do MME buscam resolver o destino de usinas cujos contratos já se aproximam do fim, deixando evidente a tentativa de favorecimento de grupos empresariais do setor carbonífero, em especial a Âmbar Energia, proprietária da usina de Candiota 3, no Rio Grande do Sul, e a Eneva, responsável pelas usinas do Porto do Itaqui (Maranhão) e Pecém 2 (Ceará).
Vale destacar que, por coincidência, na última sexta-feira (22), poucas horas antes da súbita publicação das portarias do LRCAP 2026 em edição extra do Diário Oficial da União, a partir de Ação Civil Pública promovida pelo Instituto Internacional Arayara e outras entidades, a 9ª Vara Federal de Porto Alegre determinou a suspensão das licenças ambientais da Usina Termelétrica Candiota 3 e da mina de carvão mineral Candiota, localizadas no município de Candiota (RS). A determinação ocorreu por descumprimento reiterado de normas ambientais e ausência de políticas efetivas para o fim da exploração do carvão no estado, o que contraria compromissos nacionais e internacionais de redução de gases de efeito estufa.
3. Neutralidade das fontes
A boa prática regulatória prevê que um certame como o LRCAP busque selecionar as melhores opções para atendimento às necessidades de flexibilidade operativa com os melhores preços possíveis. Dados os critérios operativos estabelecidos e necessários para esse tipo de serviço, não há justificativa para o Poder Concedente privilegiar fontes específicas ou criar reservas de mercado. A FNCE considera inadequado que o MME reserve parte das contratações para fontes específicas, ainda mais para aquelas que sabidamente são mais caras e mais poluentes, como carvão e óleo combustível.
4. Por que ignorar a Resposta da Demanda
Também causa estranhamento que o LRCAP 2026 não dê espaço para que outras iniciativas sustentáveis e mais eficientes possam competir em condições de igualdade. Resposta da Demanda é um programa que incentiva grandes consumidores a reduzirem o consumo de energia elétrica em horários de pico em troca de remuneração, oferecendo maior flexibilidade, segurança e eficiência ao sistema. O mecanismo é regulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), operado pelo ONS e pela CCEE.
A ampliação do uso desse recurso agregaria inteligência e eficiência ao sistema, o que beneficiaria todos os consumidores de energia com redução de custos. Trata-se de uma solução baseada em gestão e planejamento, portanto, baseada na oferta de energia já existentes e sem impacto ambiental adicional.
5. Baterias agregam flexibilidade operativa e ajudariam a mitigar a crise do “curtailment”
Tecnologias de geração mais limpa, como o armazenamento com baterias (BESS), despontam como alternativas para garantir segurança energética com menor impacto ambiental. Tais tecnologias de armazenamento associadas à geração solar ou eólica permitem que a energia excedente em horários de baixa demanda seja armazenada e utilizada nos momentos de pico.
Dados do ONS indicam que cerca de 20% da geração solar e eólica foram cortados no primeiro semestre de 2025, em grande parte por sobreoferta de energia. O estímulo ao uso de baterias poderia não apenas ser uma alternativa sustentável para reserva de capacidade, mas uma forma de mitigação dos efeitos da crise do curtailment. Além de ampliar o escoamento da energia limpa, as baterias ajudariam a reduzir os prejuízos dos geradores de renováveis e contribuiriam para que os consumidores não tenham que pagar a conta desses cortes.
Considerando que as baterias também contribuem para o deslocamento da geração renovável, o alívio de sistemas de transmissão e distribuição, além de atuarem como reserva operativa e suporte à regulação de frequência, a contração desse tipo de tecnologia no LRCAP 2026 também contribuiria para um aproveitamento mais seguro e sustentável da energia injetada no sistema por meio da Geração Distribuída, volume que hoje já chega a 42,4 GW.