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A economia de baixo carbono e os bancos: qual a relação?

A transição para uma economia de baixo carbono força os bancos a rever suas políticas de análise de crédito e alocação de recursos

Em março, o banco Santander adotou uma nova política de risco para a concessão de empréstimos empresariais. Companhias de médio e grande porte, com faturamento acima de 20 milhões de reais, terão sua vulnerabilidade a eventos climáticos extremos avaliada pela instituição financeira, que incluirá esses dados na nota de crédito do cliente. Por ano, o banco analisa cerca de 2.000 companhias com esse perfil. A norma pode afetar empresas que estejam localizadas em áreas com risco de alagamentos, por exemplo. Também dificulta quem depende de matérias-primas sensíveis às mudanças climáticas, como insumos agrícolas. Por outro lado, beneficia companhias que atuam na cadeia de baixa emissão de carbono. “Uma fabricante de pás para turbinas eólicas pode ser mais bem avaliada”, afirma Christopher Wells, chefe global de risco socioambiental do banco. “Essa é uma das maneiras que o banco tem para se proteger dos riscos da transição para uma economia de baixo carbono.”

Os temas associados ao clima vêm ganhando atenção especial dos bancos, especialmente depois de a pauta ter dominado as discussões no Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, na Suíça, em janeiro deste ano. As mudanças climáticas passaram a ocupar um papel central no desenvolvimento das estratégias das instituições financeiras. “Essa agenda vem crescendo há cerca de três anos, mas, com certeza, Davos contribuiu muito para que o assunto passasse a ocupar o centro dos debates”, afirma Karine Bueno, chefe de sustentabilidade do Santander. “Não dá para ignorar.”

O que impulsiona essa nova mentalidade é a expectativa de uma grande transformação na economia mundial na próxima década, motivada pela necessidade de reduzir as emissões e atingir a meta estabelecida pelo Acordo de Paris, de manter o aumento da temperatura do planeta em 2 graus Celsius, até 2050, em relação aos níveis da era pré-industrial. Segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), que reúne 450 instituições financeiras de 70 países, cumprir essa meta exigirá que 95% da eletricidade mundial venha de fontes renováveis, 70% dos carros sejam neutros em emissões e haja uma redução de 80% na intensidade de carbono do setor de construção.

Viabilizar essas mudanças passa por uma realocação de recursos financeiros, o que trará problemas de financiamento para alguns setores. Um estudo da consultoria Oliver Wyman aponta que os riscos de não pagamento de dívidas associados a duas indústrias intensivas em emissão de carbono, as de geração de energia e de petróleo e gás, variam de 50 bilhões a 300 bilhões de dólares, globalmente. A estimativa leva em conta um cenário em que os países signatários do Acordo de Paris, incluindo o Brasil, estabeleçam uma taxa de 50 dólares por tonelada de carbono.

Nesse caso, os setores com maior emissão, como o de carvão mineral, teriam dificuldade de se financiar, aumentando a probabilidade de calote. Em outro relatório, o Fundo Monetário Internacional defendeu a criação de uma taxa global sobre o carbono. Sem essa medida, segundo o FMI, será impossível atingir as metas de redução de emissões determinadas em Paris. Na prática, se as emissões forem precificadas em 35 dólares por tonelada, a energia proveniente do carvão dobrará de preço. O FMI, no entanto, calcula que a tarifa ideal para conter o aquecimento global seja de 75 dólares por tonelada.

Essas estimativas levam os bancos a ser mais criteriosos na avaliação de determinados setores. No Bradesco, todo empréstimo corporativo é analisado com base em dez critérios socioambientais. Segundo Bruno Boetger, diretor executivo do banco, se a empresa solicitante se enquadrar em qualquer um dos aspectos de risco, ela passará por uma avaliação adicional de crédito, feita por uma equipe dedicada (a lista de requisitos não é pública, mas inclui, por exemplo, preocupações com tecnologias poluidoras e trabalho escravo). “É preciso proteger não somente os ativos mas também a imagem do banco”, afirma Boetger. Dependendo do risco encontrado, a aprovação da operação só é feita pela presidência da instituição. “A tendência é o banco aumentar essas exigências, principalmente depois de Davos”, diz o executivo.

Segundo a Oliver Wyman, no entanto, os bancos têm feito pouco para se proteger. “A indústria de serviços financeiros está subestimando os efeitos da mudança para uma economia verde”, diz o relatório. Isso vale tanto para os riscos quanto para as oportunidades. A expectativa é que a transição para uma economia de baixo carbono demande investimentos de 6 trilhões de dólares nos próximos anos. “Se parte disso se confirmar, as oportunidades para o setor financeiro chegam a 150 bilhões de dólares”, escreve a consultoria.

Para capturar essas oportunidades, os bancos buscam incentivar negócios de impacto positivo em áreas como energia limpa e mobilidade (leia entrevista ao lado). Até 2025, o Itaú se comprometeu a financiar no país 100 bilhões de reais em projetos desse tipo, o que inclui, além das duas áreas já citadas, o setor de saneamento. O banco está empenhado em criar um modelo mais preciso de avaliação das emissões.

Para isso, estabeleceu uma parceria com a 2 Degrees Institute, entidade sem fins lucrativos que desenvolve modelos para monitoramento e mitigação das emissões. O projeto deve começar em abril. “O ano de 2020 marca um ponto de virada para o mercado financeiro”, afirma Luciana Nicola, superintendente de sustenta­bilidade do Itaú. “Nos próximos cinco anos, o setor vai desenvolver os padrões de governança em relação às emissões, o que provocará ondas de mudanças em todas as indústrias.”

Para Beatriz Freitas, diretora executiva de ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança) do banco BTG Pactual, que faz parte do grupo que controla a EXAME, o desenvolvimento desse padrão de análise também deve forçar uma revisão nos portfólios de investimentos das instituições financeiras. “Os próprios investidores estão exigindo uma análise mais rigorosa de setores intensivos em carbono”, diz Freitas. “Antes, quando perguntavam se o banco fazia esse tipo de análise, a resposta era sim ou não. Hoje, querem detalhes.”

Essa preocupação está relacionada a uma perspectiva de perda de valor de diversos ativos, por causa da transição para a economia verde. Um estudo do Principles for Responsible Investment (PRI), entidade ligada à ONU que promove o investimento responsável, mostra que alguns setores podem sofrer perdas de valor de mercado de quase 40% nos próximos anos (veja quadro na pág. 62). “A pressão sobre investidores e instituições financeiras aumenta a cada ano”, afirma Marcelo Seraphim, representante do PRI no Brasil. “Temos uma década, a partir deste ano, para fazer a transição a uma economia de baixo carbono e cumprir a meta do Acordo de Paris. Isso vai exigir um reposicionamento de portfólio.”

Os investidores têm alocado cada vez mais recursos em ativos que provisionam um lastro positivo tanto para o planeta quanto para o bolso. De 2012 a 2018, o total de investimentos sustentáveis no mundo cresceu 109%, para 23 trilhões de dólares, enquanto os investimentos de impacto social tiveram um salto de 6.175%, atingindo 500 bilhões de dólares, de acordo com a organização não governamental Global Impact Investing Networking.

Os volumes se justificam pela rentabilidade vultosa. Segundo estimativa do Bank of America, cada dólar investido em títulos e ações de impacto ao longo de 20 anos resulta em 28,36 dólares, enquanto em investimentos tradicionais o retorno esperado é de apenas 14,3%. Não surpreende, portanto, que grandes bancos estejam atentos a essa tendência.

Com 1,4 trilhão de dólares sob gestão, o Credit Suisse tem a meta de alocar 100 bilhões de dólares até o fim do ano na carteira de investimentos ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança). “Anunciamos o objetivo em setembro de 2019 e estamos rapidamente migrando fundos tradicionais para a estrutura ESG”, afirma Marisa Drew, presidente do departamento de assessoria de impacto e finanças do Credit Suisse. Em entrevista exclusiva à EXAME,­ a executiva se mostra otimista com o ativismo de acionistas.

Há muitos anos fala-se em investimentos de impacto socioambiental, mas muita coisa não saiu do papel. Por que agora com o ESG seria diferente?

Porque estamos falando de investimentos bons e inteligentes. Veja o caso da Beyond Meat [fabricante americana de carne vegetal]: foi a primeira empresa a abrir o capital nesse espaço alternativo de proteí­nas e foi o IPO com melhor desempenho em 20 anos. Foi uma enorme criação de valor para as pes­soas­ que investiram na empresa. As novas queridinhas do Vale do Silício têm objetivo ambiental ou social, porque é isso que os investidores desejam, principalmente a geração millennium, que está apenas começando a investir.

Mas como ter certeza de que uma empresa se enquadra nos critérios ESG?

Existem várias iniciativas que classificam as empresas de acordo com as práticas ESG. Nesses rankings é possível ver quais delas têm uma boa classificação. Dito isso, os dados não são muito comparáveis. Se você estiver tentando comparar duas empresas diferentes, os relatórios não serão consistentes. Mas há grandes iniciativas em desenvolvimento, como o SASB [Sustainability Accounting Standards Board]. A organização está tentando criar métricas que são relevantes do ponto de vista do ESG e que se diferenciam por setor. Afinal, as demandas de uma empresa de petróleo e gás são muito distintas das de uma empresa de alimentos. Hoje, o SASB ainda é voluntário, mas está crescendo a cada dia. Entre as 200 empresas já inscritas estão gigantes como Coca-Cola e Kellogg, que, indiretamente, fazem pressão sobre as companhias que não ­estão cadastradas.

Há algo que possa acelerar esse processo?

Sim, caso se torne um requisito regulatório. Na União Europeia, está em estudo um regulamento que exigirá que os gestores demonstrem que levaram as demandas ESG em consideração na hora de alocar os recursos. Dois anos atrás, havia cerca de 25 trilhões de dólares investidos em ativos ESG. Tenho certeza de que esse número já é muito maior hoje.

Mesmo com maior interesse dos investidores por temas socioambientais, presidentes têm sido eleitos com discursos contrários ao meio ambiente. Como explicar essa dicotomia?

Muitos manifestantes da geração millennium não podem votar por não ter idade suficiente. Mas eles estão chegando lá. Não é à toa que, pela primeira vez na Suíça, o movimento do Partido Verde obteve grande parte dos votos. Acho que a voz do povo mudará as coisas. A pressão sobre os políticos os colocará em ação. Vejo que não existe um único regulador que não esteja preocupado com esse tema. Mais e mais presidentes estão falando sobre isso, seja Emmanuel Macron [França], seja Xi Jinping [China]. As pessoas estão vendo suas casas pegar fogo na Austrália ou a cidade ficar debaixo d’água. Não é algo que vai acontecer daqui a 20 anos. Está acontecendo agora.

Quais áreas chamam mais a atenção dos brasileiros no que se refere a investimentos ESG?

Como o Brasil tem uma agricultura forte, os olhares acabam se voltando para o tema de agricultura sustentável. Pegue o caso da plantação de cacau. Como se trata de uma commodity, os agricultores não ganham muito dinheiro, e a forma de plantá-lo é muitas vezes pouco sustentável. Até que uma empresa decidiu repensar essa lógica e aproveitar toda a fruta, incluindo a polpa, que é um alimento ótimo e de baixa caloria. Com isso, o valor da fruta subiu cinco vezes, aumentando a renda dos agricultores que agora a cultivam de forma sustentável. Os investidores brasileiros também estão focados na educação. A pessoa educada é, em geral, mais saudável, tem uma renda maior e cuida melhor do meio ambiente. Portanto, direta e indiretamente, a educação provoca um efeito positivo sobre as causas sociais e ambientais.

Fonte: Exame

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