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Emergência climática num mundo desigual: o que é transição energética justa e por que precisamos falar sobre ela

Podcast Entre no Clima entrevista Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Internacional Arayara, uma das maiores organizações de litigância na agenda socioambiental

 

emergência climática requer profundas mudanças nas cadeias energéticas globais. Num curto espaço de tempo, o mundo precisa reduzir sua dependência das poluentes fontes fósseis e aumentar a participação das energias renováveis e de menor impacto ambiental. Segundo um novo relatório da ONU lançado a poucos dias da COP27, reunião de clima que começa dia 06 de novembro no Egito, o mundo ainda está longe de frear a alta do termômetro a 1,5°C, como prometido no Acordo de Paris.

Em vez de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030, corte necessário para atingir a meta, os compromissos atuais dos 193 países signatários do pacto – conhecidos pela sigla NDC, ou Contribuições Nacionalmente Determinadas – levam ao aumento de emissões de 10,6% na próxima década em comparação com os níveis de 2010. Globalmente, as promessas inadequadas colocam a humanidade numa rota de aquecimento de 2,5°C até 2100 acima das temperaturas pré-industriais, um nível considerado “catastrófico”.

Diante da necessidade de mudanças radicais e aceleradas na forma como produzimos e consumimos energia, um tema se impõe no debate global e nacional: a transição energética justa, processo que olha muito além das inovações tecnológicas necessárias e considera os efeitos sociais dessa transformação na matriz energética mundial.

“Quando falamos em transição justa, temos que considerar um conjunto de princípios, processos e práticas para transitarmos de uma economia extrativista, como a do carvão, petróleo e gás, para uma economia regenerativa”, diz ao podcast Entre no Clima Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Internacional Arayara, que completa 30 anos de ação na agenda socioambiental e climática junto ao setor público, privado e sociedade civil.

Ouça a entrevista na íntegra:

Mestre em direito internacional e resolução de conflitos, Nicole ressalta que a transição justa não é só sair de uma matriz energética para outra, mas repensar e planejar ciclos de produção e de consumo sem desperdício.

“É garantir uma transição equitativa que repare danos do passado para que o futuro permita às pessoas que sofreram impactos da economia extrativista participar da regeneração da nova economia.

Na conversa, ela abordou vários temas importantes no debate sobre transição energética, como o racismo ambiental, os subsídios aos combustíveis fósseis e a necessidade de uma gestão mais participativa da política energética. O Arayara busca influenciar políticas públicas, apresentando projetos de lei contra iniciativas potencialmente danosas do ponto de vista socioambiental, e também de caráter propositivo para o desenvolvimento sustentável.

“Temos um time de especialistas variado, que inclui biólogos, geólogos, geógrafos, climatologistas, entre outros profissionais, que ajudam a gerar conhecimento tecnocientífico para embasar as ações”, conta a advogada que está à frente de diversas ações para barrar instalações de usinas termelétricas em áreas de relevante interesse ecológico e social no país. “Racismo ambiental é uma escolha histórica e consistente de instalação de projetos, seja de geração de energia ou outros, em locais onde comunidades vulneráveis dependem daquele território para seu sustento e subsídio”, explica.

Com o mesmo tom crítico, Nicole chama atenção para outro problema: o racismo energético. “Vemos uma escolha da política pública de gerar uma energia mais cara. Termelétrica é mais cara do que energia renovável. Ela custa mais para o consumidor final e também para o próprio governo”, diz. E condena o leilão de contratação de energia emergencial que a Aneel fez ano passado, na esteira da crise hídrica, que deverá encarecer a conta de luz, com efeito sobre a inflação e o custo de vida. “Quem é mais impactado por esses aumentos são as populações periféricas, negras, indígenas que moram em comunidades vulneráveis. São as pessoas mais pobres que sofrem o racismo energético”, pontua.

Para reverter essa tendência, Nicole destaca a importância da colaboração entre governos e órgãos não governamentais, setores industriais-chave e usuários finais, defendendo que a agenda de energia verde avance de forma participativa. “Envolver a comunidade na participação e autogestão, desde a formulação até a execução é essencial. Propomos um fórum de transição energética justa como mecanismo de controle e participação pública. O foco nas populações vulneráveis tem de estar dentro das políticas”.

Dentro da lista de boas práticas, oferecer capacitação tanto para a transição justa quanto para a geração de empregos para o clima são passos-chave. “É possível fazermos uma transição energética sem deixar ninguém para trás”, afirma. “Quando falamos de petróleo, existem inúmeras possibilidades de transição das empresas petrolíferas para empresas que possam gerar energia sustentável e que envolvam os trabalhadores”.

O Instituto lançou no começo deste mês uma ação conjunta com a UFRJ, a USP e a sociedade civil, propondo que a Petrobras seja uma empresa com investimentos robustos em novas fontes de energia, como biocombustíveis, energia eólica, energia solar, entre outras, visando não apenas benefícios ambientais, mas a longevidade econômica da estatal num mundo que deverá se afastar das fontes fósseis.

No caso da exploração de carvão, que no Brasil se concentra em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, eles estão elaborando uma proposta de recapacitação dos trabalhadores para outro tipo de economia que não necessariamente em energia, mas que também tenha lastro local, como turismo, agricultura, polos universitários, entre outros setores que podem ser incentivados a absorver os trabalhadores do carvão.

“Quando a gente fala em transição justa, é comum pensar na requalificação do trabalhador para as fontes renováveis. Claro que isso é possível, mas temos que pensar nas outras economias possíveis daquele local”. Esses são alguns caminhos, segundo ela, para assegurar que o Brasil avance rumo ao futuro da energia de baixo carbono de forma inclusiva e acessível. Modelos descentralizados também são bem-vindos e contribuem para novas formas de geração com benefícios tangíveis para as comunidades e geração de renda local. “Geração distribuída de energia é uma oportunidade histórica no Brasil”.

Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Arayara: "É possível fazermos uma transição energética sem deixar ninguém para trás" — Foto: Divulgação

 

Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Arayara: “É possível fazermos uma transição energética sem deixar ninguém para trás” — Foto: Divulgação

“A inovação não precisa ser só alta tecnologia. Por que não desenvolver formas de gerar energia mais baratas e acessíveis que não deixem as pessoas preocupadas sobre se vão pagar a conta de luz ou pagar aluguel e comprar arroz?”, questiona, criticando os subsídios aos combustíveis poluentes. Ela cita ainda como exemplo positivo a eficiência energética, que se fosse implementada como política pública e aplicada na construção civil, em prédios públicos e como meta das próprias indústrias e empresas, ajudaria o país a reduzir em 40% a demanda de energia.

Para a COP 27, há grandes expectativas quanto ao comprometimento de fundos para financiar a transição energética mundial, principalmente em países menos desenvolvidos. “A COP é sempre marcada pela narrativa de que os países em desenvolvimento têm direito de explorar fontes fósseis assim como os ricos fizeram no passado. Existem formas de se desenvolver sem emitir, ou emitindo menos”, diz.

Outra esperança é de que o petróleo seja citado no acordo final do encontro como um dos vilões da emergência climática, assim como o carvão foi citado no Acordo de Glasgow na COP26, que ocorreu no Reino Unido em 2021. Por fim, diante da reviravolta que a guerra da Rússia com a Ucrânia causou no tabuleiro energético mundial, espera-se que a Europa entre num acordo regional não só de afastar-se da dependência do gás russo, mas também não incentivar que países africanos e latinos expandam sua exploração de fontes poluentes. “Que eles pensem durante esse encontro em como fazer uma transição energética europeia de independência e autonomia real”, resume.

 

Publicado originalmente por Vanessa Oliveira, do Um Só Planeta em 27/10/2022 07h00

 

Leia também:

Por que a eficiência energética é a “energia mais verde” e como destravá-la

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