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Ibama recomenda negar licença para explorar petróleo na foz do Amazonas

Ibama recomenda negar licença para explorar petróleo na foz do Amazonas

Parecer técnico afirma que pedido da Petrobras é inviável do ponto de vista ambiental, mas a decisão depende de Rodrigo Agostinho, presidente do órgão

 

Publicado por: Sumaúma Jornalismo

Um parecer técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) recomenda que seja negado o pedido da Petrobras para furar um poço em busca de petróleo no chamado bloco 59, na bacia da foz do Amazonas, a cerca de 160 quilômetros da costa do Oiapoque, no Amapá. Segundo SUMAÚMA apurou, o documento, de acesso restrito por envolver a etapa de conclusão do caso, foi protocolado no dia 20 de abril. Ele afirma que o empreendimento é inviável do ponto de vista ambiental e pede o indeferimento da licença e o arquivamento do processo de licenciamento da prospecção no bloco 59, que já se arrasta há nove anos.

Assinado por toda a equipe técnica encarregada do licenciamento do bloco 59, o parecer é um dos documentos que vai embasar uma decisão do presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, sobre a concessão ou não da licença de operação à Petrobras. O texto cita lacunas na previsão dos impactos da atividade nas três terras indígenas da região do Oiapoque e incertezas no plano apresentado pela estatal para atendimento à fauna, em caso de acidente com derrame de óleo – numa área em que há espécies endêmicas ameaçadas e correntes marítimas particularmente fortes. Lembra também que o empreendimento é cercado por insegurança técnica e jurídica por não ter sido feita uma avaliação mais ampla da compatibilidade entre a indústria petrolífera e todo o contexto social e ambiental da região, com a utilização de instrumentos como a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), que foi estabelecida em portaria de 2012 dos ministérios do Meio Ambiente e Minas e Energia.

A perfuração de um poço na bacia da foz do Amazonas, onde há mais oito blocos em processo de licenciamento, teria o potencial de abrir uma nova fronteira de exploração petrolífera na margem equatorial do Brasil, que vai do Rio Grande do Norte ao Amapá. A região inclui 80% dos mangues do país e um sistema de recifes ainda pouco estudado, considerado fundamental para a atividade pesqueira. Além disso, conhecimentos escassos sobre a dinâmica das correntes marinhas locais tornam difícil prever o que aconteceria em caso de eventual vazamento de óleo e como atuar para conter seus efeitos.

Mapa da posição do bloco 59 da Petrobras. Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA

No total, há ainda 47 blocos na margem equatorial em “oferta permanente” pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) e 157 em estudo para serem levados a leilão. Em carta enviada em meados de abril a autoridades do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, 80 organizações da sociedade civil, incluindo ONGs ambientalistas e associações indígenas, de pescadores e de comunidades extrativistas da Amazônia pediram a realização de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar antes de qualquer decisão sobre o bloco 59. Argumentaram também que a abertura de uma nova fronteira petrolífera é “incoerente” com a necessidade de uma “transição energética justa e inclusiva” e com os “compromissos socioambientais assumidos pelo governo brasileiro”.

A exploração da margem equatorial foi considerada prioritária pela Petrobras no plano estratégico para o período de 2024 a 2027, lançado em 2022, ainda no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro. Indicado já no governo Lula, o atual presidente da empresa, Jean Paul Prates, reiterou essa prioridade, afirmando que a busca de petróleo na região é fundamental para a manutenção dos negócios da estatal em óleo e gás, “mesmo num panorama de transição energética”. Mais recentemente, Prates disse que cabe à “sociedade” decidir sobre a exploração na margem equatorial. “Estamos preparados para explorar novas reservas se assim a sociedade decidir”, afirmou ele em vídeo.

O parecer técnico publicado no último dia 20 pelo Ibama lembra que a Petrobras, a pedido do órgão ambiental, atualizou a chamada “modelagem” – um estudo feito em computador que faz a previsão de cenários de dispersão do petróleo em caso de acidente. A modelagem também embasa o chamado Plano de Emergência Individual (PEI), que é parte fundamental do processo de licenciamento. Ainda assim, diz o texto, a construção de uma base hidrodinâmica que representasse melhor a dinâmica costeira da margem equatorial ainda não foi concluída, o que aumenta a possibilidade de erros, considerada a intensidade das correntes e ventos na área do bloco 59. Para ter uma ideia, a Corrente Norte do Brasil, a principal da região, tem em média três nós de velocidade contra um nó na Corrente do Brasil, predominante no litoral do Sudeste. O documento lembra mais uma vez que os cenários da Petrobras não preveem a chegada de óleo na costa em um eventual vazamento, embora haja relatos de objetos que alcançaram o litoral do Oiapoque vindos do alto-mar, como estágios de um foguete lançado em 2014 do Centro Espacial de Kourou, na vizinha Guiana Francesa.

RESTOS DE FOGUETE ENCONTRADOS NO PARQUE NACIONAL DO CABO ORANGE, NA REGIÃO DO OIAPOQUE: INDÍCIO DE QUE CORRENTE PODERIA TRAZER MANCHA DE ÓLEO PARA O BRASIL. FOTO: DIVULGAÇÃO/ICMBIO

 

No que diz respeito ao impacto nas terras indígenas, onde vivem cerca de 8 mil pessoas, o parecer cita que apenas em fevereiro deste ano, em reunião com o Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO) e outras entidades, a Petrobras reconheceu que os voos de helicóptero entre o aeroporto da cidade e o navio-sonda que mantém na área do bloco 59 desde agosto do ano passado já estavam afetando os povos originários, afugentando a fauna de que as aldeias precisam para sua sobrevivência. Na ocasião, a estatal se comprometeu a alterar a altitude desses voos. No entanto, de acordo com o documento, um aumento estimado de 3.000% do tráfego aéreo durante a atividade de prospecção de petróleo exigiria a elaboração de uma nova Avaliação de Impacto Ambiental para o caso específico das terras indígenas, que a Petrobras considerou não ser necessária.

Por último, o parecer técnico do Ibama analisa o Plano de Proteção à Fauna (PPAF) apresentado pela estatal como parte do Plano de Emergência Individual (PEI). O documento rejeita o PPAF da Petrobras, e portanto não recomenda a realização da Avaliação Pré-Operacional, uma simulação de resposta a acidentes que é a última etapa do processo de licenciamento. De acordo com o texto, todas as alternativas propostas pela empresa para o resgate e transporte dos animais afetados por um eventual vazamento preveem um tempo muito longo para esse socorro e não levam em conta a possibilidade de mudanças abruptas nas condições climáticas na área do bloco 59, que afetariam o tempo e a viabilidade da navegação e dos voos. O parecer lembra que, dadas as especificidades da costa do Oiapoque, que não permitem o atracamento de navios de grande porte, toda a estrutura marítima de suporte às atividades da Petrobras estaria baseada em Belém, a 830 quilômetros do poço – distância percorrida em 43 horas em média por embarcações. Mesmo com lanchas rápidas, o deslocamento da capital paraense até o bloco 59 seria de no mínimo 26 horas.

O parecer assinado por dez técnicos foi endossado pelo coordenador de Licenciamento da Exploração de Petróleo e Gás Offshore (Coexp) do Ibama, Ivan Werneck Sánchez Bassères, e pelo coordenador geral de Licenciamento de Empreendimentos Marinhos e Costeiros (CGMac), Itagyba Alvarenga Neto. Porém, segundo SUMAÚMA apurou, o atual diretor substituto de Licenciamento do Ibama, Régis Fontana Pinto, discordou parcialmente do parecer – Rodrigo Agostinho, o presidente do instituto que assumiu no governo Lula, ainda não nomeou o novo titular desse cargo.

Em despacho enviado a Agostinho, Fontana Pinto diz que as considerações sobre os impactos em terras indígenas e sobre a realização prévia da Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) não representam condicionantes para a emissão da licença de operação. Em relação às dificuldades logísticas para a implementação bem-sucedida do Plano de Proteção à Fauna (PPAF), ele sugere que a Petrobras tenha a oportunidade de melhorar o projeto e de provar que ele pode ser viável com a realização da Avaliação Pré-Operacional (APO). Essa simulação de acidente chegou a ser pré-marcada para 20 de março, mas acabou não sendo confirmada por causa do tempo necessário para a análise, pelo Ibama, das respostas enviadas pela estatal a suas observações sobre o Plano de Proteção à Fauna e a relação com os povos originários.

Em seu despacho, protocolado no dia 27, o diretor substituto de Licenciamento reconhece o peso de uma decisão que pode levar à abertura de uma nova fronteira petrolífera, mas diz que essa avaliação não cabe ao Ibama, e sim a instâncias superiores que definem a política ambiental e energética do país.

SUMAÚMA buscou contato com o presidente do Ibama, mas até a publicação deste texto ele ainda não havia comentado o parecer técnico do seu instituto nem a opinião de Régis Fontana.

 


O que diz a Petrobras

Em nota enviada a SUMAÚMA depois da publicação desta reportagem, a Petrobras diz que “aguarda posicionamento do governo” sobre o pedido para verificar a existência ou não de jazida petrolífera no bloco 59, e destaca que o poço em si fica “a uma distância de 175 quilômetros da costa do Amapá e a mais de 500 quilômetros” da foz do rio Amazonas. “A companhia vem conduzindo diligentemente seu processo de licenciamento ambiental, atendendo todas as exigências definidas pelos órgãos ambientais, e reforça que acatará qualquer decisão, seja liberando a perfuração ou optando por aprofundamento de estudos para avaliação da viabilidade de execução de uma campanha na bacia”, informa a estatal.

A companhia diz ainda que só depois da perfuração do poço se confirmará o potencial do ativo, a existência e o perfil de eventual jazida. “Cumprimos todas as exigências e estamos aguardando a decisão do governo. Não queremos atropelo e, ao contrário de algumas notícias veiculadas na imprensa, não há qualquer tipo de pressão da parte da Petrobras. Estamos prontos tecnicamente, esperando o posicionamento oficial sobre a nossa campanha de perfuração na região”, afirma o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, de acordo com a nota.

A empresa apontou que cada bacia da margem equatorial tem características diferentes. “A companhia acredita que a margem equatorial é a nova fronteira para um grande plano energético do Brasil, envolvendo a atividade de exploração e produção e recursos eólicos offshore”, diz o texto. “A Petrobras tem como valor o respeito à vida, às pessoas e ao meio ambiente e continuará executando todas as suas operações seguindo rigorosamente as normas de segurança operacional e as melhores práticas referentes a responsabilidade social e ambiental”, conclui.

Não espante os jaburus: com atraso, indígenas entram na equação do petróleo na foz do Amazonas

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Depois de muita insistência, povos do Oiapoque conseguem fazer a primeira reunião com a Petrobras e mostram que já há impacto das atividades da estatal na área que ela pretende explorar. Mesmo assim, o licenciamento avança: uma simulação de acidente de derrame de óleo, considerada a etapa final do processo de licenciamento ambiental, está prevista para este mês

Originalmente publicado em sumauma.com

Nove anos depois do início do licenciamento ambiental para a busca de petróleo em alto-mar na bacia da foz do rio Amazonas, e apenas quando o processo se aproxima de suas etapas finais, as consequências do projeto para os cerca de 8 mil indígenas do Oiapoque, a região mais ao norte da costa brasileira, entraram na pauta do governo federal. Isso só aconteceu por causa da insistência dos quatro povos originários dessa região do Amapá – Karipuna, Palikur, Galibi Kaliña e Galibi-Marworno – em serem consultados sobre a eventual perfuração no chamado bloco 59, cuja operação foi assumida pela Petrobras há dois anos, depois da desistência de sua sócia, a britânica BP. Numa área extremamente sensível social e ambientalmente, a estatal pretende abrir uma “nova fronteira” de exploração do combustível que desafia os compromissos ambientais do presidente Lula, como mostrou reportagem publicada em fevereiro por SUMAÚMA.

 Mapas mostram três terras indígenas que correm risco se as atividades de exploração de petróleo na costa do amapá forem autorizadas. A imagem da esquerda destaca os territórios. A da direita exibe a cobertura vegetal e a hidrografia da região. Infografia: Rodolfo Almeida/Sumaúma

Em sua primeira reunião com uma equipe da Petrobras, em 13 de fevereiro, os indígenas relataram que os voos diários de helicóptero entre o aeroporto do município de Oiapoque e o navio-sonda enviado pela estatal para a zona do bloco 59 em dezembro, quando esperava que a licença de operação saísse ainda naquele mês, já estão provocando impactos negativos nos três territórios indígenas da região: Uaçá, Juminã e Galibi. Voando baixo, eles afugentam aves como o pato selvagem e o jaburu – o tuiuiú, popularizado pela novela Pantanal – e a caça de que as aldeias precisam para alimentação, artesanato e práticas rituais.

Os indígenas se queixaram de que não foram avisados previamente dessa atividade, “que está atrapalhando até o sossego das comunidades”. Além disso, pediram um envolvimento maior da Petrobras na decisão sobre a mudança do lixão de Oiapoque, que fica perto do pequeno aeródromo da cidade. Uma decisão judicial de 2009 já determinava a construção de um lugar adequado, mas ela se tornou mais urgente com os voos da estatal. A ideia original da prefeitura era construir um aterro sanitário perto de duas aldeias, com risco de contaminação de fontes de água.

Neste início de março, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pelo licenciamento ambiental, pediu à Petrobras que incluísse a questão dos sobrevoos no Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento e apresentasse “medidas mitigadoras”, uma vez que esses impactos “serão perpetuados” caso seja obtida a licença de operação. Sugeriu também “avaliação superior quanto à pertinência do encaminhamento do processo para manifestação” da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). No caso do aeroporto de Oiapoque, o relatório técnico do instituto, publicado no dia 6 de março, concorda com os indígenas quando afirmam que a Petrobras não deve se isentar da responsabilidade pelos resultados da reforma que patrocina na instalação. Afinal, se ela não fosse base de apoio das atividades da companhia na costa do Amapá, não haveria tais consequências.

A exploração de petróleo em alto-mar ameaça comunidades tradicionais, povos originários e o ecossistema da região cheia de mangues, florestas tropicais e recifes da Foz do Amazonas. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace.

 

Foi a primeira vez que demandas específicas dos indígenas entraram em um documento do Ibama no caso do bloco 59, embora isso tenha ocorrido num momento avançado do processo de licenciamento. Está prevista a realização ainda neste mês de março, talvez já no dia 20, de uma simulação de acidente de derrame de óleo. Caso a Petrobras seja aprovada na chamada Avaliação Pré-Operacional (APO), esta é considerada a última etapa antes da emissão da licença para a prospeção. Em entrevista a SUMAÚMA, Rodrigo Agostinho, o novo presidente do Ibama, afirmou, porém, que todas as recomendações feitas pelos técnicos do instituto ainda serão analisadas por ele antes de uma decisão, o que pode levar semanas.

Já a Petrobras afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que está alterando a rota e a altitude dos voos entre Oiapoque e o navio-sonda, e que sua frequência continuará sendo de dois por dia, de segunda a sexta-feira, se obtiver a licença. Argumentou que sua operação “está dentro da capacidade instalada do aeroporto”, autorizado a transportar 200 mil passageiros por ano. Informou que “está contribuindo nos estudos” para a definição do local do aterro sanitário e que “há previsão” de que os “órgãos públicos” consultem os indígenas sobre a melhor solução.

As lideranças indígenas afirmam estar satisfeitas por terem conseguido que a Petrobras fosse discutir em seu próprio território. A reunião foi realizada na terra Uaçá, no Centro de Formação Domingos Santa Rosa, nome de um antigo líder indígena da região, servidor da Funai, que morreu em 2020. Em novembro do ano passado, os caciques haviam se recusado a ir a um encontro “informativo” que a companhia realizou na sede do município e pediram uma reunião exclusiva. A mobilização dos povos do Oiapoque nasceu nos anos 1970 e conseguiu que a primeira das três terras indígenas da região fosse homologada em 1982, ainda no final da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Os indígenas locais realizam anualmente uma assembleia geral, famosa no Amapá – a deste ano, a 29ª, aconteceu de 11 a 14 de março, na aldeia Kuhaí, e foram discutidas políticas públicas em áreas como educação, saúde, cultura e agricultura. Estão também organizados em entidades como o Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (Apoianp). Em 2019, lançaram seu protocolo de consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Brasil e incorporada à legislação nacional.

A aldeia Kuhaí durante a 29ª Assembleia de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO), que aconteceu de 11 a 14 de março. Foto: Maksuel Martins/Secretaria de Comunicação do Governo do Amapá

 

“Foi uma reunião excelente, a gente fez os nossos questionamentos, eles aparentemente se demonstraram sensíveis aos nossos anseios. Levamos a proposta de criar um GT [grupo de trabalho], e a gente cobrou muito que seja feita a consulta, que se siga o protocolo para que a gente seja atendido de acordo com nossas necessidades, que nossas preocupações sejam esclarecidas. A gente não tem experiência de fazer tratativas com uma empresa multinacional de grande porte, como a Petrobras, mas conseguiu deixar nosso recado e obter informações importantes que a gente queria ouvir. Para início de conversa, a gente ficou satisfeito”, contou por telefone o cacique Edmilson dos Santos Oliveira, do povo Karipuna, coordenador do Conselho de Caciques.

Ao todo, 78 pessoas assinaram a lista de presença do encontro, que durou um dia inteiro e teve uma sessão “informativa” da Petrobras e falas dos indígenas, maioria entre os presentes. Havia representantes da Funai, do Ibama, do Ministério Público e de organizações com atuação local, como o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé). A Petrobras levou uma delegação nutrida, de 13 pessoas, que incluía Daniele Lomba, sua gerente de licenciamento e conformidade ambiental, e Priscila Moczydlower, coordenadora de responsabilidade social para o Oiapoque, além de geólogos e dois antropólogos recém-contratados de uma empresa terceirizada.

Os indígenas, que são quase um terço dos 28 mil habitantes do município, estão escaldados com dois empreendimentos em que suas demandas não foram atendidas: a BR-156, que liga Macapá a Oiapoque e levou à realocação de várias aldeias, e a pequena central hidrelétrica Cafesoca, que vai represar um trecho do rio Oiapoque, um dos quatro maiores da região. A negociação entre as lideranças indígenas e a empresa sobre a consulta prévia é intrincada, cheia de ginástica verbal. “O grupo de trabalho é uma vitória para os indígenas, mas não é uma consulta para o empreendimento”, disse Daniela Jerez, representante do WWF-Brasil na reunião. Se tornou comum nos últimos anos que reuniões com indígenas e comunidades tradicionais, organizadas por grandes empresas interessadas em explorações de grande impacto, fossem maliciosamente consideradas “consultas prévias” – o que estão longe de ser.

 

Helicópteros a serviço da petroleira no aeroporto de Oiapoque, no Amapá. Indígenas relataram que os voos dessas aeronaves afugentam aves e a caça de que as aldeias precisam para alimentação, artesanato e práticas rituais. Foto: Felipe Gaspar/Divulgação

 

Durante muito tempo, como suas projeções ignoravam o impacto direto da prospecção de petróleo nas terras indígenas, a Petrobras preferiu considerar que não seria necessário seguir a Convenção 169. Mas além de uma exigência dos povos do Oiapoque, a necessidade de consulta prévia foi objeto de recomendação enviada no ano passado à companhia por procuradores federais no Amapá e no Pará. A estatal alega agora que a atividade em licenciamento pelo Ibama é “temporária”, com duração prevista de cinco meses. Se encontrar petróleo no bloco 59, “é possível que se torne um empreendimento”, e então “um novo processo de licenciamento deverá ser conduzido”. No momento, segue a empresa, o protocolo de consulta do Conselhos de Caciques será adotado “como uma referência para o relacionamento e construção do diálogo para buscar implementar ações e parcerias que tenham sinergia com a atividade da empresa”.

A história mostra, porém, que uma vez obtida a licença para a perfuração, é muito difícil que ela seja negada para a produção. Em fevereiro, a Petrobras incluiu pela primeira vez a apresentação de projetos para o Amapá e o Pará, onde ficaria a base naval da exploração na foz do Amazonas, no edital do seu programa socioambiental. Questionada se esses projetos, que não têm relação direta com os negócios da companhia, seriam um modo de garantir o apoio dos indígenas, a estatal respondeu que “direcionar investimentos sociais para áreas do entorno de nossas atividades” faz parte de sua política de “responsabilidade social”. “Não é uma maneira de ‘granjear’ o apoio das comunidades; pelo contrário, é uma forma de potencializarmos os impactos positivos de nossa presença em determinada região e nos relacionarmos com nossos vizinhos”, diz a nota da empresa.

Os caciques deixaram claro que esperam a consulta sobre o projeto de exploração de petróleo, mesmo que ocorra num momento futuro. Daniela Jerez, do WWF, e Hiandra Pedroso, advogada da Articulação dos Povos Indígenas e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará, contaram que, na reunião de fevereiro, o conflito entre “o conhecimento acadêmico e o conhecimento dos locais”, entre “a palavra do não indígena e o conhecimento tradicional das comunidades”, voltou a se manifestar.

Comunidade de pescadores na cidade de Calçoene, no Amapá. a petroleira tem planos de explorar petróleo na costa do estado, colocando em risco o modo de vida de populações tradicionais e o ecossistema. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

 

Desde o início do licenciamento do bloco 59, que fica a 160 quilômetros da costa, as projeções para casos de derrame de óleo não preveem a chegada da mancha ao Oiapoque, região de mangues e campos alagados onde a maré tem amplitude de 4 metros e o mar entra quilômetros adentro dos rios em épocas de cheia. No encontro, enquanto os representantes da Petrobras enfatizaram a “robustez” de seus estudos e sua experiência na perfuração de poços em alto-mar, vários indígenas recorreram à própria vivência e ao cotidiano para expressar suas dúvidas.

Ramon dos Santos, liderança do povo Karipuna, lembrou que “70% dos territórios indígenas é água” influenciada pelas “dinâmicas da marés” e que por isso não sabe “o que pode acontecer caso haja um acidente”. Maxwara Nunes, diretor escolar do povo Galibi-Marworno, falou do rio Cassiporé, próximo da área costeira, que tem “vários igarapés interligados” à terra Uaçá. O cacique Damasceno Fortes Karipuna disse que “pela maré, a mancha chegaria, sim, às terras indígenas”.

Ramon propôs a contratação de agentes ambientais indígenas para monitorarem o impacto do projeto, começando pelos sobrevoos, e o cacique Nasildo Nunes sugeriu um “componente indígena” na Petrobras, “para as comunidades estarem cientes do que está acontecendo”. “A gente queria de alguma forma incluir alguns representantes indígenas dentro da estrutura da Petrobras para que possam acompanhar e passar as informações para nós de uma forma mais clara, mas falaram que é difícil, que talvez esbarre numa parte muito técnica”, contou o cacique Edmilson. “A gente explicou que tem indígena formado em várias áreas.”

Diante dos questionamentos, Daniele Lomba, a gerente da estatal, pediu que as pessoas falassem dos “impactos positivos” que a Petrobras pode trazer para os povos indígenas e solicitou propostas. Priscila Moczydlower, também da empresa, citou um “leque de opções” em contrapartidas, falou em doação de computadores e capacitação de pessoas e informou sobre o lançamento do edital para projetos socioambientais, que inclui a região. “Um dos caciques colocou: se eu não tiver boas informações, posso falar não para uma coisa que é boa para mim e sim para uma coisa que não é”, contou Daniela, do WWF.

Uma das cobranças mais fortes foi feita pela liderança Priscila Barbosa Karipuna. Ela apontou a existência de “falhas desde o início do processo de diálogo” e afirmou que os indígenas “não são contra nenhum empreendimento, mas querem que o protocolo de consulta seja respeitado”. Disse que o atraso na consulta, agora, provoca “pressões” sobre suas lideranças . Uma das grandes preocupações dos povos originários do Oiapoque é serem acusados de “travar o desenvolvimento” diante das expectativas de emprego e recompensas econômicas que o empreendimento provoca no município.

Embora na reunião a Petrobras tenha enfatizado que hoje mantém uma equipe pequena em Oiapoque, com 20 pessoas, as atividades da companhia costumam ser destaque nas redes sociais da prefeitura, comandada por Breno Almeida, eleito em 2020 pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), sigla sem deputados federais mas que chegou a negociar a filiação de Jair Bolsonaro em 2021. Em 8 de março, a prefeitura noticiou no Instagram que a estatal havia assinado um aditivo para as obras de reforma no aeroporto. Um dia antes, deu conta de uma palestra sobre o Plano de Emergência Aeroportuária “na sala de briefings do terminal de passageiros da Petrobras”.

A Petrobras diz que no momento não há, de fato, previsão de criar empregos diretos na cidade, “uma vez que a atividade é temporária”. Mas faz o aceno: se houver produção, “é natural que surjam outras oportunidades”.

Simulação de acidente de derrame de óleo

Enquanto os choques de interesses se desenrolam no Oiapoque, o processo de licenciamento avança. Em 3 de março, numa reunião entre representantes da estatal e o novo responsável pela Coordenação-Geral de Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Marinhos e Costeiros do Ibama, Itagyba Alvarenga Neto, ficou acertado que a simulação de um acidente de derrame de óleo deverá ser realizada ainda neste mês, a princípio no dia 20. Foi combinado que a data seria confirmada num novo encontro.

Pescadores em Calçoene, a 200 quilômetros de Oiapoque, no litoral do estado do Amapá: modo de vida no extremo norte do brasil está ameaçado pela exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace

A previsão é que a Avaliação Pré-Operacional (APO), o nome asséptico para a simulação de acidente, ocorra na área do bloco 59 e que dela participem seis navios da Petrobras – a empresa acrescentou mais uma às cinco embarcações disponíveis há um mês, e ele já passou pela inspeção do Ibama. O chamado Plano de Emergência Individual (PEI), que será testado na simulação, precisou ser reforçado porque a base naval do empreendimento fica em Belém, a 43 horas por mar do local do poço, uma vez que o litoral de mangues não permite embarcações de alto calado no Oiapoque. Com isso, é preciso que navios se revezem a distâncias mais próximas do local da perfuração, para agir em caso de emergência.

Segundo a ata da reunião, Itagyba disse a Daniele Lomba, a gerente da Petrobras, que o licenciamento do bloco 59 é prioridade e que a Petrobras estaria atendendo a todas as demandas do órgão ambiental. O coordenador do Ibama, no entanto, observou que o processo “está sendo supervisionado por muitas instituições e entidades e, por isso, precisa estar muito bem saneado, instruído e detalhado de forma a subsidiar as instâncias superiores na decisão quanto ao licenciamento do empreendimento”. Daniele disse que “há muitas pessoas envolvidas e mobilizadas para a realização” da simulação do acidente, com toda a estrutura pronta.

Em seus últimos pareceres técnicos, o Ibama pré-aprovou o Centro de Reabilitação e Despetrolização de Fauna, montado em Belém para o tratamento de aves que sejam atingidas por uma mancha de óleo. O Centro já foi licenciado, em meados de fevereiro, pela Secretaria de Meio Ambiente do Pará. O instituto pediu uma série de informações sobre o Plano de Proteção à Fauna, considerando-o “insuficiente e inadequado” em alguns aspectos, quando se leva em conta o tempo de deslocamento entre o bloco 59 e os locais em que os animais seriam atendidos. Em despacho interno, porém, admitiu que “o nível de detalhamento solicitado talvez não seja passível de atendimento integral pela empresa, sobretudo por tratar de um tema como a estratégia de resposta a emergências, suscetível a diversos imprevistos operacionais” numa área, a bacia da foz do Amazonas, que “apresenta imensa dificuldade logística”.

No início de fevereiro, em resposta a um questionamento de SUMAÚMA, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e o Ibama sugeriram que, para uma decisão abalizada sobre o licenciamento, seria necessário fazer uma avaliação mais ampla sobre a compatibilidade da região da foz do Amazonas com a atividade petrolífera. A pasta de Marina Silva e o instituto citaram um parecer técnico, de 31 de janeiro, no qual se afirma que “a ausência de avaliação ambiental estratégica, como a AAAS [Avaliação Ambiental de Área Sedimentar], e outros instrumentos de gestão ambiental, dificultam expressivamente a tomada de decisão a respeito da viabilidade ambiental da atividade, inserida em uma área de notória sensibilidade socioambiental e de nova fronteira para a indústria do petróleo”.

Revisão ortográfica: Elvira Gago
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga

Pássaros na praia de goiabal, na costa do amapá, extremo norte do brasil. Comunidades indígenas e tradicionais e o ecossistema da região já sentem as perturbações de uma possível exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Foto: Victor Moriyama/Greenpeace